terça-feira, 1 de maio de 2012

Verdadeiros e Falsos Demônios

Lionel Abel


          Sófocles propõe, em Édipo Rei e Édipo em Colona, os dois movimentos essenciais da tragédia: na primeira peça sobre Édipo o protagonista é destruído; na segunda, tendo sobrevivido à destruição trágica, ele se torna divino, um demônio.

          Talvez a melhor maneira de compreender esses dois movimentos diferentes seja a de considerar, em poucas palavras, aquela falta humana que, segundo o pensamento grego, torna possível a tragédia: hubris. Sem hubris não é muito provável que qualquer personagem venha a ser destruído em uma tragédia; sem ser destruído, nenhum personagem pode se tornar divino, isto é, um demônio. Hubris, portanto, é uma coisa ambígüa que pode levar à destruição, mas que também pode conduzir ao que na concepção de uma mente grega seria algo semelhante à graça.

          Alguns estudiosos têm insistido que hubris, a principal falta trágica, é a insolência. Por outro lado, o professor Whitman, em seu recente livro sobre Sófocles, procurou destruir a própria idéia do hubris. Segundo o professor, os heróis e heroínas de Sófocles não são motivados por hubris, o que seria negativo na melhor das hipóteses, mas por arete, que é bom e positivo, pois arete é o sentimento de obrigação em relação à forma da própria virtude de cada um. Mas nem Whitman, que nega que o protagonista de uma tragédia seja culpado de hubris, e nem aqueles que afirmam que ele o é, compreenderam hubris, creio eu, em todas as suas ambigüidades.

          Será hubris a insolência? E só isso? Pode-se argumentar que sim. Porém, o conceito, assim compreendido, iluminaria bem pouco o movimento das obras de Sófocles, ou o modo pelo qual ele concebia seus heróis e heroínas. Sugiro que hubris não é a insolência, e que quando um personagem age como se já tivesse vivido uma tragédia, quando a tragédia ainda está à sua espera, ele é culpado de hubris.

          Por outro lado, ter passado por uma tragédia, ter sido destruído, mas de algum modo continuar a viver, é tornar-se capaz de poderes demoníacos. O personagem que age como se ele ou ela tivesse o poder de um demônio será destruído; mas após essa destruição poderão vir os poderes demoníacos. Hubris, portanto, é a presunção a uma espécie de divindade que poderá ou não ser concedida.

          Isso não significa que o protagonista de uma tragédia esteja disposto a ser destruído para tornar-se um demônio. Muito pelo contrário, o protagonista trágico espera atingir fins outros e mais humanos. Ele age, porém, como se fosse invulnerável; e é essa ficção que o conduz à destruição.

          Na primeira peça de Édipo, de Sófocles, vemos um exemplo perfeito de hubris. Édipo anuncia que ele encontrará e punirá o assassino de Laio. Ele persiste, embora aconselhado a não fazê-lo, até descobrir que ele próprio é o assassino que jurou punir, bem como que o homem que ele assassinara é seu próprio pai. Tal conhecimento o destrói. Ele se cega e se exila; mas não morre.

          Na segunda peça edipiana, o antigo rei, que é agora um mendigo guiado por sua filha, tornou-se um demônio após sobreviver à tragédia: duas cidades desejam seu corpo quando morrer, pois segundo um decreto de Apolo será bendita a cidade em que for enterrado Édipo. Além disso, Édipo, que matou o pai e expiou essa culpa, se sente suficientemente poderoso parea maldizer seus dois filhos e condená-los a morrer um pela mão do outro.

          Entretanto Sófocles, desejando preservar algum componente de liberdade humana mesmo na mais rígida corrente de causalidade, torna bem claro que após a maldição de Édipo seus dois filhos não estão necessariamente condenados a matar um ao outro; isso só acontecerá se Polinice insistir em marchar com seus exércitos contra Tebas. Se insistir, no entanto, ele morrerá, bem como seu irmão Etéocles.

          O poder evidenciado por um personagem já destruído pela tragédia é tão trágico, como vemos pela leitura de Édipo em Colona, quanto a fraqueza de um personagem que se pensa todo-poderoso e acaba por ser tragicamente destruído. As duas peças de Sófocles se complementam e englobam todo o domínio da tragédia.

          Mas o que acontece quando um demônio falso e um verdadeiro se encontram? Tal é o assunto da Antígona de Sófocles.

          Já foi dito que ambos os principais personagens da tragédia, Antígona e Creonte, estão certos - Antígona porque representa os deuses da família (ou, para um idealista, as leis que existem além dos deuses), Creonte porque representa os deuses do Estado. Tal era o ponto de vista de Hegel, que considerava Antígona a mais perfeita expressão da tragédia.

