quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“Epifanias”

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Sonho de excepcional beleza

 

Lionel Fischer

 

Falecido em 1912, o dramaturgo sueco August Strindberg deixou uma obra na qual se inserem títulos importantes – a trilogia “A estrada de Damasco”, “Senhorita Júlia”, “O pai”, “A sonata dos espectros” e “Os credores”, entre muitas outras peças. Dos grandes dramaturgos deste século, Strindberg é certamente aquele que mais impregnou seus trabalhos de conotações biográficas, repartindo sua conturbada e paranóica personalidade entre dezenas de personagens. Esta característica é particularmente visível em “O sonho”, em cartaz no Espaço III, rebatizada de “Epifanias”, encenação de Moacyr Góes.

Embora possua passagens brilhantes e questionamentos mais do que pertinentes sobre algumas das mais dilacerantes dúvidas humanas, “O sonho” é uma peça que padece de graves defeitos: é gigantesca, bastante confusa e evidencia uma estrutura dramatúrgica que, sob o pretexto de colocar em cena a ilogicidade do sonho, termina por privilegiar o caos. A adaptação feita por Moacyr Góes e seu grupo , ao contrário, reduz o original àquilo que possui de essencial. E tem o mérito suplementar – e sumamente original – de inverter a perspectiva básica do texto: ao invés de tudo ocorrer a partir do “olhar” da deusa Inês, que desce a Terra para tentar entender o sofrimento humano, são os homens que lhe oferecem o retrato patético, comovente e poético de suas vidas. A “revelação”, portanto, passa a ser humana, e a deusa se converte em receptora desta curiosa epifania.

Sob todos os aspectos, trata-se da melhor encenação de Góes desde a inesquecível “Escola de bufões”. A começar pela tradução de Clara Góes e Maria de Medici, de extrema fluência. A cenografia de José Dias é de enganosa simplicidade: a partir de sobras de outras montagens do grupo – partes do container utilizado em “Conferência a uma academia”,  panos, cordas, caixotes e caixinhas que escondem segredos e poesias. Dias criou uma ambientação que não situa a montagem em nenhum lugar específico, já que o fundamental é fornecer uma visão planetária do sofrimento humano. O mesmo critério de reciclar poeticamente as sobras de trabalhos anteriores norteou Samuel Abrantes na confecção dos deslumbrantes figurinos: botões, trapos, cacos, panos impregnados de anteriores vivências, enfim, “roupas” do grupo convertidas em invólucros de novos sonhos. A trilha sonora, de autoria do próprio Góes, mescla canções e ritmos de vários quadrantes, e é de uma beleza e eficiência avassaladoras.

A montagem de “Epifanias” ratifica algo que só invejosos natos ou hereditários ainda ousam contestar: Moacyr Góes é, disparado, o maior encenador carioca. Além de estar muito próximo do domínio completo dos elementos que compõem o espetáculo – quase me esqueci de mencionar que a expressiva iluminação de “Epifanias” também é de sua autoria –Góes leva sobre os demais diretores cariocas (muitos sem dúvida competentes) uma significativa vantagem: é um poeta, ou seja, não apenas compreende os conceitos inerentes à Beleza como é capaz de materializá-la. A seguir, cito apenas um exemplo dentre tantos verificáveis em Epifanias”.

Há um momento em que um personagem evoca a partida do navio onde está seu filho; como o ator que articula este texto o faz muito bem, um encenador convencional se daria por satisfeito; mas Góes faz navegar no fundo do palco o barco que se afasta e há nesse cortejo que flutua sobre as ondas uma tal carga de melancolia que o sofrimento do pai ganha contornos trágicos. Um trabalho admirável, que tem a sustentá-lo um elenco homogêneo e excepcionalmente apto a responder a todas as solicitações da direção. E como tudo ocorre de forma a não destacar um determinado ator, limito-me a parabenizar Leon Góes, Floriano Peixoto, Sílvia Buarque, Antonella Batista, Maurício Marques, Adriana Garambone, Gaspar Filho e Paulo Vespúcio.

EPIFANIAS – Adaptação de “O sonho”, de Strinberg. Direção de Moacyr Góes. Com Leon Góes, Sílvia Buarque e outros.

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