terça-feira, 11 de agosto de 2009

"Soberba"



Lionel Fischer





(Quando a cena começa, a cortina está fechada, pois a portentosa cenografia estará sendo montada por nossa eficiente contra-regragem. Surge a princesinha Tesudetta, numa das extremidades do palco, sob a luz de um único foco. Ela se dirige à platéia)



Tesudetta - Como podeis constatar sem grande esforço, estou possuída de grave melancolia, salpicada de aflição e fustigada pela desesperança. E se aqui me encontro, diante de vós, e diante de vós me prostro de joelhos (Ela se põe de joelhos), é porque em vós deposito minha última esperança. Caso m'a negueis, o que não posso crer que o façais, todo o meu ser se verá tomado pela mais cava melancolia, moradia fatídica de onde ninguém consegue escapar, desde que nela adentre - ainda mais no século em que vivo, o XIII, quando Freud ainda não havia sido concebido e muito menos os medicamentos específicos aos quais tendes acesso quando tal moléstia, a melancolia, vos assalta. Acompanhai, portanto, e com a atenção devida, a breve narrativa que ora vos exponho, finda a qual talvez consigais lançar alguma luz sobre as trevas abissais em que me encontro, fruto do impasse que me dilacera por dentro e em toda a minha periferia...


(Entra uma música, a cortina se abre lentamente. Vemos, então, o seguinte: no topo de uma escada se encontra o Rei, cujo nome ainda não inventei, pai da princesa; no topo de outra escada, o príncipe Arlindorlandus - tributo a Evandro Mesquita. Junto a cada uma das escadas, um Conselheiro. Quando a cena começa, esses quatro personagens estão congelados, ainda que trocando olhares ferozes. Sai a música)


Tesudetta - Toda a tragédia começou no dia que seria o dia mais feliz de minha vida (outro tributo a Evandro): quando completei 15 anos de radiosa existência, fato ocorrido há um mês. Para comemorar a marcante data, meu pai resolveu promover um grandioso baile, para o qual convidou todos os governantes dos reinos fronteiriços, dentre eles o príncipe Arlindorlandus. E lá pelas tantas, quando os trovadores começaram a entoar uma sequência de baladas dançantes que muito sucesso faziam, eis que Arlindorlandus me saca para bailar!


(Entra uma música medieval. Arlindorlandus desce da escada, se aproxima e começa a dançar com Tesudetta como se fazia na época. O Rei descongela, assim como os dois conselheiros)


Conselheiro do Rei - E todos acompanhávamos embevecidos a evolução dos pares, e em especial o formado por Tesudetta e Arlindorlandus, que até então não se conheciam e, surpreendentemente, exibiam total entrosamento.


Conselheiro do Príncipe - Num dado momento, porém, o assombro tomou conta de todos. Como que embalados pelo som de uma música que ninguém ouvia, Tesudetta e meu senhor, Arlindorlandus, passaram a evoluir estranhamente acoplados, e rebolando de tal forma que todos tivemos a impressão de que um processo de cópula estava em marcha!


(Sai a música medieval e entra um forró. O Rei se ergue, estupefato, a mesma estupefação estampada no rosto dos conselheiros. Após um tempo, o Rei pula da escada e, perdendo o equilíbrio, se estabaca no chão. Cessa o forró)


Rei (Erguendo-se com o auxílio de seu conselheiro) - Mas o que é isso? Estais possuídos pelo Dêmo? É ele que impregna vossos ouvidos de uma canção que não escutamos e que vos instiga a projetarem para a frente e para trás os mútuos ventres, assim promovento indecorosa intimidade entre vossas partes pudendas?


Tesudetta - Meu pai, estais interpretando erroneamente...


Rei - Calai-vos, antes que a cólera me domine por completo e te esbofeteie até ver tua rosada face deformada!


Príncipe - Senhor, por que partiríeis para uma agressão tão descabida se...


Rei - Calai-vos vós, igualmente, pois do contrário tuas bochechudas faces receberão idêntico flagelo!


Tesudetta - Oh meu Deus, fazei com que papai...


Rei (A Arlindoorlandus) - Como ousaste sarrar, emergente príncipe, minha única e dileta filha, diante de minhas barbas, em meu castelo, e tendo por testemunha toda a minha nobreza e a fronteiriça?


Arlindorlandus - Perdão, senhor, mas não a sarrava!


Rei - Ah, não? E o que fazíeis, grudando o que imagino que possuís entre as pernas, na região análoga de Tesudetta?


