segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A criança e os adultos precisam dos
Contos de Fadas

Arlene Caetano


Até algumas gerações atrás os contos de fadas eram lidos com freqüência pelas crianças, ou narrados nos joelhos da vovó, com grande prazer e vantagens emocionais. Nossa época caracteriza-se pelo abandono quase total das histórias clássicas em favor da mitologia de super-heróis simplicados e esquematizados, que substitui a literatura de valor artístico e profundo significado emocional, como a dos contos de fadas autênticos. Para onde foram esses contos? Por que foram banidos? Qual sua importância na vida da criança e até mesmo do adulto?

Atualmente, em livrarias ou bancas de jornal encontramos fascículos que se intitulam Contos de Fadas para as Crianças de Hoje. Mudaram a criança e suas necessidades profundas e verdadeiras? Mudamos nós, os adultos, a ponto de temermos as maravilhosas narrativas originais mais antigas? E o tempo? Seguramente se modificou. Mas que tem o tempo "real" a ver com tempo interno, o tempo sem tempo e sem dimensões como o de nosso inconsciente, ao qual falam diretamente os contos de fadas antigos? Encontamos hoje versões "adaptadas por" ou "ilustradas por", que pouco deixam à nossa imaginação criativa (principalmente à da criança) e que não preenchem as verdadeiras funções do conto de fadas: entretenimento sim, mas mais que tudo uma função psicológica e emocional profunda.

Como entretenimento, ele é de inigualável valor artístico, na sua forma original, sem cortes, simplificações ou reorganização lógica dos personagens. Produto final de eras de narrativa oral tradicional em todo mundo, contados e recontados por diferentes adultos para diferentes crianças até assumir a forma definitiva: a que fala de modo universal e profundo à fantasia, à emoção e à imaginação. Possui um encantamento que se origina da reunião de pequenos detalhes significativos em torno de um tema central que diz respeito simbolicamente a motivos importantes de nossas vidas e lutas. Tem em si o encantamento de assuntos que falam fundo no coração de todos, atingindo os problemas e necessidades da criança com a inclusão do elemento mágico, e maravilhoso, tão próximo às nossas energias primitivas e à própria natureza.

Os contos de fadas, dizem os pais ou estudiosos modernos, são "irreais", "falsos", e cheios de crueldades. Mas que coisa pode ser mais real para a criança do que algo que lhe fala, numa linguagem acessível ao desenvolvimento de seu pensamento, do que é real dentro dela? Os pais temem que os contos de fadas afastem a criança da realidade, devido às mágicas e fantasias. Mas o real que consideram é o externo, e o conto de fadas deixa bem claro que está tratando da realidade mais real para a criança: a de seu mundo e valores próprios. E evidencia-o quando situa as histórias na Terra do Nunca, no "Era uma vez num país longínquo" ou "Numa época remota, quando os bichos ainda falavam" etc, afirmando que não se trata do aqui e agora da realidade adulta e externa, mas de um país fora do tempo e espaço.

Estranhamente começamos a banir os contos por uma alegada irrealidade e crueldade (devido aos eventos dramáticos que sucedem, considerados selvagens) exatamente numa época em que a psicanálise desmistificou a "inocência" e a "simplicidade" do mundo da criança. Este é cheio de experiência de amor, mas também de destruição (selvageria), de ambivalências que são abordadas sem medo pelos contos de fadas.

Na verdade, o temor principal dos pais é ver que a criança os identifica com as bruxas, feiticeiros, ogres e madrastas, e acharam que por isso tudo, identificar-se a si e aos pais nos personagens dos contos serão menos amados. Ao contrário, poder vivenciar isto, permite a criança amar e preservar melhor os pais na realidade, porque sua agressividade é aliviada. O conto contribui assim para desmanchar as fontes de pressão ansiosa ou agressiva, que caso contrário seriam dirigidas aos pais.

Em termos de formação, os contos são de grande importância para a criança, pois além do círculo imediato da família, ou o pouco mais extenso da escola, eles vem a ser a fonte mais próxima e abundante de valores morais, num mundo que inclusive cada vez mais necessita do aprendizado de sermos nós mesmos para enfrentar a solidão. Isso é algo que o herói ensina através de suas andanças pelo mundo, enfrentando perigos e crescendo em valor, sabedoria, paciência e justiça, numa visão otimista.

Mas a maior contribuição dos contos de fada é em termos emocionais, pois se propõe (e realiza concretamente) quatro tarefas: fantasia, escape, recuperação e consolo. Escape das ameaças, que nos contos surgem das mais diversas formas simbolizando não só ameaças externas por que passamos, mas também todas as "reais" ameaças internas emocionais e psicológicas que vivemos nas diferentes fases de crescimento até o amadurecimento final. Como tal é terapêutico, aliviando as fontes de pressão. As ameaças são exageradas em termos de provas e provações, tribulações e lutas com seres amedrontadores como os que nos assustam diante das transformações que temos que passar na vida para crescermos e sermos nós mesmos.

