Dostoiévski e o Teatro
Sábato Magaldi
Qualquer leitor menos desatento percebe a teatralidade dos romances de Dostoiévski. Não só pela importância dos diálogos em meio à narrativa. As personagens estão carregadas de uma dramaticidade que as situa sempre em tensão violenta, prestes a explodir. É aquele gosto de apresentar os conflitos em plena crise, dentro da síntese requerida pelo palco. Apenas Shakespeare tem a intensidade dramática da obra romanesca de Dostoiévski.
Sabe-se, aliás, que o autor de Os Irmãos Karamazov escreveu dois dramas na juventude, infelizmente perdidos: Maria Stuart e Boris Godunov, que se tende a aproximar das obras de Schiller e Pushkin. Seu interesse pelo teatro se manifestou ainda no desempenho de O Inspetor, de Gogol, em 1860 (quando contava 38 anos de idade), e na paródia que fez de Hamlet, em 1866, interpretando ainda o papel do rei. A correspondência dá conta da curiosidade de Dostoiévski pelo movimento teatral.
Consciente, porém, de que um gênero exige linguagem própria, Dostoiévski não era favorável às adaptações de seus romances. Em carta a Varvara Obolenskaja, afirmou categoricamente que "a forma épica não encontra nunca correspondência dramática". Um pensamento reclama uma certa forma e não outra, o que redundaria na incomunicabilidade dos gêneros.
Essa convicção não impediu o grande Nemirovich Dantchenko, co-diretor do Teatro de Arte de Moscou, juntamente com Stanislavski, de afirmar: "Dostoiévski escrevia como romancista, mas sentia como autor dramático. Imagens e palavras têm nele valor cênico". E o poeta e ensaísta Vjaceslav Ivanov publicou um volume em que chama de tragédias os romances dos dostoievskianos.
Dostoiévski estava ainda a onze anos da morte, cujo centenário se comemorou em 1981, quando começaram as adaptações cênicas de sua obra. E dezenas delas não puderam ser levadas ao palco, porque a Censura, como é de seu hábito, se apressou a interditá-las. Stanislavski precisou mudar o nome do autor e das personagens, para furar o bloqueio sensório, na encenação de Foma, em que se transformou A Aldeia de Stepantchkovo e Seus Habitantes, em 1891 (e Dostoiévski já estava morto há dez anos...)
O êxito cênico do romancista ligou-se fundamentalmente ao Teatro de Arte e a Nemirovich Dantchenko. Os Irmãos Karamazov subiu ao palco, ali, na temporada de 1910. Seguiu-se a montagem de Nikolai Stavrogin (fragmentos de Os Demônios), em 1913. A Aldeia de Stepantchkovo voltou à cena em 1917. O Sonho do Tio estreou em 1929. Como se vê, uma preocupação contínua com a obra dostoievskiana só interrompida pelo período stalinista, em que ela pareceu prejudicial, pelos elementos religiosos e místicos das personagens. Mas sabe-se que, encerrada a ditadura sombria de Stalin, Dostoiévski inspirou de novo o palco soviético, e se comemorou condignamente o 75º aniversário de sua morte, em 1956.
Na primeira metade do século XX, ficaram famosas algumas encenações ocidentais de Dostoiévski. Citam-se particularmente, na França, as de Jacques Copeau para Os irmãos Karamazov e de Gastan Baty para Crime e Castigo. Na Inglaterra, Irving encenou Crime e Castigo. Na década de 50, Jacques Mauclair realizou, em Paris, uma memorável interpretação de O Eterno Marido. São Paulo viu, em 1958, a adaptação do italiano Diego Fabbri para Os Demônios e, em 1964, Berta Zemel criou Noites Brancas para o Teatro Popular do Sesi. Noites Brancas tinha sobretudo um apelo lírico e delicado, que acrescentava uma nota diferente ao conturbado universo dostoievskiano. Esse clima não impediu que 84 mil espectadores (o dobro do número registrado na montagem anterior) vissem a encenação, estreada no Teatro Maria Della Costa.
Do que foi dado ao público paulistano assistir, Os Demônios, na versão de Fabbri, distinguiu-se como a mais poderosa imagem cênica de Dostoiévski. Não se poderia afirmar que a força da adaptação corresponda, no teatro, à que tem no romance, na literatura. Mas o espírito e a grandeza de Dostoiévski estão presentes o tempo inteiro no palco, na montagem do elenco do Teatro Estável de Gênova.