Tesudetta - Oh, meu pai, acreditai em vossa filha: nada senti de ofensivo, da parte de Arlindorlandus, na região que mencionais!?


Rei - Talvez nada tenhais sentido porque o objeto da ofensa, no presente caso, seja um tanto diminuto...(Tesudetta desvia o olhar do pai, com expressão dúbia)


Arlindorlandus - Sugeris acaso, meu senhor, que o gracioso pedúnculo que ostento em meu baixo ventre...


Rei - Cagando estou para a dimensão de vosso pedúnculo, se é que o possuís! Quero apenas que saibas que, de agora em diante, e para todo o sempre, sois persona non grata neste reino!


Todos - Oh!!!


Rei - E que estão cortadas para todo o sempre as amistosas relações que até então mantínhamos, tanto pessoais como comerciais!


Todos - Oh!!!


Rei - E assim sendo, ordeno que vos retireis imediatamente de meus domínios, ficando desde já implícito que, se nele fordes algum dia surpreendido, sereis torturado implacavelmente até a morte!


Todos - Oh!!!


Arlindorlandus - Pois que seja. E o mesmo vaticínio aplico a vós, se porventura e sob qualquer pretexto, fordes surpreendido nos domínios sob minha tutela!


Todos - Oh!!!


Tesudetta - Meu nobre pai! Gracioso Arlindorlandus! Estais ambos agindo como crianças insensatas!? Ponderai com um mínimo de calma acerca da grotesca decisão que acabais de tomar e logo percebereis suas graves consequências!


Rei/Arlindorlandus - E quais são elas?


Tesudetta - Não sejais cínicos! Vós, meu pai, sabeis perfeitamente que não conseguireis sobreviver sem degustar diariamente os brocolitos...


Conselheiro do Rei (À plateía) - Palitinhos de brócolis.


Tesudetta - ...que para cá são exportados por Arlindorlandus!


Rei - Serei forte o bastante para suportar a brutal e inevitável abstinência!


Tesudetta - E quanto a vós, Arlindorlandus: imaginais poder viver sem as trulhetas...


Conselheiro do Príncipe (À platéia) - Trufas em forma de caneta.


Tesudetta - ...que só aqui existem e que meu pai vos envia mensalmente?


Arlindorlandus - Serei forte o bastante para sobreviver a brutal e inevitável abstinência!


Tesudetta - Por Deus, sabeis que não! Da mesma forma que não ignorais que todo esse mal-entendido pode ser agora dissipado!


Rei/Arlindorlandus - Jamais!


Tesudetta - Meu pai, por tudo que pode haver de mais sagrado neste mundo: eu vos juro que não tive minhas partes pudendas fustigadas pelo colossal ariete de Arlindorlandus!?


Rei - Como sabeis ser colossal o dito ariete?


Tesudetta - Bem, eu...


Arlindorlandus - Inóspito vizinho: embora esta não seja a ocasião propícia para a revelação de detalhes anatômicos, posso vos garantir que o pedúnculo que ostento se enquadra nos padrões da mais absoluta normalidade!


Conselheiro do Príncipe - Isso é verdade.


Arlindorlandus - Assim sendo, reitero o que já vos disse: ao bailar com vossa filha, em nenhum momento me ocorreu a obscena idéia de sarrá-la. E o mesmo, vos afirmo, jamais passou pela cabeça de Tesudetta, flor ainda em botão, a inocência personificada. Portanto...


Rei - Nem uma palavra mais! Ou a espada desembanharei e vossa rotunda cabeça cortarei!


Arlindorlandus - Se vossa mão buscar o rumo de vossa espada, o mesmo se dará com a minha! E serei eu a decepar vossa cabeça, por sinal muito mal feita!


(Ambos sacam as respectivas espadas. Os conselheiros se agarram aos seus monarcas, enquanto Tesudetta corre para o proscênio, soltando um grito lancinante. Toda a cena congela. Agora, só um foco em Tesudetta, que fala com a platéia)


