quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Teatro pode dispensar o Texto?

Jean-Pierre Ryngaert


1. O corpo contra o texto


          Os anos 60 assistiram ao regresso de uma utopia, a da preeminência de uma teatralidade ancorada no corpo e na imaginação do ator. O "teatro de texto" é então suspeito de propagar uma cultura morta e inerte, na linha direta de valores denominados ora literários, ora burgueses. O questionamento radical do teatro de repertório e dos "clássicos" que constituem seu esqueleto tornou suspeito, então, qualquer texto de teatro, mesmo contemporâneo, a tal ponto que os autores vivos conheceram ainda maiores dificuldades para ter sua speças representadas nesse período.

          São o corpo e suas forças secretas e profundas que devem governar o teatro, pensava-se. O Living Theatre, nos Estados Unidos e depois na Europa, Grotowski na Polônia, e na esteira deles muitos dos partidários da criação coletiva, entregam-se à vertigem da improvisação, apelando por vezes à Antonin Artaud. Este havia sonhado com uma ressacralização do teatro, com uma eliminação do texto em favor do gesto e do movimento, com um contato direto entre o criador demiurgo e o palco:

A meu ver, ninguém tem o direito de se dizer autor, ou seja, criador, a não ser aquele a quem cabe lidar diretamente com o palco. ("O Teatro e seu Duplo")

          O abandono do texto corresponde, nos anos 60, a posições ideológicas. Na afirmação do corpo contra o texto (e às vezes também contra toda e qualquer palavra), reencontramos a velha desconfiança para com o intelecto e a nostalgia de um teatro popular desvencilhado do peso das palavras.

          Mas outros partidários da criação coletiva na época não tinham medo das palavras. Quando o Théâtre du Soleil encena 1789 ou A idade do ouro, o grupo exprime a necessidade de criar um teatro do momento, atravessado pelas urgências e necessidades do presente, independe das obrigações do repertório.

          Não obstante, 1789 é publicado na qualidade de texto e enquanto tal é reconhecido como autônomo. A dessacralização do texto nem sempre tem por conseqüência o abandono da escrita. Mas afirma-se que esta peça pode ser coletiva, fruto de improvisações, e sobretudo que o texto deve perder o caráter solene e sagrado que a imagem escolar e universitária propaga.

          Artistas politicamente engajados reivindicam o direito do texto de teatro à fragilidade, à urgência, à necessidade de intervir num espaço não teatral. Ele pode ser produzido pelas pessoas do ofício, atores e técnicos, para o palco, e portanto ser flexível, transformável e facilmente colocado em voz. Da desconfiança para com os "grandes textos" à reivindicação de um teatro popular havia apenas um passo, logo transposto.

2. A nostalgia de um teatro popular 

          Essas contradições dos anos 60 têm suas raízes na essência do teatro. Como se aqueles que o fazem tivessem regularmente a nostalgia de algumas de suas origens, dos rituais báquicos e festivos que não se incomodavam com textos nem com eruditos. Também de suas origens populares, de uma palavra nascida da rua para a rua, ao contrário da escrita solitária de um autor, suspeito sempre de poder cultural ou de inteligência elitista. 

          Pouco importa que essas origens sejam míticas ou que a história modere os entusiasmos dos que procuram no passado reforço para o seu desejo de teatro popular. Alguns períodos-faróis orientam assim a memória dos que desconfiam do texto. Eles se voltam periodicamente para a festa antiga, os saltimbancos da Idade Média, os virtuoses da commedia dell'arte, os artesãos do teatro de feira do século XVIII; nos nossos dias, para o teatro de rua, o agitprop, ou as competições de improvisação.

          É provável que existissem na Idade Média animadores públicos, arengueiros, malabaristas e monologuistas, talvez às vezes próximos da mímica, às vezes de um teatro em estado bruto, parcialmente improvisado ou renovado no dia-a-dia. Seja como for, nossa memória transforma os saltimbancos apreciadores de balbúrdias e os bufões exercitados em fantasias verbais em antepassados dos improvisadores.

          A fascinação pelos atores da commedia dell'arte, partilhada por muitos profissionais de teatro, talvez tenha origem no sentimento de autonomia que eles transmitem quando representam. Libertos do texto decorado, correm o rismo máximo, o da invenção. Sabemos, é claro, que essa invenção é relativa. Os comediantes do Renascimento italiano dispunham de esquemas preestabelecidos, de sinais de marcação, de um estoque de piadas, trocadilhos, truques, que os ajudavam a sair de uma situação difícil ou de uma falha de inspiração. Mesmo assim eram eles que produziam a representação e o texto na hora, sob o olhar do público e para a escuta deste.

          Nas feiras de Saint-Germain e Saint-Laurent, em Paris, uma tradição que vinha de Henrique IV autorizava a apresentação de exercícios ginásticos, pantomimas e mágicas. Um privilégio da Academia de Música impedia que os artistas de feira cantassem ou dançassem a não ser sobre uma corda, e um outro da Comédie Française (1680) proibia-os de falar, o que provocou então uma série de curiosas invenções destinadas a contornar a lei. 

          Privados de textos dialogados, os comediantes inventavam jargões ou utilizavam letreiros para se dirigir ao público, até a proibição em 1719 dos teatros de feira. A partir desses exemplos, compreende-se melhor como o teatro sem texto às vezes foi considerado reduto do teatro vivo e, em conseqüência, da suspeita que continua pesando sobre o texto.

3. O ator e o poeta

          Quando o teatro faz um retorno ao seu passado, é muitas vezes para se perguntar se fez bem em se conceder um poeta, se a perícia dos atores em sua relação direta com o público não teria sido preferível às sutilezas de um texto, se a teatralidade "pura" não poderia facilmente dispensar o poder da escrita. Velha ruptura original entre os que fazem o teatro diante do público e os que o preparam na sombra, entre os atores na dianteira e o poeta a reboque. Velha luta de poder entre duas metades inseparáveis, o texto e o palco, que se procura dissociar sempre que uns passam a temer os "literatos" e os outros os "histriões".

          É essa imagem do ator-rei, produtor do texto e do sentido, que nossa época retém quando lhe acontece fazer o processo do texto. Como se libertar-se do texto permitisse escapar à rotina da representação e restabelecesse a capacidade do ator de invenção direta. A improvisação é mitificada porque autoriza a cada momento a criação do ator e restabelece o contato íntimo entre o corpo do ator e seu imaginário. Não mais dizer as palavras de um outro ofereceria uma sensação única de liberdade.

          As criações coletivas e as improvisações públicas nem sempre correspondem a essa visão otimista das coisas. Personagens esteriotipadas e diálogos rasos, uma expressão corporal convencionada são comuns nelas, pelo menos na perspectiva do espetáculo, já que a improvisação é encarada também como trabalho de formação ou como treino cotidiano do ator. Verdadeiros achados não dissimulam as dificuldades de um projeto de criação de fluxo contínuo.

          Existe portanto um teatro do silêncio, um teatro do corpo e do grito, destinado a atingir mais profundamente a sensibilidade do espectador. Essa utopia de um "para além das palavras" mais poderoso do que as palavras, ao se enraizar no indizível, readquire vigor sempre que o texto se limita a ser o refúgio de uma representação mecânica que perpetua rituais esvaziados de sentido, ou o álibi de uma cultura que dixou de ser indispensável.
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Extraído de Introdução à análise do Teatro/Editora Martins Fontes, 1995. Tradução de Paulo Neves.    

                                      

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