quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Pérola”

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Um carinhoso mosaico afetivo

 

Lionel Fischer

 

Na hipótese de que Mauro Rasi carecesse de outras qualidades, pelo menos uma não lhe poderia ser negada: a fidelidade. A si mesmo e às próprias recordações, de onde sempre extraiu a matéria-prima que lhe permitiu criar uma obra da mais alta significação. Portanto, nada mais natural que em “Pérola”, em cartaz no Teatro do Leblon, o dramaturgo tenha mais uma vez empreendido uma devassa em sua memória a fim de trazer à tona personagens e situações determinantes em sua vida. Dirigida pelo autor, a montagem tem elenco formado por Vera Holtz, Anna Aguiar, Sergio Mamberti, Emílio de Mello, Sonia Guedes e Edgar Amorim.

Ao eleger como protagonista sua própria mãe, falecida recentemente, Rasi poderia apenas estar pretendendo homenagear uma mulher de fascinante personalidade, que acreditava poder conciliar as prosaicas exigências do dia-a-dia com um enredo hollywoodiano. E embora isto esteja presente na peça, seu principal mérito reside na abordagem hilariante e terna que o dramaturgo faz de seu universo familiar, de inegável potencial melodramático e não raro operístico.

Exibindo uma estrutura narrativa semelhante à utilizada por Tennesee Williams em “À margem da vida”, Rasi está em cena na pele de Emílio, que participa da ação ao mesmo tempo em que a comenta – ou seja, ele conta uma história para a platéia de acordo com sua ótica, que pode ou não ser rigorosamente verdadeira. Mas a verossimilhança é o que menos importa, pois o que está em causa não é uma mera descrição de fatos e sim a impressão por eles causada, a forma como o autor os vivenciou e as conseqüências que provocaram, estas sim determinantes na construção deste emocionado e carinhoso mosaico afetivo.

Escrita com extraordinária competência, “Pérola” cativa o espectador desde o início. Isto se deve a uma série de fatores, dentre os quais posso destacar a vivacidade dos diálogos, as tiradas e observações surpreendentes, o humor e ternura do autor em relação aos personagens mesmo quando passíveis de críticas. Em resumo: uma peça admirável deste dramaturgo de exceção que é Mauro Rasi, que consegue atingir o coração da platéia e simultaneamente diverti-la, possibilitando a salutar convivência entre risos e lágrimas.

A montagem se organiza de forma a impor um clima cinematográfico às lembranças materializadas. Tudo sugere a realidade, mas ao mesmo tempo a fantasia a deforma propositadamente, num constante oscilar de inegável poder de sedução. À leveza e agilidade das marcações se somam a progressiva transformação do ótimo cenário de Gringo Cardia, que acaba convertendo o palco numa gigantesca piscina, de evidente caráter simbólico; a luz de Maneco Quinderé, que banha a cena de luminosidades que remetem aos filmes de Fellini; a trilha sonora de Marcos Ribas de Faria, que tem como eixo central composições de Nino Rota e irresistíveis mambos, boleros e citações de Roberto Carlos. E também aos figurinos de Beth Filipeck, impecáveis no retrato da moda interiorana dos anos 1950.

Mas todo este acúmulo de competências se revelaria vão se “Pérola” não contasse com um elenco capaz de valorizar ao máximo os excepcionais personagens criados por Rasi. Felizmente, os profissionais escolhidos têm desempenhos que demonstram, uma vez mais, a excelência de nossos atores. A começar por Vera Holtz. Na pele da protagonista, a atriz está simplesmente irretocável, conseguindo transmitir todas as facetas de uma personalidade que combinava, em igual medida, sedução, despotismo, irritabilidade e desmedida capacidade de sonhar.

Sergio Maberti também está excelente como Vado (marido de Pérola), homem bonachão e emotivo, completamente apaixonado e dominado pela  mulher. Sonia Guedes convence plenamente como a tia chantagista e invejosa, o mesmo podendo ser dito de Emílio de Mello, que impõe ao narrador uma incrível diversidade de climas emocionais. Anna Aguiar (irmã) e Edgar Amorim (cunhado) fazem um casal hilariante em seu fanatismo evangélico.

PÉROLA – Texto e direção de Mauro Rasi. Com Vera Holtz, Emílo de Mello, Sergio Mamberti e outros.

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