terça-feira, 1 de março de 2011

           Tragédia, comédia, tragicomédia

                                                                           Martin Esslin


           Os termos mais freqüentemente usados no vocabulário crítico do drama são os que denotam os vários gêneros - e acima de tudo dois gêneros básicos: tragédia e comédia. Uma quantidade enorme de especulação e filosofia existe sobre esse assunto, e tais conceitos teóricos exerceram profunda influência sobre a maneira pela qual na prática se escrevem peças, se representam ou se produzem.

          E no entanto, curiosamente, nunca houve concordância a respeito do problema, não existindo qualquer definição universalmente aceita seja de tragédia seja de comédia, quanto mais dos incontáveis gêneros intermediários, tais como a comédia de costumes, a farsa, a tragicomédia, o burlesco, a comédia doméstica, a tragédia doméstica, o melodrama e assim por diante.

          É claro que a definição mais simples, e que um sem-número de teóricos chamaria de simplória, continua a ser geralmente aplicável, muito embora resolva muito pouca coisa: uma peça de final triste é uma tragédia, uma peça de final alegre é uma comédia. Tal parece ter sido o critério segundo o qual os amigos de Shakespeare distribuiram suas obras por ocasião da publicação do Primeiro Folio (primeira edição das obras completas, publicada em 1623): "Medida por medida", por exemplo, uma peça que contém inúmeros acontecimentos sombrios e angustiantes e que no todo está longe de ser engraçada ou sequer leve, aparece entre as comédias, simplesmente porque seu final não é salpicado de cadáveres.

          Como crítico, eu me sinto naturalmente fascinado pelos difíceis problemas da definição dos gêneros e de suas implicações estéticas e filosóficas; porém como homem ligado ao teatro por seu lado prático, como diretor militante, encaro-os de modo completamente diferente. Isso não significa que, mesmo de um ponto de vista prático, eu os encare de um ponto de vista de total indiferença. Isso não quer dizer que, mesmo sob um tal enfoque prático, eu considere a definição de gêneros sem importância. Muito pelo contrário.

          Mas a importância, no caso, é mais prática do que teórica. Como diretor, é necessário que eu me decida sobre o gênero ao qual pertence a peça que tenho de enfrentar; não segundo algum princípio abstrato, mas pura e simplesmente para saber o ponto de vista segundo o qual ela deverá ser representada. Na verdade, é de modo geral possível representar qualquer peça ou como comédia ou como tragédia. 

             Esse é o problema que perturba todo diretor que tenta trabalhar com Tchecov. O próprio Tchecov disse a respeito do "Cerejal": "Eu chamo minha peça de comédia"; enquanto que seu diretor, Stanislavsky, escrevia-lhe: "Esta peça não é comédia nem farsa, como você me escreveu; é uma tragédia, seja qual for a solução que você possa ter encontrado para uma vida melhor no último ato". Assim, uma peça como "O cerejal" pode ser tratada como comédia ou tragédia.

          O modo pelo qual Mme. Ranevskaya perde todas as suas propriedades, por pura incompetência e indecisão, pode ser denunciado como tolo e conseqüentemente engraçado, algo a ser encarado com desprezo pela platéia, que terá de se sentir superior a toda aquela série de erros, toda aquela preguiça e falta de força de vontade; porém é também possível - o que acontece freqüentemente - apresentar-se a peça como um relato profundamente triste da queda das últimas pessoas realmente civilizadas de uma sociedade que está sendo engolida pelo comercialismo, pela vulgaridade, pela barbárie em massa.

           A visão que terá o diretor deste texto, encarando-o como tragédia, comédia ou até mesmo farsa, terá um efeito imediato e extremamente objetivo no modo pelo qual conduzirá a produção: ela influenciará a escolha do elenco, o desenho dos cenários e figurinos, o tom, o ritmo e o andamento do espetáculo. E, acima de tudo, o estilo no qual ela será representada.

          Durante séculos a comédia e a tragédia foram gêneros estritamente separados. Era mesmo axiomático que não se podia misturá-los; isso porém não impediu que sempre houvesse exceções. Na primeira edição das obras completas de Shakespeare, "Troilus e Cressida" está colocada entre as comédias e as tragédias: ela é tanto cômica quanto trágica - uma tragicomédia.

          Nos últimos 70 anos a tragicomédia tornou-se gênero de primeira linha. O próprio fato de as peças de Tchecov, que são grandes peças, poderem ser vistas tanto como tragédias quanto como comédias indica sua real natureza de tragicomédia. E as obras de Brecht, Wedekind, Ionesco, Beckett e muito de Pirandello pertencem a esse mesmo gênero misto.

          Para o diretor, tais peças sempre apresentam dificuldades marcantes: algumas devem ser representadas em clima de total seriedade, provocando, por isso mesmo, efeito cômico; outras terão de ser interpretadas em espírito cômico e produzir, assim, uma visão trágica e da mais profunda tristeza; ainda outras requerem mudança constante de um clima para outro, mudando de cena para cena.

          A tragicomédia é, desse modo, um gênero complexo, que exige do público um alto grau de sofisticação. Pois o impacto que todo drama alcança junto ao público depende, em última análise, de um sutil intercâmbio de expectativas e satisfação das mesmas. O estilo no qual uma peça se inicia prepara o tom segundo o qual o público afinará suas expectativas: figurinos, cenário, linguagem em prosa ou verso, personagens com narigões vermelhos ou com feições nobres e trágicas, determinarão se o espectador deve esperar risos ou lágrimas, divertimento ameno ou emoções arrasadoras.

          Na prática teatral, a única prova real de uma peça será a de ela funcionar ou não em um palco, como teatro. A teoria dos gêneros pode ser um grande auxílio para o diretor porque lhe permite tomar decisões essenciais a respeito do estilo no qual um determinado texto deverá ser representado e produzido. Porém, como Brecht gostava de dizer, é só na hora de comer que se pode julgar um pudim: o que não significa, no entanto, que as regras da culinária não sejam da maior importância.
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Ensaio extraído, e aqui bastante reduzido, do livro "Uma anatomia do drama" (Zahar Editores, tradução de Barbara Heliodora, escrito em 1976 e lançado no Brasil em 1978)

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