terça-feira, 15 de maio de 2012

Drama, Teatro e Realidade

S. W. Dawson


          Um dos argumentos mais repetidos e menos vantajosos acerca do drama encontra-se centrado à volta da natureza da "ilusão" dramática. A circunstância de Aristóteles ter colocado o drama entre as expressões artísticas imitativas deu origem, durante o Renascimento, à idéia de que os espectadores eram, de certa maneira, enganados ou levados a creditar que o que acontecia no palco estava na "realidade" a acontecer e que o drama deveria ser limitado, tanto quanto possível, às probabilidades da vida real. Isso originou a adoção das unidades de tempo e lugar que, levadas à forma extrema, teriam limitado a duração da ação à duração da representação e o local a uma área única, equivalente à do palco.

          Não é este o lugar para analisarmos as confusões e contradições que esta idéia deu origem, muitas das quais aparecem nos ensaios de Dryden. Toda esta estrutura absurda é destruída nalgumas páginas de "Preface to Shakespeare", de Johnson: "É um pressuposto falso o de qualquer representação ser tomada por realidade, o de qualquer fábula dramática ser jamais digna de crédito na sua substância ou susceptível de ser acreditada por um só momento...Perguntar-se-á como é que o drama comove, se não é susceptível de ser acreditado. É-o com todo o crédito devido ao drama".

          Johnson baseia a sua defesa de Shakespeare nos teóricos confusos, do mesmo modo que Sidney baseia a sua defesa da poesia nos moralistas confusos: "Bem, ele nada diz acerca do poeta e, por isso, nunca mentiu".

          Na Inglaterra as unidades não sobreviveram ao ataque de Johnson apoiado como estava em Shakespeare. Mas o desenvolvimento técnico do teatro tornou possível um grau progressivo de naturalismo nos cenários, de tal modo que nos princípios do século XX chegou a ser aceito que, pelo menos para uma peça moderna, a norma deveria ser um palco-moldura arranjado de tal modo que se parecesse, tanto quanto possível, com uma sala sem uma das paredes, na qual os atores reproduziam as ações e a conversa da "vida real". O drama que parecia mais naturalmente a este teatro tratava de problemas sociais num meio predominantemente classe-média. O nome de Ibsen era um elemento a seu favor.

          O declínio desta espécie de drama (que até muito recentemente dominava pelo menos o teatro comercial) é a linha central que corre através da história do drama contemporâneo e seria impossível aqui enumerar todas as correntes diversas que contribuíram para isso. Poetas como Yeats opunham-se a que o discurso poético fosse banido do teatro; outros acentuavam as possibilidades de movimento não naturalista, como no balé, e alguns produtores teatrais desejavam efeitos visuais mais "estéticos". Revolucionários sociais criticavam a natureza implicitamente burguesa da forma, e, de outro ponto de vista, as afinidades entre o drama e o ritual eram discutidas.

          Mas, na Inglaterra e em grande medida igualmente no continente, a influência individual mais importante foi Shakespeare. Investigações feitas acerca da natureza do teatro de Shakespeare por eruditos que também se preocupavam com a execução dramática, convenceram-nos de que a moda de encenar Shakespeare em moldes naturalistas no último quarto do século XIX, desviava a atenção da linguagem e quebrava a continuidade dramática. É destas pesquisas e das experiências práticas que se seguiram que deriva nossa compreensão da natureza da convenção dramática.

          A base de uma tal compreensão é o reconhecimento de que a ação é a linguagem, que a linguagem cria o "mundo" dramático da peça e que a relação entre este mundo e a realidade é metafórica. Por isso a espécie de palco, os cenários e o estilo da representação deveriam ser tais que ajudassem a linguagem na criação deste mundo metafórico. A linguagem de uma peça estabelece quais os critérios de possibilidade e probabilidade para o público. O movimento, o gesto, o figurino e o cenário são auxiliares que, falando em termos ideais, deveriam brotar de uma linguagem criadora.

          As peças de Ibsen serão talvez o melhor exemplo para justificar este postulado. Ninguém hoje consideraria Ibsen primariamente como um dramaturgo da problemática social. O seu drama sobrevive às circunstâncias sociais em que foi produzido. Mas, dramaticamente, Ibsen pertence a um mundo específico, cuja realidade poética dominante são casas e salas.

          Pense-se em A Casa de Bonecas, em Romersholn (o nome de uma casa), nas águas-furtadas de O pato selvagem e nos passos de João Gabriel Borkman ressoando de maneira opressiva na sala do andar de baixo. Muitas das personagens de Ibsen fecham-se obrigatoriamente numa sala ou numa casa contra o perigo e a liberdade da vida no mundo exterior. Todo o modo complexo pelo qual, na extraordinária peça O Construtor, as casas e as tores se tornam, em primeiro lugar, símbolos antagônicos, constitui o clímax da visão dramática de Ibsen. 

          Toda uma sala, com a sugestão de uma casa completa que se lhe segue, é, deste modo, uma moldura essencial para um mundo que é criado pela linguagem de Ibsen e é, por assim dizer, a unidade básica da sua imaginação dramática. É interessante notar que o dramaturgo, nas últimas peças, se afasta gradualmente das salas e das casas para o ar livre e, ao mesmo tempo, amplia os recursos do teatro naturalista até que em Quando nós mortos acordamos, encontramos a seguinte indicação cênica:

Subitamente ouve-se um estrondo, como de um trovão, vindo das neves lá do alto. A avalanche precipita-se a uma velocidade alucinante. Entrevê-se indistintamente que o professor Rubeck e Irene, arremessados pela neve, ficam soterrados debaixo dela.


          Nada podia ilustrar melhor (apesar de haver exemplos em Shakespeare) a relação amor-ódio entre um grande dramaturgo e as necessidades do teatro representado, do que as exigências absurdas implícitas nesta única indicação cênica.
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Extraído de O Drama e o Dramático: a linguagem crítica/LYSIA, Editores e Livreiros, Lisboa. Tradução de Maria Salomé Machado.

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