quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Bugiaria”

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O papel do teatro em destaque

 

Lionel Fischer

 

Dividido em três blocos – o processo inquisitório de João Cointa, francês que veio com Villegaignon acalentando o sonho de fundar a França Antártica no Rio, no século XVI; descrições de rituais antropofágicos dos índios brasileiros (Jean de Läry, “Viagem à terra do Brasil); e relatos de Auto-de-Fé da Inquisição por vários autores contemporâneos -, “Bugiaria” está em cartaz no Teatro Glauce Rocha, marcando o início do grupo Péssima Companhia. Moacir Chaves assina a dramaturgia e a direção, estando o elenco formado por Alberto Magalhães, Cândido Damm, Cláudio Baltar, Claudio Mendes, Josie Antello e Orã Figueiredo.

Embora o parágrafo acima possa sugerir que “Bugiaria” tenha como principal objetivo relatar fatos históricos, a proposta do grupo visa fundamentalmente estabelecer relações que possibilitem um olhar crítico. Assim, se por um lado a platéia tem acesso a informações sobre passagens de nossa História, ao mesmo tempo a forma de narrá-las invariavelmente contém uma opinião – nem sempre unânime, pois não raro a postura do narrador é discreta ou acintosamente contestada pelos demais.

Quando se trata de assumir personagens, os atores o fazem com óbvio distanciamento, deixando evidente que recursos expressivos estão sendo acionados, muito mais do que uma busca de resultados a partir do surrado processo de identificação. Na realidade, Moacir Chaves e seu grupo estão contando uma história, sem dúvida, mas pondo em evidência – e em discussão – o papel do teatro, do ator contemporâneo e das relações entre palco e platéia.

Tal objetivo é extremamente oportuno, já que a cena carioca passa por um momento crítico: ao mesmo tempo em que o público comparece cada vez menos às casas de espetáculo, quando o faz quase sempre se depara com um prolongamento da estética televisiva.

Portanto, acredito piamente que a platéia aplaudirá com entusiasmo o engraçadíssimo e original espetáculo desta irreverente trupe. E por uma série de razões, a começar pela dinâmica cênica criada por Moacir Chaves – o diretor exibe criatividade em suas marcações e grande ousadia rítmica, alternando momentos de grande lentidão com outros de velocidade desconcertante, sempre de forma imprevisível.

Mas nada seria possível sem a presença de um elenco excepcionalmente preparado. Nas passagens em que a habilidade e vigor físico predominam, Alberto Magalhães e Cláudio Baltar fazem prodígios de elasticidade e precisão. Josie Antello, também muito expressiva corporalmente, dá um show quando se trata de impor à voz modulações imprevistas. Quanto a Cândido Damm, Claudio Mendes e Orã Figueiredo, a eles dedico um parágrafo à parte.

Ainda bastante jovens, mas já tendo acumulado grande experiência profissional, os três evidenciam qualidades que os colocam entre os melhores de sua geração – vozes disciplinadas, expressividade corporal, aguda percepção das muitas possibilidades da contracena, presença cênica etc. Por isso são muitas vezes aplaudidos em cena aberta – o público sabe que está diante de ATORES e não de robocops fabricados em academias de musculação, e que cada vez mais têm a pretensão de ocupar um espaço que definitivamente não lhes pertence.

Na equipe técnica, a mesma eficiência se faz presente. A instigante cenografia de Fernando Mello sugere, à primeira vista, um depósito abandonado, repleto de entulhos; mas é possível que ali tenha existido um teatro, cujos códigos envelhecidos seria preciso negar para então se criar  outro. Bia Salgado, Luciana Maia e Maysa Braga assinam figurinos divertidos e críticos, cabendo ainda destacar a diversificada e criativa trilha sonora de Marco Abujamra e, sobretudo, a luz de Aurélio de Simoni – trabalhando com angulações surpreendentes e focos com baixa intensidade, Aurélio cria uma atmosfera que sugere a imperiosa necessidade de se buscar um novo e renovado ar. Aliás, essa nos parece a finalidade maior deste excelente espetáculo.

BUGIARIA – Textos de vários autores. Direção de Moacir Chaves. Com a Péssima Companhia. Teatro Glauce Rocha.

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