sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“Sonata Kreutzer”

 

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Desconcertante sinceridade de um assassino

 

Lionel Fischer

 

Escrita em 1883 por Leon Tolstói (1828-1910), a novela “Sonata Kreutzer” chegou a ser proibida pela censura do Tzar. As razões de tal atitude jamais ficaram claras, mas é óbvio que deve ter incomodado um discurso que pregava a eliminação da paixão e do sexo como única alternativa para a humanidade atingir sua finalidade: a bondade e união entre todos. Adaptada para o palco por Fernanda Schnoor  e Eduardo Wotizik, também diretor do espetáculo, “Sonata Kreutzer” está em cartaz no Teatro Sesc Copacabana, protagonizada por Luís Melo.

No original, a ação se passa num trem. Aqui, tudo ocorre numa praça. O único personagem narra os acontecimentos que o levaram a matar a esposa, uma vez convencido de que ela o traía. Mas o fascínio de seu relato não está atrelado à descrição de fatos, mas às causas que o geraram. Em sua desconcertante sinceridade, ele jamais busca respostas capazes de justificar seu gesto e assim amenizar sua possível culpa. Ao contrário: ainda que absolvido pela Justiça, promove uma implacável devassa em sua alma, adotando idêntico procedimento em relação à mulher. E tudo isso sem desprezar os valores predominantes em sua época, que a seu ver também contribuíram para a tragédia.

Neste texto belíssimo, de intensa poesia e dramaticidade, Tolstói não apenas analisa uma personalidade atormentada, mas sobretudo coloca em discussão a finalidade da existência humana. Entretanto, sua argumentação não deixa de ser polêmica: afinal, como imaginar viável uma sociedade cuja felicidade estaria condicionada à sumária eliminação das paixões? E será que na ausência delas escaparíamos ao inferno (sugerido pelo autor) de relações afetivas invariavelmente castradoras e apenas mantidas com objetivos de procriação?

Dando prosseguimento à sua busca de uma estética teatral cada vez mais despojada e capaz (ao menos teoricamente) de valorizar o essencial da representação – a palavra, o ator e o público – Wotzik cria uma dinâmica que prioriza o texto e a performance do intérprete. O único objeto utilizado pela cenógrafa Teca Fichinski é um pequeno banco. Mas a opção do encenador revela-se acertada, já que o que realmente importa é o pungente depoimento do personagem, a amarga crueza e lucidez de suas confissões.

O trabalho de Wotzik, portanto, deve ser analisado em função da atuação de Luís Melo. E como esta é simplesmente magnífica, é evidente que ao encenador deve ser creditada uma importante parcela no inquestionável êxito desta montagem irretocável, que certamente o público haverá de prestigiar de forma incondicional.

Em minha opinião, Luís Melo é o ator brasileiro mais completo da atualidade. Por isso não estranho alguns prodígios que realiza no atual espetáculo, tais como: preencher com maestria silêncios desconcertantes; fazer de suas mãos crispadas a perfeita materialização de múltiplas angústias; chegar ao requinte de converter o próprio suor num elemento expressivo, como se seu dilaceramento lhe escapasse até mesmo pelos poros. E se somarmos a tudo isso uma voz maravilhosa, uma capacidade de entrega absoluta e uma inteligência capaz de valorizar todos os conteúdos implícitos, chega-se então a uma evidência: Luís Melo é de fato um ator abençoado pelos caprichosos deuses do teatro.

Com relação ao restante da equipe técnica, são corretos o figurino de Fichinski e a iluminação de Emiliano Ribeiro, cabendo destacar a eficiente atuação da preparadora corporal Rossela Terranova e a ótima adaptação desta obra-prima de Tolstói.

SONATA KREUTZER – Texto de Leon Tolstói. Adaptação de Fernanda Schnoor e Eduardo Wotzik. Direção de Wotzik. Com Luís Melo. Teatro Sesc Copacabana.

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