Diferentemente da maioria das adaptações, que empobrecem o original, o texto de Fabbri procura reter-lhe todas as linhas e as personagens principais, simplificando apenas o que romperia a necessária unidade. No livro, por exemplo, Chatov reencontra a esposa. Na peça, ele é solteiro e mostra, antes de ser assassinado, o desejo de constituir família e viver em paz. Fabbri preserva e explora meia dúzia, ao menos, de cenas geniais, que sozinhas, são superiores a noventa por cento da literatura dramática.
Os grandes momentos do romance revivem no palco. E estão definidas, com admirável poder de síntese, suas figuras centrais - Stavroguin, Piotr Stepanovich, Chatov e Kirillov. Em rápidas iluminações, justifica-se porque eles se situam entre as personagens fundamentais da história literária. "Demônios" revolucionários, que se acham na trilha de uma santidade especial, mas que o autor, já recolhido da experiência subversiva da juventude, condena com infinita compreensão, acreditando que a Rússia deve ser exorcizada de sua presença.
Stavroguin, sobretudo, por mais que possa estar indicado na narrativa, e se confesse ao bispo Tikhon, guarda um segredo que o suicídio cobre iremediavelmente. Mostrar-lhe os traços genéricos é simples: verdadeiro Don Juan das estepes, indivíduo de força extraordinária, que leva os outros à irrestrita adoração ou ao total repúdio (e é por isso considerado por Piotr o homem necessário para liderar o movimento revolucionário), sádico tremendo e masoquista ainda maior, parece incapaz de amar e de empenhar-se a fundo em qualquer coisa, definindo-se, para Romano Guardini, como a encarnação do mais tenebroso livro de Kierkegaard, O Conceito da Angústia.
"Como tinha caído muito baixo", Chatov dá-lhe em público uma bofetada, sem que ele reaja, quando a coragem e o destemor o caracterizam. Ele próprio diz a Daria Pavlovna: "Não consigo empenhar-me verdadeiramente nem no bem, nem no mal: eis a minha condição; poderei um dia encontrar alguma coisa em que empenhar-me a fundo, com toda a minha pessoa?" Logo adiante esclarece: "...vocês todos acreditaram que eu fosse um deus...e, ao invés, era um medíocre". Mas, em lugar de considerarmos deserto o coração de Stavroguin, o que já passou em julgado para a crítica, temos vontade de acreditá-lo sensível e grande demais, nesse desespero de quem não consegue resolver no plano das limitações humanas sua imensa ternura.
A psicanálise encontraria a chave de Stavroguin na confissão que ele faz a Tikhon (apêndice subtraído ao romance pelo autor e incorporado por Fabbri à peça), segundo a qual possuiu uma menina e deixou que ela se enforcasse, certa de ter morto Deus. Foi o profundo sentimento de culpa, sem dúvida, que o levou a sentir-se responsável por toda a história da menina, e é pelo desejo de punir-se que se casa com uma aleijada, ademais doente mental. Chatov já havia visto nesse matrimônio a paixão do martírio e a volúpia moral, esse prazer da vergonha e do castigo.
Fica-se ainda em dúvida se é a indiferença ou a perversidade que induz Stavroguin a dar dinheiro para a supressão de Maria, ou se é a delicadeza moral que o obriga a sentir-se responsável pelo crime, já que poderia prevê-lo e evitá-lo. A aventura humana de Stavroguin, porém, não se reduz às coordenadas psicológicas. Ele não se empenha no bem e no mal porque está acima dessas categoria éticas, no plano efetivo do "demônio" que deseja substituir-se a Deus, ressentido com o poder do criador.
Numa demonstração inequívoca de orgulho transcendente, Stavroguin fala ao bispo: "...Não me basta nem o seu perdão, nem o dos outros, nem o de Deus, nem...o de Cristo! Sou eu que me quero perdoar". A impossibilidade de admitir a condição conduz Stavroguin ao suicídio. Não se sabe até que ponto a visão de Tikhon, prevendo o que sucederá a Stavroguin, mas impotente para evitá-la, se assemelha à atitude daqueles que não impediram o desespero final de Judas.
O itinerário de Stavroguin decorre da experiência sentimental e o de Kirillov, que se pode considerar uma réplica metafísica do amigo, surge como espantosa elaboração da inteligência. Não há, talvez, na peça de Fabbri, personagem mais bem talhada, aproveitando, aliás, os diálogos do romance.
