quarta-feira, 23 de maio de 2012

A essência do teatro

Anatol Rosenfeld


          O teatro, longe de ser apenas veículo da peça, instrumento a serviço do autor e da literatura, é uma arte de próprio direito, em função da qual é escrita a peça. Esta, em vez de servir-se do teatro, é ao contrário material dele. O teatro a incorpora como um dos seus elementos. O teatro, portanto, não é literatura, nem veículo dela.

          O texto, a peça, literatura enquanto meramente declamados, tornam-se teatro no momento em que são representados, no momento, portanto, em que os declamadores, através da metamorfose, se transformam em personagens. A base do teatro é a fusão do ator com a personagem, a identificação de um eu com outro eu - fato que marca a passagem de uma arte puramente temporal e auditiva (literatura) ao domínio de uma arte espaço-temporal ou audio-visual.

          O status da palavra modifica-se radicalmente. Na literatura são as palavras que medeiam o mundo imaginário. No teatro são os atores/personagens (seres imaginários) que medeiam a palavra. Na literatura a palavra é a fonte do homem (das personagens). No teatro o homem é a fonte da palavra.

          A essência do teatro é, portanto, o ator transformado em personagem. O texto é um bloco de pedra que será enformado pelo ator (diretor). O texto contém apenas virtualmente o que precisa ser atualizado e concretizado pela idéia e forma teatrais. A atualização é a encarnação, a passagem de palavras abstratas e descontínuas para a continuidade sensível, existencial, da presença humana.

          Ao encarnar o mundo apenas sugerido pelas palavras, ao preencher as lacunas deixadas pelos vocábulos, o ator (diretor) tem de fazer uma escolha radical entre mil possibilidades diversas. Nessa definição, individualização e concretização de conceitos universais, colaboram o diretor, o cenógrafo, o ator e o próprio público.

          É nesse trabalho que reside a responsabilidade criativa dos representantes do teatro: o texto apresenta apenas um sistema de coordenadas que deve ser preenchido pela música dos movimentos, pelas inflexões da voz, pelas mil nuanças indefiníveis da mímica e do gesto. Isso explica o fato de haver só um texto de Hamlet e centenas de Hamlets diversos. O texto deixa indeterminada uma infinidade de momentos. A grande flexibilidade do teatro vivo permite preencher os vãos e vácuos de mil maneiras, conforme a época, a nação, a concepção e o gesto.

          A metamorfose, fato fundamental do teatro, é simbolizada pela máscara. A máscara é o símbolo do disfarce. O deus grego da máscara é Dioniso, a cujo culto se atribui a origem do teatro grego. Um coro ritual entoava cantos ditirâmbicos e executava dança em homenagem ao deus da fertilidade, do vinho, da embriaguez e do entusiasmo. É no estado da exaltação, fusão e união mística, do entusiasmo, isto é, do "estar-em-deus" ou do "deus-estar-em-mim" - é neste estado de êxtase (do "estar-fora-de-si") que o crente se transforma em outro ser, se funde não só com os companheiros mas com o próprio deus chamado à presença pelo ritual. Esse êxtase ainda ocorre quando João da Silva ou Maria das Dores põem a máscara, se disfarçam e se transformam em Macbeth ou em Antígona.

          Mas esse disfarce é ao mesmo tempo uma revelação. João da Silva precisa encobrir, disfarçar a sua particularidade, seu papel civil ou social de cidadão brasileiro, para assumir o papel do herói, mercê do qual representa exemplarmente a condição humana, as vicissitudes trágicas ou cômicas da existência humana. O disfarce é uma revelação; é preciso encobrir João da Silva para que ele se identifique com Macbeth decifrando o mistério humano. Ao apagar-se o cidadão real, pela máscara, transparece a verdade mais profunda da ficção que adensa em Édipo ou Fedra.

          Todavia, não só o ator se identifica com Édipo. Também o público se funde com ele. Todos participam da metamorfose. Todos vivem intensamente a condição humana, nos seus aspectos trágicos ou cômicos. O grande espetáculo é, ainda hoje, uma celebração festiva. Esquecemos a nossa particularidade de comerciantes, pais, filhos; esquecemos a cotação do dólar e maldade dos concorrentes. Libertamo-nos da nossa condição particular para participar do destino exemplar dos heróis e para, transformados no outro, vivermos a essência da nossa condição.

          Evidentemente, a metamorfose não é real. É apenas simbólica. O processo é imaginário. Nenhum ator sente realmente as dores do martírio no palco. Se de fato as sentisse, estaríamos diante da realidade e não poderíamos permanecer calmamente nas poltronas. Tanto os atores como o público, no mais intenso êxtase de autoesquecimento, mantêm aberto um pequeno olho vigilante, reservando-se uma margem de lucidez e de distância.

          Se Dioniso é o deus da fusão e do abraço ébrio, Apolo é o deus da distância e da lucidez. O teatro grego, ao unir o canto e a dança, do coro ao diálogo dos atores, uniu o mundo telúrico-demoníaco de Dioniso ao mundo olímpico de Apolo. Nesse sentido, o teatro representa de um modo exemplar esse ser dúplice, completo de natureza e espírito, que é o ser humano.

          A partir daí revela-se um novo aspecto da metamorfose. Ela é, de certo modo, a origem do ser humano. O homem, de fato, só se torna homem graças à sua capacidade de separar-se de si mesmo e identificar-se com o outro. Essa faculdade é um dado básico da antropologia. O ator apenas executa de forma radical o que distingue o homem: desempenhar papéis no palco do mundo, na vida social. Como o hábito faz o monge, assim a máscara faz a persona. Não é sem razão que o termo grego para ator - hipocrites - assumiu o sentido que conhecemos.

          Para fundir-se com outro, preciso sair de mim, expandir-me além dos limites do próprio eu. Só assim, separado de mim mesmo, tornado-me objeto de mim, consigo definir-me como Ego e conquistar a autoconsciência. Só ao idenficar-me com outrem, conquisto minha própria identidade. O animal é maciçamente idêntico a si mesmo, não tem a capacidade do hipocrites de desempenhar papéis, de libertar-se de sua unidade natural, projetar-se além de si mesmo. É preciso desdobrar-se para conquistar um mundo imaginário, projetar-se além, tomar posse do reino espiritual.

          Essa duplicidade eleva o homem além de sua condição natural, através do espírito, da capacidade de expansão ilimitada. Mas, nem por isso, continua um ser natural, finito, limitado. Essa contradição entre a finitude da sua natureza e a expansividade infinita do espírito é a raiz tanto da tragédia como da comédia. Na tragédia participamos do naufrágio do herói, que, embora sendo finito, aspira ao infinito. Mas mesmo no fracasso revela-se a dignidade espiritual do homem. Sentimos exaltada a nossa condição humana na grandeza do herói, na sua liberdade, na sua vontade inquebrantável.

          Já a comédia ressalta a fragilidade humana. A dignidade é desmascarada. É revelada sua condição precária. Enquanto ser espiritual, o homem traça planos grandiosos; mas por isso mesmo não vê a realidade próxima e cai sobre uma casca de banana. A duplicidade humana é ao mesmo tempo trágica e cômica. Nela residem a grandeza e a fraqueza do homem.

          Vemos, pois, que o teatro é uma imagem do homem, não só ao representá-lo através de figuras particulares como Fedra, Otelo ou Woyzeck, mas também pela sua própria essência. A metamorfose, exemplarmente executada pelo ator, define o homem.
_________________
Extraído de Prismas do Teatro, Editora Perspectiva

Nenhum comentário:

Postar um comentário