sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Ilusão e realidade

Martin Esslin


O drama - o teatro - é uma ação mimética, uma imitação do mundo real em termos lúdicos, em termos de faz-de-conta. O drama que vemos no teatro e igualmente na televisão ou no cinema é uma ilusão elaboradamente manufaturada. Entretanto, se o comparamos com outras artes que igualmente produzem ilusão, o drama - um texto dramático transformado em espetáculo - contém um percentual muito maisl alto de realidade.

Tomemos a pintura. Ela produz a ilusão de uma paisagem, de uma casa - a semelhança de um ser humano no caso de um retrato - e os únicos elementos reais que contém são as tintas e a tela. Uma peça também produz uma ilusão, digamos, de um Hamlet no castelo de Elsinore. Porém aqui Hamlet, o jovem que vemos no palco - morto desde há muito como figura histórica, na realidade sem jamais ter existido, e sendo, por isso mesmo, mera ficção criada pela imaginação do autor - é retratado por um jovem, um ator que na realidade é um homem moço.

E ele se senta em uma cadeira que realmente é uma cadeira. A cadeira supostamente está colocada em algum canto de um castelo dinamarquês há muitos séculos atrás, mas nem por isso deixa de ser uma cadeira. O drama representado, portanto, em contraste com todas as outras artes que criam ilusão, contém, por assim dizer, maior proporção de realidade. Tem havido representações de Hamlet até mesmo no verdadeiro castelo de Elsinore e, nessas ocasiões, a cadeira em que Hamlet se sentava era efetivamente uma cadeira colocada em um canto do verdadeiro castelo de Elsinore.

E vejam o que acontece se transportarmos o âmbito do drama para fora do teatro e entrarmos na televisão ou no cinema: sequências inteiras da ação dramática poderão ser representadas e gravadas na locação real da peça, seja ela o episódio de alguma série popular, ou O mercador de Veneza filmado em Veneza, ou Romeu e Julieta em Verona.

Essa me parece ser uma das principais características do drama e um de seus elementos mais fascinantes: a de que uma peça, no momento em que é representada, constitui uma fusão do totalmente imaginário - o produto da imaginação de um escritor fixado de uma vez por todas e, estritamente neste sentido, já letra morta - com elementos vivos da realidade dos atores, suas roupas, a mobília que os cerca, os objetos que manuseiam, tais como espadas, garfos ou facas. Cada apresentação de uma peça escrita há séculos pode, assim, ser vista como uma ressurreição: as palavras e ações mortas são reincarnadas pela presença viva dos atores. Não é de espantar que o jargão do mundo do teatro fale da apresentação de uma velha peça como um revival.

No estudo puramente acadêmico do drama, a atenção tende muito naturalmente a focalizar-se no elemento mais acessível para a análise: o texto, a peça como literatura. A qualidade dos outros elementos, o espetáculo, a iluminação, o magnetismo dos atores, é muito mais fugaz e era, antes da invenção da documentação mecânica, praticamente perdida em sua totalidade. No entanto, esses são os elementos que desempenham papel decisivo na atração do público ao teatro (ou cinema ou à representação televisada), e se realmente analisássemos o impacto da experiência teatral no público, seria constatado, estou certo, constituírem esses elementos a base do prazer que a platéia tira da experiência teatral.

No teatro com atores vivos, é esse aspecto da fusão de um elemento fixo (o texto) com um elemento fluido (os atores) que torna cada apresentação de cada espetáculo uma obra de arte totalmente distinta - mesmo no caso de carreira longa de uma mesma peça com mesmo elenco, o mesmo cenário, a mesma luz etc. No teatro clássico chinês, no qual os textos normalmente apresentados são todos muito bem conhecidos da platéia, e também extraordinariamente longos, o público comparece principalmente para ver de que modo os principais atores os irão representar.

