sexta-feira, 31 de julho de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Viver sem tempos mortos"

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Obrigado, Fernanda

Lionel Fischer


Em certa ocasião, indagado a respeito do espetáculo que mais o impressionara, Peter Brook - o maior encenador vivo - não relutou em afirmar que o mesmo se dera num sótão em Hamburgo, durante a Segunda Guerra Mundial, sem o consentimento das autoridades e para uma platéia de apenas 40 pessoas. Em cena, um único ator. Como cenário, uma única cadeira. E apenas uma fonte de luz. Pois bem: utilizando tão poucos elementos, Brook se confessou extasiado diante da versão teatral de "Crime e castigo", de Dostoievski, talvez a mais brilhante e complexa obra daquele que consideramos o maior escritor de todos os tempos.

Mas o que tem a ver o que acaba de ser dito com o presente espetáculo? No mínimo, tudo. Ou quase tudo. É certo que "Viver sem tempos mortos" não está em cartaz num sótão, não está proibido pela censura, a Segunda Guerra Mundial já terminou, mas ainda assim algumas coincidências não deixam de ser curiosas. No palco do Oi Futuro, apenas uma atriz. Como cenografia, uma única cadeira. E também uma única fonte luminosa. E embora não tenha tido o privilégio de testemunhar a experiência que Brook descreve como inesquecível, tenho agora a oportunidade de assistir a algo que, sem dúvida, também deixaria encantado o citado encenador.

Tendo como matéria-prima cartas e apontamentos autobiográficos da escritora, pensadora e ensaísta francesa Simone de Beauvoir, "Viver sem tempos mortos" faculta ao público pelo menos dois fantásticos privilégios: entrar em contato com pensamentos e reflexões de uma das mulheres mais extraordinárias do século XX e também com uma das atrizes mais brilhantes que o mundo já conheceu: Fernanda Montenegro, aqui dirigida por Felipe Hirsch e tendo Daniela Thomas assinando a direção de arte.

Para os espectadores que desconhecem a obra de Simone de Beauvoir - aí incluíndo-se sua vasta correspondência com o grande amor de sua vida, Jean-Paul Sartre -, estes certamente deixarão o teatro ávidos por consumí-la. E para os já familiarizados, aí tudo se resume à apreciação de um singular fenômeno: o poder avassalador que o teatro possui quando ocorre um verdadeiro encontro entre quem faz e quem assiste.

A esta altura de sua magnífica trajetória artística, Fernanda Montenegro já esgotou de há muito todos os adjetivos que a ela pudessem ser endereçados. Portanto, a eles renunciarei, limitando-me "apenas" a transmitir aos leitores a sensação que tive ao longo do espetáculo. Os pensamentos e reflexões da autora, associados à forma de Fernanda interpretá-los, produziu em mim uma espécie de alargamento de minha consciência, não apenas no que diz respeito ao mundo exterior, mas sobretudo ao que me é inerente, induzindo-me a descobertas que julgava improváveis. E tenho a impressão de que ao menos uma grande parte do público deixará o teatro com uma sensação parecida, com a qual, queira ou não, terá de lidar.

Mais do que óbvios elogios, portanto, manifestamos aqui nossa gratidão por uma noite simplesmente inesquecível, para a qual também em muito contribuíram a extrema sensibilidade de Felipe Hirsch na direção, o mesmo aplicando-se a Daniela Thomas na direção de arte, a Beto Bruel em sua opção por uma única fonte de luz - a outra já estava materializada na cena - e a irrepreensível pesquisa e compilação realizada por Newton Goldman.

VIVER SEM TEMPOS MORTOS - Texto de Simone de Beauvoir. Direção de Felipe Hirsch. Com Fernanda Montenegro. Oi Futuro. Sexta, sábado e domingo às 19h30.

Um comentário:

  1. OBRIGADA, FERNANDA!! Que dizer além disto? Uma aula do início ao fim, tanto de interpretação (magnífica, brilhante, espetacular) quanto sobre o mundo desta Mulher que foi Simone de Beauvoir, alguém muito à frente de seu tempo.
    Não bastasse tudo isso, ainda somos brindados com um debate após o espetáculo onde um pouco mais de Simone nos é dito. AMEI!!

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