terça-feira, 1 de março de 2011

Banho de Cachoeira
Ou
Como se livrar de um amor que já acabou sem magoar a criatura

Lionel Fischer
(1980)

Personagem:              Dra.Stela
Cenário:                     uma cadeira

(A personagem se dirige ao público, como se estivesse dando uma palestra)

Dra. Stela – Bem, minhas amigas. Como vocês sabem, nosso encontro de hoje tem como tema a difícil arte de se separar de alguém que já amamos sem magoar a criatura – supondo-se, naturalmente, que ela seja uma boa pessoa. Num caso como este, palavras são inúteis, em especial as sinceras. Se você disser, por exemplo, que não o ama mais, ele jamais a perdoará. E se por acaso você já o estiver traindo com outro e confessar esse relacionamento paralelo, aí mesmo é que a mágoa do teu homem será eterna. Diante disto, o que fazer? A solução mais eficaz, inclusive por mim já testada com absoluto sucesso, é fazer com que ele decida te largar, porque aí você não se sentirá nem um pouco culpada.

Pois bem: para terminar uma relação, existe uma alternativa infalível: convidar o homem que te ama, e que você não ama mais, para um banho de cachoeira – é claro que você já deve ter ido a tal cachoeira e já ter vivenciado todas as agruras deste suposto encantador passeio. Então, é simples: você o convida para um final de semana numa pousada super romântica, em cuja adjacência exista A cachoeira, por sinal um dos atrativos turísticos do lugar.

De manhãzinha, bem cedo, vocês acordam, tomam o café da manhã, e em seguida você começa a colocar provisões numa mochila bem grande. Mas tem que ser muitas provisões – coca-cola de dois litros, pães, salame, biscoitos, duas garrafas de água mineral, uma corda de vários metros, roupas para vocês se trocarem etc. E por que tanta coisa? Por que a necessidade de uma mochila tão pesada para um passeio tão simples e prosaico? Porque é ele quem vai carregar a mochila! E isso é um detalhe estratégico importantíssimo.

Quando tudo estiver pronto, vocês saem da pousada e pegam uma estradinha de terra, na qual caminham durante uns 40 minutos. Em seguida, se embrenham por uma trilha, a princípio bem delineada. Aos poucos, porém, a trilha se torna progressivamente mais íngreme, assim como menos delineada. A essa altura, você já vai perceber na criatura os primeiros sintomas de fadiga. Mas ele te ama e tudo suporta com altivez. Mais adiante, porém, a tal trilha começa a ser invadida pelo mato e logo desaparece, o que vai obrigar vocês a abrir caminho na mata com um facão – e caberá a ele esta função, naturalmente. Mas ele sai decepando os galhos com o destemor de um  Harrison Ford.

Nesse ponto, a ladeira é tão acentuada que ele começa a arfar, ainda que deseje ocultar este fato, digamos que, por orgulho – mas se ele for fumante, o que seria uma benção, queira ele ou não já estará arfando há muito tempo. É então que o terreno se torna irregular, dificultando ainda mais a jornada. Aí, talvez, e tentando ao máximo demonstrar que está em perfeitas condições físicas, ele te pergunte algo do tipo: “Amor, ainda falta muito?”. Você, imediatamente, diz que não, que a cachoeira está “logo ali adiante”. Ele sorri, tenta camuflar a dispnéia, e prossegue, em meio a tropeções, já um tanto arranhado pelos galhos que atravancam o caminho.

E então surgem os mosquitos. De início, uns poucos, mas logo vocês são atacados de forma implacável. Seu ex-amado, ao mesmo tempo que decepa folhas e galhos, brande a faca no ar, tentando assassinar os pernilongos que o acossam. Finalmente, após duas horas e meia de estafante caminhada, vocês chegam à dita cachoeira. Aí, é importantíssimo você analisar as reações do seu ex-amado. Primeiramente, ele se livra da mochila, se senta no chão e apenas arqueja, como uma heroína de cinema mudo. Você dá um tempo e quando perceber que a respiração dele já se normalizou, ou quase, você diz: “E então, amor? Não é lindo aqui?”

Ele então sai de si mesmo e contempla o cenário. A dita cachoeira, como todas as que existem, não passa de um filete de água que escorre sobre uma pedra esverdeada pelo excesso de limo – ao contrário do que você lhe assegurou, afirmando que ele se depararia com uma torrente semelhante à do Niágara. Quanto ao lago de águas cristalinas, que você também disse que ali existia,  tudo se resume a uma poça d’água barrenta, de profundidade não superior a 50 centímetros, o que inviabiliza a possibilidade, por você garantida, de nadarem juntos e de, quem sabe, submersos empreenderem portentosas sacanagens.

Finalmente, a temperatura da água. Como em todas as cachoeiras, a água é gélida e as pessoas que, assim mesmo, resolvem se banhar, fingem da forma mais cínica um prazer que absolutamente não podem estar sentindo. E, para culminar, de repente começam a se escutar vozes e cantos. Seu ex-amado se vira na direção das vozes e constata que, aboletada numa pedra próxima, uma numerosa família prepara um churrasco, sendo que dois homens, um deles com um violão e outro com um pandeiro, entoam pagodes.

Nesse momento, quando seu ex-amado se virar para você, exausto, ainda arfando, todo lanhado, com o rosto deformado pelas picadas dos mosquitos, você não deve dizer nada. Apenas sorria, um sorriso algo ingênuo, repleto de carinho, dando a entender que aquele é o local perfeito para ser desfrutado por duas pessoas que se amam tanto. E que você planejou tudo para celebrar essa paixão que jamais terá fim. Pois bem, amigas: se o tal cara não te der uma facada, você pode estar certa de que nunca mais o verá.

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