Tesudetta - Como já vos disse no início desta dolorosa narrativa, já 30 dias se passaram. E nada se modificou. Ou por outra: tudo se modificou. Privado de seus brocolitos, meu pai se encontra neste lamentável estado...(Um foco no Rei, trepado na escada. Ele está com o peito à mostra, onde se vêem manchas arroxeadas) Pústulas nauseabundas adornam seu outrora majestoso peito...(O Rei geme e chora) Quanto a Arlindorlandus, uma vez privado das trulhetas, assim ficou...(Foco no Príncipe, também trepado na escada, a peruca que usava em uma das mãos) Estão lhe caindo todos os pelos, a começar pelos de cima...(Arlindorlandus geme e chora) Quanto a mim, já não sei mais o que fazer. A não ser contemplar impotente os trágicos efeitos da soberba. Sim, pois é ela que os impede de fazer as pazes. Ambos têm consciência de que definham, de que não podem sobreviver sem as trulhetas e os brocolitos, mas nenhum dos dois, por desmedido orgulho, se dispõe a dar o primeiro passo, a estender a mão que selaria a paz. E aqui não se trata, em absoluto, da ferrenha defesa de princípios, pois meu pai tem plena consciência de minha natureza galinácea e se porventura Arlindorlandus a desconhecia, não resta a menor dúvida de que fustigou minha caçapinha com seu inflado bastonete. Mas talvez tenhamos sido um tanto imprudentes e chamamos indevida atenção para o sarro que tirávamos. Assim, a meu pai cabia representar o papel de genitor zeloso e ele o fez com comovente canastrice. E a Arlindorlandus só restava incorporar o papel de inocente bailarino, do qual se desincumbiu com relativo brilho. E ainda que essencialmente hipócritas, tanto o ataque de meu pai, como a autodefesa de Arlindorlandus, bastariam para que toda a nobreza presente em meu castelo dele se retirasse plenamente satisfeita, já que a hipocrisia, como sempre, havia imperado. E foi o que também imaginei. No entanto, por serem ambos arroantes, orgulhosos e soberbos, meu pai e Arlindorlandus levaram a sério as ameaças que trocaram. E a menos que algum dos senhores ou senhoras me diga o que fazer para levá-los a renunciar ao capital pecado que os consome, nada me restará a não ser aguardar, resignada, a morte de meu pai e a de meu ardente forrozeiro, sem ao menos ter tido o prazer de ser devidamente apresentada ao pedúnculo que tão virilmente me fustigou!? (Tempo) E então, senhores? Nenhuma idéia salvadora?


Conselheiro do Rei - É inútil prosseguir com vossas súplicas, Tesudetta! (Toda a cena se ilumina)


Conselheiro do Príncipe (Referindo-se à platéia) - Deles não obtereis a salvadora dica.


Tesudetta - E por quê não?


Conselheiro do Rei - Porque vossa história não os comoveu.


Conselheiro do Príncipe - E nem convosco se identificaram.


Conselheiro do Rei - E quando a platéia não estabelece com a protagonista a indispensável empatia...


Conselheiro do Príncipe - Narrativa e cena vão ambas pro caralho.


Conselheiro do Rei - Assim, que o pano se feche e as luzes se apaguem.


Conselheiro do Príncipe - E para as coxias marchemos consientes do próprio fracasso.


Tesudetta - Pois daqui não saio até que um conselho receba!


Conselheiro do Rei - Aceitai a derrota, ninfa pervertida!


Conselheiro do Príncipe - E permiti que a humildade de vosso ser se aposse.


Tesudetta - Poupai meus ouvidos de tão estéril cantilena! Já disse e repito: deste palco só saio quando algum deles se pronunciar!


Conselheiro do Rei - Se é assim, preparai-vos para uma longa agonia.


Conselheiro do Príncipe - Em tudo semelhante à que o destino reservou a vosso pai e a meu senhor.


Conselheiro do Rei - Pois no fundo, assim como no raso, não passais de almas gêmeas.

Conselheiro do Príncipe - Todas padecendo do mesmo e pavoroso pecado.

Tesudetta - E qual seria ele, se não vos importais de m'o dizê-lo?

Conselheiros - A soberba!!! (Acorde dramático. Tesudetta tomba no chão, vítima de soberbo enfarte, ao meso tempo em que o Rei e Arlindorlandus exalam o último suspiro. Após constatarem a tripla morte, os conselheiros vão saindo de cena, cada qual por um lado, lentamente, enquanto as luzes caem em resistência)
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Esta curtíssima peça foi escrita para ser representada por meus alunos do Tablado em um espetáculo sobre os Pecados Capitais, jamais realizado, por razões que a razão talvez conheça, mas prefira ocultar.

2 comentários:

  1. Quem sabe a resposta não seja simples: Ainda não havia chegado o momento certo.

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  2. Lionel!!!!
    Lembro que usamos esse seu texto num exercício de leitura à primeira vista ano passado! Que saudades dessas aulas! E que saudades de vc!
    Marcela Cabelo ^_^

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