Os contos fornecem escapes necessários falando aos medos internos da criança, às suas ansiedades, ódios, amores e destruições. Atinge diretamente as emoções numa linguagem visual e simbólica, pertinente ao estágio de desenvolvimento do pensamento da criança pré-lógica ou pré-discursiva. E o herói mostra os caminhos possíveis para se vencer estas ameaças universais: seja como vencer a rejeição, ou o abandono como em João e Maria, ou nos conflitos edípicos com a mãe, como em Branca de Neve ou a rivalidade fraterna, em Cinderela. Sejam ansiedades sexuais como em Chapeuzinho Vermelho ou problemas de inferioridade como As Três Plumas, O Patinho Feio e inúmeros outros. Os contos aliviam as pressões oriundas destes problemas. E aí entra sua segunda tarefa que é a recuperação do desespero.

A vida para a criança parece muitas vezes uma sequência de fatos agradáveis que de repente é interrompida incompreensivelmente. Uma simples ameaça ou solicitação dos pais pode lançá-la num desespero terrível porque não entende a razão das coisas; estas simplesmente ocorrem e parecem-lhe um destino inexorável. Então a criança ou cede ao desespero (como os heróis às vezes fazem, chorando até que chegue uma ajuda mágica ou alguém a quem auxiliou previamente) ou foge, como faz a Branca de Neve na floresta, para escapar da madrasta. O conto recobra as forças da criança, faz com que recupere a coragem de prosseguir e reassegura-a sobre a possibilidade de encontrar caminhos, saídas para os problemas aparentemente insolúveis no tempo devido. Saídas que são até mesmo indicadas pelos heróis e heroínas, bem como o reasseguramento de que há justiça, que os males terminam, que os esforços são recompensados etc.

As fantasias são incentivadas no bom sentido da palavra. Investigações científicas mostram que quem não sonha, mesmo que durma, tem a sua função de realidade prejudicada. Os elementos dos contos se assemelham ao dos sonhos, com diferenças por apresentarem coesão, uma estrutura e elaboração que estes não possuem. As fantasias, que têm sua origem no inconsciente, são uma fonte de trabalho criativo e a criança pode vivenciar processos internos que ficariam de outro modo difíceis de exprimir. Encontrando nos livros fantasias que correspondem às de seu mundo interno faz a criança sentir que pertence a um grupo humano onde os outros sentem e sonham como ela, mas com imagens lindas, que muitas vezes ela sozinha não pode organizar para exprimir o que pensa e imagina.

Por fim, o mais importante, associando-se ao que já se disse, os contos consolam e muito. O famoso "final feliz" que tantos adultos consideram "irreais" ou "falsos" são a grande contribuição humana que estas histórias, quando na versão autêntica, dão à criança, encorajando-a pela identificação à luta pelo desenvolvimento, para valores amadurecidos, para uma crença positiva na vida (ao contrário dos mitos que sobrecarregam o superego de exigências super-heróicas ou das fábulas, que advertem sem propor saídas).

O conto ensina sem limitar e sem tirar a liberdade de escolha. Asseguram-lhe que no final haverá uma recompensa para tantas provas e tribulações. Ela, criança, encontrará seu reino: reino interno, onde mandará com sabedoria e justiça, como os reais (assegurando que é possível harmonizar os impulsos contraditórios, controlar as emoções, resolver os problemas). Encontrará também o parceiro adequado para as suas realizações sexuais e emocionais, vencendo a maior angústia de todos os seres humanos, a da separação, unindo-se a alguém de forma adequada e estável, como a união dos príncipes e princesas que depois de provas e perigos vivem unidos e felizes para sempre.

Estes ditos finais felizes são algo de que a criança muito necessita para compensar suas enormes dúvidas e incertezas, esforços que quase a esmagam. Este ponto de referência onde tudo termina bem auxilia-a a enfrentar seus medos existenciais, que não sabe exprimir como os adultos, quanto à vida, à morte, à própria identidade e evolução. Os contos exprimem estas abstrações numa linguagem fatual que a criança entende.

As razões, motivações psicológicas, significados emocionais, as funções de entretenimento, a linguagem simbólica do inconsciente: um verdadeiro mundo fantástico que se abre quando ainda encontramos livros como Os melhores contos de fadas italianos, As mil e uma noites ou Contos dos irmãos Grimm.
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O presente artigo, publicado no Jornal do Brasil (11/06/78), consta da revista Cadernos de Teatro nº 77/1978

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