A primeira aparição de Kirillov já o lança em seu clima. Diz ele a Stavroguin, enquanto brinca com uma criança: "Você sabe o que penso: que a morte não existe - existe apenas a vida". Esclarece que não se trata de vida futura: "Creio na eternidade da vida, simplesmente. Existem instantes em que o tempo pára e se torna eternidade". O conceito de harmonia se enriquece com o de liberdade e de absoluto, no diálogo de Piotr. "Se não existe Deus, sou eu - homem - que sou Deus".
E explica: "Se Deus existe, toda a vontade está nele, e eu não posso substrai-me à sua vontade; mas se Deus não existe, então minha vontade é soberana! E tenho o dever de afirmar minha absoluta liberdade, isto é, afirmar o arbítrio!" Aduz: "...Tenho o dever de matar-me; porque a plenitude do meu arbítrio - a minha suprema liberdade - é suicidar-me!"
Kirillov justifica-se intelectualmente, dizendo ser o único homem que se matará por arbítrio: "O homem não fez outra coisa senão inventar Deus para poder viver sem matar-se. Eu só, pela primeira vez na história universal, não quis inventar Deus". Tem uma última explicação, antes do suicídio: "...mas se as leis da Natureza não pouparam nem a 'Ele' (Cristo), se não pouparam nem o seu próprio milagre, mas o obrigaram também a viver em meio da mentira e a morrer pela mentira, isso significa que todo o planeta não é senão mentira e se assenta na mentira, e numa estúpida zombaria. Por que viver, então?"
Mais uma vez revolta, impossibilidade de aceitar a condição humana, ressentimento pela precariedade do destino, ciúme de Deus. Os niilistas de Dostoiévski nunca puderam suprimir a imagem daquele que pretendiam negar. O desprezo de Kirillov por tudo faz que ele admita confessar a autoria dos horrores que não praticou, assinando a declaração em francês, numa última prova de desapreço pela sociedade.
Tanto Kirillov como Stavroguin movem-se numa esfera individual, em que procuram resolver intimamente suas contradições. O "demônio" de Piotr Stepanovitch tem ação social marcada, isto é, arquiteta na prática o terror. Ninguém melhor do que ele ilustra a teoria de que os fins justificam os meios, colocando de cambulhada, na luta revolucinária, seus grandes ressentimetnos pessoais: o abandono em que o deixou o pai, e assassinando Chatov - como lhe disse Kirillov - não por ser um traidor, mas porque recebera dele, há tempos, uma cusparada na cara.
Não importam, contudo, os motivos de Piotr. Vale a pena conhecer seus ideais de paz social: "...é preciso que se instaure a obediência!" "A sede de instrução é já uma sede aristocrática". "Existindo a família e o amor, aparece logo o desejo de propriedade. Nós mataremos o desejo". Quer ele, com efeito, um ideal de mediocridade, em que os homens terão o que comer em troca da servidão. Seria Piotr um revolucionário russo ou um precursor dos totalitarismos?
Já Chatov foi exorcizado, reconhecendo-se em seus traços, como quer a crítica, o próprio Dostoiévski. Sente-se nele a encarnação do pan-eslavismo cristão do romancista. Chatov professa o que ouvira há tempos de Stavroguin: "Um ateu não pode ser russo; o ateu deixa logo de ser russo...", "...o único povo portador de Deus no mundo é o povo russo...porque o catolicismo romano não é mais cristianismo...O nosso povo é o próprio corpo de Cristo!"
Também ele concita Stavroguin a desfraldar uma bandeira, embora diferente da de Piotr: "A bandeira do povo russo à procura de Deus!" No diálogo com Kirillov, diz Chatov que eles adoeceram de heroísmo, e não lhe agradam mais os homens exepcionais. Essa completa aceitação da humanidade não parece melhor sucedida para Dostoiévski, já que, antes de ingressar na beatitude da vida comum, Chatov é sacrificado por Piotr. Não se poupará os que desejam ir longe demais, nem or próprios inocentes?
Não se pode negar que esse mundo é bem de Dostoiévski. O que valida Os Demônios de Fabbri. Mas, além do mérito dessa e de outras adaptações cênicas da obra dostoievskiana, vale a pena lembrar a influência que ela exerceu sobre os dramaturgos. E, no caso do Brasil, a admiração que Nelson Rodrigues, nosso maior autor, sempre devotou ao romancista, considerando-o a marca definitiva em seu teatro.
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Extraído de Depois do Espetáculo, Editora Perspectiva/2003
terça-feira, 1 de maio de 2012
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