sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“Sermão da quarta-feira de cinzas”

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Brilhante pregação na praça

 

Lionel Fischer

 

Tendo como principal proposta exortar cristãos e não-cristãos a reconhecerem a insignificância do ser humano, “Sermão da quarta-feira de cinzas”, do padre Antônio Vieira (1608-1697), está em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. A direção é de Moacir Chaves, cabendo a Pedro Paulo Rangel dar vida ao missionário jesuíta português.

Autor de cerca de duzentos arrebatados e eloqüentes sermões, melhor tradução do rebuscado estilo barroco do século XVII, Antônio Vieira utilizava muitas vezes a catequese como um pretexto para abordar temas mundanos, como política e colonização. No presente caso, porém, o que está em causa é uma aguda reflexão sobre a atitude humana diante da vida e, sobretudo, com relação à morte.

Na adaptação de Chaves, Vieira surge como um pregador que percorre as praças levando sua mensagem. A contemporaneidade do projeto se explicita nos confetes e serpentinas que enfeitam o cenário e sugerem que a ação se passa numa quarta-feira de cinzas. Afora isso, há uma passagem em que o personagem se relaciona com o público como se protagonizasse um programa de auditório, além da projeção de filmes que reforçam, às vezes ironicamente, o conteúdo das idéias apresentadas.

O objetivo básico do encenador é possibilitar à platéia um contraponto a tantas e não raro inúteis pregações contemporâneas que, sob os mais variados pretextos, jamais ou quase nunca permitem um exame mais acurado acerca da essência da condição humana. Em vez de teatralizar em excesso o texto, Chaves conduz a montagem como uma conversa, cujo tema, progressivamente aprofundado, é também retomado várias vezes com sutis mudanças de ritmo e de estado de espírito do protagonista. É como se Vieira tentasse vários caminhos em função da receptividade do “auditório”, valendo-se de múltiplas imagens e de sua poderosa capacidade de argumentação.

Mas o grande mérito de Moacir Chaves foi o de ter convencido Pedro Paulo Rangel a fazer o espetáculo. Um dos maiores comediantes do país, Pepê é também um ator dramático fantástico, capaz de fazer qualquer papel de forma brilhante. E “Sermão...” possibilita ao intérprete mesclar humor e dramaticidade, daí resultando um trabalho inesquecível.

Um observador pouco atento poderá ser induzido ao erro de acreditar que não seriam assim tão grandes as dificuldades enfrentadas pelo ator para dar vida ao personagem. Afinal, ele parece falar bem mais do que interpretar o texto. Ocorre, porém, que é justamente no acerto exato do tom que consiste o principal mérito de Pepê. Em vez de partir para uma linha arrebatada, exacerbando um possível furor catequético, o ator prioriza a clareza expositiva, a ela agregando uma malícia que facilita a imediata cumplicidade – é como se Pepê piscasse o olho para a platéia e a todo momento dissesse: “Vocês sabem do que eu estou falando”.

Presença absolutamente fascinante em cena, Pepê é um desses atores que amesquinham adjetivos. Dicção perfeita, apuradíssima noção de ritmo, expressivo e convincente em todos os momentos, o intérprete demonstra mais uma vez o enorme talento que possui. E também sua elegância e generosidade, pois ao receber os aplausos na noite de estréia fez absoluta questão de reparti-los com a atriz Kelzy Ecard, que diz apenas uma frase e atua como contra-regra.

O cenário de Fernando Mello da Costa reproduz de forma correta uma pracinha de pedras portuguesas. O figurino, também de sua autoria, aproxima apropriadamente as duas épocas – Vieira usa relógio e uma roupa atual, sobre a qual uma capa sugere que o personagem “também” pertence ao século XVII. A trilha sonora de Tato Taborda segue o mesmo processo de aproximação: pouco antes de o espetáculo começar, marchinhas carnavalescas se fazem ouvir, mais tarde substituídas por cantos litúrgicos. A iluminação de Aurélio de Simoni enfatiza com sensibilidade os climas propostos pelo texto e direção.

SERMÃO DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS – Texto do padre Antônio Vieira. Direção de Moacir Chaves. Com Pedro Paulo Rangel e Kelzy Ecard. Espaço Cultural Sérgio Porto.

 

 

 

 

 

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