Do mesmo modo, o nosso próprio drama clássico, e o de Shakespeare acima de qualquer outro, transformou-se em um gabarito segundo o qual avaliamos nossos atores: vamos ver Hamlet pela enésima vez porque estamos interessados em saber como o Hamlet de Scofield difere do de Gielgud, do de Burton, do de O'Toole etc. Na última década a função do diretor como fator ponderável na parte variável da experiência teatral acrescentou um novo elemento às atrações oferecidas pela ida ao teatro para rever um texto altamente consagrado, fazendo com que hoje em dia saiamos de casa para ver o Hamlet, o Rei Lear ou o Macbeth de Peter Hall, de Peter Brook, de Giorgio Strehler ou de Roger Planchon.

Nem tudo no teatro, portanto, é ilusão. Não estamos realmente vendo Macbeth engajado em uma batalha do lado de fora de seu castelo em Dunsinane, mas estamos no teatro para ver sir John Gielgud ou Richard Burton, e efetivamente vemos tais atores, os homens em si, ouvindo sua voz, o que nos dá um prazer todo particular. Além do mais, quando o vemos combater com Macduff, admiramos a habilidade dos dois atores, sabemos que Macbeht não vai ser realmente morto, porém realmente vemos dois seres humanos batendo-se em duelo.

Quando a fama dos atores ingleses do tempo de Shakespeare já se havia espalhado pela Europa, companhias ambulantes inglesas excursionaram por vários países, particularmente a Alemanha. As platéias não compreendiam o texto porém pasmavam ante a habilidade com a qual os atores lutavam e dançavam, pagando o dinheiro de suas entradas principalmente para apreciar seus feitos acrobáticos e sua graça na dança. A peça mais popular era O judeu de Malta, de Christopher Marlowe, na qual o gande vilão caía em um caldeirão cheio de azeite fervendo em extraordinária destreza acrobática.

Sob esse aspecto, o teatro se aproxima bastante de uma outra área na qual o instinto lúdico do homem se manifesta - o esporte. O teatro pode ser encarado como um espetáculo esportivo, que dá prazer ao espectador tanto quanto a quem o pratica. E quando se vê o trabalho de um ator realmente extraordinário como Lawrence Olivier, qualquer um é capaz de perceber que o seu evidente prazer nos aspectos físicos da representação (como quando ele se equilibrava na ponta de uma cadeira para trocar uma lâmpada em Longa viagem de um dia noite a dentro, ou quando caía do alto de vários degraus no momento de sua morte em Coriolano, para não falar da imensa gama vocal que usava em Othelo) é um componente tão importante do impacto que causa no espectador quanto sua forma de perceber e executar a arte da representação.

O ator é e sempre continuará a ser a pedra de toque de todo o drama. O balé, que não usa texto de espécie alguma (e no qual a pura destreza física, o atlético do domínio corporal, constituem o próprio âmago do espetáculo); a mímica de grandes artistas como Debureau ou do nosso contemporâneo Marcel Marceau, na qual também não existe texto falado; ou a improvisada Commedia dell'Arte da Renascença italiana, que tinha um texto, porém um texto que não havia sido definitivamente fixado e ensaiado, alterando-se e enriquecendo-se espontaneamente durante o espetáculo; ou as obras-primas do cinema mudo - todos são tipos de drama com um mínimo de conteúdo literário. Portanto, é possível existir drama sem texto.

É no ator que os elementos da realidade e da ilusão se encontram: será que vamos ao teatro para ver Othelo interpretado por Olivier ou para ver Olivier interpretar Othelo? Existe uma tensão criativa entre o personagem fictício imaginado pelo dramaturgo e o homem real que empresta a essa ficção nascida da imaginação do autor sua sólida realidade física, mais - e esse é um "mais" importantíssimo - um acréscimo de imaginação, um acréscimo de invenção poética de gesto, ação, entonação, precisão de timing. Já foi dito, e com absoluta correção, que existe uma poesia no teatro, tanto quanto uma poesia do teatro. Poesia no teatro é a linguagem poética criada pelo dramaturgo; porém muito da poesia do teatro nasce de um olhar, uma entrada, uma pausa. E estes são, na maioria dos casos, criação dos atores ou dos diretores.
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Este artigo, aqui reduzido, consta do livro Uma anatomia do drama (Zahar Editores/1976, tradução de Barbara Heliodora)

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