          Porém não é verdade que Antígona e Creonte estejam igualmente certos em suas posições. Não há dúvida de que Creonte parece estar certo em certos momentos, porém só até a entrada de Tirésias; depois disso não só ele está claramente errado como também, segundo Tirésias, é objeto de ódio dos deuses. Ele fez algo cosmicamente errado, que se contrapõe à ordem da natureza e da sociedade: enterrou um vivo e negou enterro a um morto.

          E no entanto Creonte não estaria tão errado quanto está no momento em que Tirésias o denuncia se Antígona não tivesse tido a força necessária para desafiar um edito do Estado. É a força de Antígona que torna Creonte um criminoso. Tivesse ela se submetido ao edito, e ele incorreria em êrro, sem dúvida. Porém não totalmente.

          De modo que simplesmente não é verdade que Antígona e Creonte sejam èticamente iguais. Por assim julgá-los, Hegel inventou uma teoria completamente incorreta - embora original e interessante - da tragédia, que ele via como um conflito entre duas instituições de igual valor, o Estado e a família.

          A qualquer pessoa que tenha visto um bom espetáculo de Antígona fica bem claro que Antígona está certa, mas que o personagem patético é Creonte. E dizer que Antígona está certa é dizer muito mais do que dizer que ela está èticamente certa ou que a família é mais importante do que o Estado.

          Mesmo que Sófocles julgasse a família mais importante do que o Estado - o que eu duvido - isso não bastaria para explicar o acerto de Antígona ou o erro de Creonte. Em verdade, Hegel poderia estar inteiramente correto em concluir que um dramaturgo ateniense colocaria necessariamente a família e o Estado em termos èticamente iguais, mas mesmo assim Antígona e Creonte não lutam como iguais. Nem se origina a desigualdade entre eles de uma superioridade das posições éticas e religiosas de Antígona.

          A superioridade de Antígona em relação a Creonte nasce do fato de ser ela um verdadeiro demônio, e ele um falso.

          Essa superioridade de Antígona, não só em relação a Creonte mas também a todas as outras pessoas da peça, é demonstrada desde a primeira cena, quando ela propõe à sua irmã Ismênia que ambas enterrem seu irmão Polinice em desafio ao edito de Creonte. Ismênia recusa. Como poderão elas, fracas como são, lutar contra o Estado? 

          Antígona responde com grande aspereza que ela pode fazê-lo, e o fará, e que não deseja mais o auxílio da irmã: ela própria enterrará o corpo do irmão e lutará contra o Estado o melhor que puder, sem auxílio de ninguém. E fala com força e segurança demoníacas.

          Será Creonte um demônio? Quando aparece, seu primeiro pronunciamento é uma tentativa de convercer o Côro de que não se deterá diante de nada, e que punirá quem quer que seja que, em desafio às suas ordens, honrar o corpo de Polinice, o traidor morto.

          "Por que ofender um homem morto?", pergunta o Côro. Creonte responde que dois irmãos estão mortos, sendo um o herói que defendeu sua cidade e o outro o traidor que procurou conquistá-la. O Estado deve fazer disitnção entre os dois cadáveres, e o único modo de ficar patente o seu desprezo pelo traidor é deixar seu corpo sem enterro.

          Além do mais, assevera Creonte, o Estado lhe é tão caro que em seu nome ele esqueceria qualquer laço de amizade ou família. Para ele, acrescenta, o Estado é tudo.

          Ao fazer tal asserção, Creonte está enganando a si mesmo, pois em verdade ama seu filho Hêmon que está apaixonado por Antígona. Ao falar como fala ao Côro, a Antígona e a Hêmon, Creonte age como se fosse invulnerável aos sentimentos. 

          O estranho é que Antígona, que fala em nome dos sentimentos, é invulnerável a qualquer sentimento por Hêmon, Ismênia ou o Estado. Antígona é verdadeiramente demoníaca, enquanto Creonte o é falsamente: ela pode morrer. 

          Não é ela filha de Édipo e parte de sua tragédia? Não compartilhou ela seu exílio? Já não é esse o caso de Ismênia. Mas Creonte não pode ouvir que seu nfilho está morto, e que sua mulher se suicidou, sem implorar para ser destruído. Ele já havia sido destruído, ao comportar-se como se fôra invulnerável.
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Extraído de Metateatro - uma visão nova da forma dramática. Zahar Editores, 1968. 

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