quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“A casa dos budas ditosos”

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Sexo, poesia e humanidade

 

Lionel Fischer

 

Pouco antes do início do espetáculo, a platéia escuta uma gravação. A voz é do autor, João Ubaldo Ribeiro, que informa que o texto teria sua origem em uma coleção de 30 fitas gravadas, deixadas em sua portaria por uma senhora já entrada em anos, que não quis se identificar. De posse do volumoso material – que narra com incrível riqueza de detalhes as incontáveis e diversificadas aventuras sexuais da suposta autora – João Ubaldo o converteu no livro “A casa dos budas ditosos”, grande sucesso de público e de crítica.

Mas é óbvio que tudo se resume a uma deliciosa piada, já que a libertina em questão é um ser imaginário: só passou a existir graças ao imenso talento do escritor, que teve o presente livro adaptado para o teatro por Domingos Oliveira. Após cumprir brilhante temporada em São Paulo – Fernanda Torres recebeu o Prêmio Shell de Melhor Atriz de 2003 – o espetáculo dirigido por Domingos está em cartaz no Centro Cultural Correios.

Lançado com estardalhaço, “A casa dos budas ditosos” promoveu uma verdadeira correria às livrarias, em especial dos libidinosos de plantão, que acreditaram que o livro se limitaria a detalhar as incontáveis escaramuças sexuais de uma libertina baiana de 68 anos. Mas é claro que ele transcende em muito as aparentes premissas que lhe deram origem.

Na verdade, o que torna “A casa dos budas ditosos” um livro obrigatório é seu caráter filosófico. Ao contrário dos heróis gregos, obrigados pelos deuses a cumprir seu destino, nossa heróica baiana exerce plenamente seu arbítrio. Contrariando todas as normas vigentes, ela converte o próprio corpo em agente de sua liberdade, vivendo todas as experiências que lhe interessam - até mesmo algumas de natureza incestuosa. E se por um lado lança mão de um vocabulário, digamos, bem objetivo, não raro também se vale de considerações de grande beleza poética, demonstrando que o profano e o sagrado podem perfeitamente conviver em harmonia.

Contando com primorosa adaptação de Domingos Oliveira – nosso maior especialista em questões amorosas – o texto de João Ubaldo recebeu maravilhosa versão cênica. Ao optar por manter a personagem sentada diante de uma mesa e falando ao microfone, o encenador obriga a platéia a concentrar-se nos conteúdos propostos pelo autor, assim explicitados com total clareza.

Ao entrar em cena com o palco tenuamente iluminado, e vestida lindamente por Cristina Camargo, já em seu curto caminhar Fernanda Torres evidencia um charme muito parecido ao que sua mãe (Fernanda Montenegro) exibe desde sempre. Em seguida, e com infinita graça, ela se senta, as luzes se acentuam e o espetáculo começa. A partir daí, o público tem o privilégio de, mais uma vez, conferir o imenso talento da atriz, que  exibe aqui a melhor performance de sua carreira.

Nas partes mais picantes, Fernanda Torres confere beleza e humanidade a momentos que, se reduzidos à sua especificidade, jamais ultrapassariam a mera pornografia. E nas passagens mais poéticas a atriz valoriza ao máximo todas as imprevistas e mais do que pertinentes reflexões do autor. Sob todo os pontos de vista, uma atuação extraordinária, que certamente haverá de ser prestigiada de forma incondicional pelo público carioca.

A CASA DOS BUDAS DITOSOS – Texto de João Ubaldo Ribeiro. Adaptação e direção de Domingos Oliveira. Com Fernanda Torres. Centro Cultural Correios.

 

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