quinta-feira, 10 de maio de 2012

Teatro/CRÍTICA

"O que você gostaria que ficasse"

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Inesquecível escontro no Planetário


Lionel Fischer


"A peça é um híbrido de happening e encenação, criada a partir de discussões sobre o livro 'O mundo sem nós', de Alan Weisman. Nessa obra o autor constrói uma espécie de retrospectiva inversa, na qual é possível acompanhar, etapa por etapa, um processo de desaparecimento gradual, mas implacável, de qualquer resquício de nossa existência. Em menos de duzentos anos já não há sinal de qualquer expressão artística. Muito pouco tempo se passa até que já não haja qualquer sinal de nossa curta existência como espécie. Num misto de confronto e celebração das sensações despertadas por Weisman, chega-se a uma pergunta-espetáculo:

'Se pudéssemos depositar algo do humano numa cápsula que resistisse ao tempo, algo que pudesse ficar preservado e, quem sabe um dia, ser re-experimentado por outros seres no futuro, o que você gostaria que ficasse?'"

Extraído do release que me foi enviado, o segmento acima sintetiza a premissa que deu origem à mais recente produção do Brecha Coletivo, "O que você gostaria que ficasse", em cartaz no Teatro Maria Clara Machado/Planetário da Gávea. Miguel Thiré assina a concepção e direção do espetáculo, estando o elenco formado por  Cynthia Reis, Eduardo Cravo, Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento.

Sentados frente a frente em duas fileiras, com o espaço iluminado basicamente por luminárias colocadas no chão, os poucos espectadores admitidos por sessão contemplam desenhos no chão feitos com giz, e ao mesmo tempo os atores se dirigem aos espectadores, em voz baixa, solicitando histórias sobre avós. Uma delas, mais adiante, será integrada à montagem - ontem, a história selecionada foi a minha, o que me deixou vaidosíssmo...

Logo em seguida, os atores começam a expor as trágicas conseqüências que poderiam advir caso se encerrassem subitamente todas as fontes de energia - todos nós morreríamos, evidentemente, assim como quase tudo que construimos desapareceria em menos de um século. Ao mesmo tempo, os intérpretes vão desenhando no chão aquilo que gostariam que se eternizasse - nesse momento, tive absoluta certeza de que sofreria barbaramente ao longo de todo o espetáculo.

Mas, felizmente, esta funesta previsão não se confirmou. Muito pelo contrário. E isto se deve a vários fatores, a começar pela própria estrutura do espetáculo. Existe um texto básico, naturalmente, que fala da trajetória de uma mulher desde a infância até a velhice - no espetáculo de ontem, um espectador batizou de Aline essa mulher. No entanto, esssa estrutura é flexível e vai sofrendo algumas modificações ao longo da montagem, que prioriza bem mais os depoimentos do que propriamente as cenas - estas existem, mas são um tanto esporádicas.

Isto posto, cumpre registar o que me pareceu mais emocionante. Ao invés de permanecerem na estática e passiva condição de espectadores, estes são convidados a participar ativamente da montagem, seja através de desenhos, seja através de depoimentos. E como tal convite é feito com extrema gentileza, ninguém se sente constrangido, e a coletiva participação se dá como se a montagem refletisse não apenas inquietações e desejos de um grupo de profissionais, mas de todos que lá estavam para assisti-los. 

O maior encenador vivo, o inglês Peter Brook, estava absolutamente  certo quando definiu o teatro como "a arte do encontro". Foi o que tive ontem à noite, foi o que todos que estavam ontem no Planetário tiveram. Um encontro com um ótimo texto, com uma encenação belíssima em sua aparente simplicidade, com ótimos atores que se doam inteiramente aos temas que abordam e os compartilham com a platéia. Por tudo isso, desejo que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem esta montagem imprescindível. E, pessoalmente, a todos agradeço por esta noite que ficará para sempre em minha memória, posto que já alojada em meu coração.

Na equipe técnica, Junior Santana assina uma direção de arte maravilhosa, sendo belíssima a iluminação de Cadu Fávero, sempre enfatizando, de forma delicada e expressiva, os muitos climas emocionais em jogo. Destaco também, e com o mesmo entusiasmo, a trilha sonora original e seleção musical de João Thiré, assim como o projeto gráfico de Raquel Alvarenga e a fotografia de Antônio Pessoa.

O QUE VOCÊ GOSTARIA QUE FICASSE - Concepção e direção de Miguel Thiré. Com Cynthia Reis, Eduardo Cravo, Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento. Teatro Maria Clara Machado. Segunda a quarta, 21h.   



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