segunda-feira, 14 de março de 2011

A peça de mensagem
David Mamet

           A peça de mensagem é um melodrama isento de inventividade. Sua declarada questão, “como podemos curar o abuso conjugal, a Aids, a surdez, a intolerância religiosa ou racial?”, permite que o espectador nutra fantasias de poder: “Vejo as opções apresentadas e decido (junto com o autor) qual a correta. Se eu estivesse no lugar daqueles no palco, eu faria a escolha correta. E votaria com o herói ou a heroína, em vez de com o vilão”.
          Quando a escolha correta é permitida à platéia (seja através do triunfo ou fracasso enobrecedor do protagonista), seus membros podem, e irão, dizer com complacência: “E eu já não sabia o tempo todo? Eu sabia que os homossexuais, os negros, os judeus e as mulheres também são gente. E eis que minhas percepções se revelaram corretas”.
           Esta é a recompensa oferecida à audiência de uma peça de mensagem. A recompensa oferecida pelo melodrama sentimental é um tanto diferente. Esse melodrama oferece a ansiedade vivida em segurança, enquanto que a peça de mensagem oferece a indignação. (O noticiário televisivo oferece ambos). Nesses falsos dramas nutrimos um desejo de nos sentir superiores aos eventos e à história, em suma, à ordem natural.
          O mito, a religião e a tragédia abordam nossa insegurança de forma levemente diferente. Despertam reverência. Não negam nossa impotência, mas através dessa confissão nos livram do fardo de sua repressão.
          (Aqueles meramente ignorantes podem até gostar das peças de Shakespeare. Mas imagino que para o anti-startfordiano a experiência de assisti-las jamais estará completamente imune à irritação por sua falsa atribuição).
          O romantismo celebra a inevitável salvação/triunfo do indivíduo pelas ações de/sobre os deuses; sendo tal triunfo por fim devido não aos esforços, mas a alguma excelência inerente (ainda que insuspeitada) por parte do protagonista.
          A tragédia celebra a subjugação do indivíduo e com isso a sua libertação do fardo da repressão e sua acompanhante, a ansiedade (“quando o remédio se exaure, finda também o sofrimento”).
          O teatro tem como tema a jornada do herói, sendo o herói e a heroína aquelas pessoas que não cedem à tentação. A história do herói é sobre uma pessoa que está passando por um teste que ela não escolheu.
        Heróis e heroínas da peça de mensagem, porém, passam por um teste sobre o qual têm controle absoluto. Escolheram o teste e vão ter êxito. É um melodrama, e o acompanhamos porque até um certo ponto ele faz com que nos sintamos melhor acerca de nós mesmos; é a realização de uma fantasia adolescente, como o filme de ficção científica.
          Sabemos que ao final dessa fantasia o bem prevalecerá. Sabemos que os marcianos serão derrotados. Sabemos que o herói descobrirá, na peça de mensagem, que os surdos também são gente, que os cegos também são gente. O vilão será vencido. O herói entrará e salvará a garota amarrada aos trilhos.
          E assim nosso prazer se evapora logo que saímos do teatro. Como o adolescente, queríamos nos comprazer numa fantasia de poder sobre o mundo adulto; assim o fizemos, e passamos os breves momentos da aventura nos sentindo poderosos.
          Por outro lado, o herói de uma tragédia tem de lutar contra o mundo, embora indefeso e sem outras ferramentas que não sua vontade. Tal como Hamlet, Odisseu, Édipo ou Otelo. Todas as mãos se erguem contra esses heróis e eles não estão à altura da jornada que têm que empreender. A força desses heróis vem do seu poder de resistência. Eles resistem ao desejo de manipular, ao desejo de “ajudar”.
          O autor da revista do Super-homem, para não falar dos economistas do governo, pode nos  “ajudar” a chegar a uma solução proclamando que suspendeu as leis naturais, mas no final Hamlet, Otelo, vocês, eu e o resto da platéia têm de viver no mundo real, e a “ajuda” prestada pela repressão ao conhecimento disso é na verdade uma ajuda bem pobre.
          Alguém disse (Reagan declarou isso, e tenho certeza de que foi dito antes dele): “As nove piores palavras de nossa língua são: ‘Eu sou do governo e estou aqui para ajudar’”. Isso significa: “Vou sugerir soluções para um problema com o qual não só eu não estou envolvido mas ao qual me sinto superior”. Isso é feito por políticos. É feito por professores e pais.
          Ao ouvirem essa ajuda que se anuncia, as crianças, os eleitores e os espectadores sentem-se hostis, mas sufocam sua hostilidade. Dizem: “Espere um instante, essa pessoa está me dando um presente; não é o presente que eu queria, mas como ouso me enfurecer?”
          No teatro, o processo de “ajuda” não é uma participação na jornada do herói. É um processo de infantilização e manipulação da platéia.
          O líder, o grande homem ou mulher, não diz: “O fim justifica os meios”. O grande vulto diz: “Não existe o fim, e embora isso possa me custar caro (como custou a vida de Santa Joana; como pode custar a X, Y ou Z a eleição; como pode custar ao ator o papel no teste), eu não vou dar-lhes o que eles querem, se o que querem é uma mentira”.
          É o poder de resistência que nos afeta. É o poder de alguém como o Dr. King ao dizer: “Não tenho instrumentos; vocês podem me matar se quiserem, mas terão de me matar”.
          É o poder de Theodor Herzl, que disse: “Se você quiser, isso não será apenas um sonho”.
          Herzl foi ao julgamento de Dreyfus e declarou: “Os judeus precisam de uma pátria, essa perseguição tem de acabar, desculpem”. E nenhum dos ricos queria dar dinheiro a ele. De modo que ele foi aos pobres e pediu moedas de dez e cinco centavos. Todos disseram que ele era idiota. Mas cinqüenta anos mais tarde, eis o Estado de Israel.
          O poder de resistência torna a jornada do herói afetiva. E para que a platéia empreenda essa jornada é essencial que o autor a empreenda. É por isso que escrever nunca fica mais fácil.
          As pessoas que se sujeitam à jornada do herói criam os poemas de Wallace Stevens, a música de Charles Ives ou os romances de Virginia Woolf; ou, para colocar a coisa de modo diferente, não pode tocar chorinho quem nunca chorou.
          O teatro é uma arte comunitária. Uma das melhores coisas que sei sobre comunidade é o que São Paulo disse: “O que eu sou para vocês me assusta, mas o que eu sou com vocês me conforta. Para vocês, eu sou um bispo; com vocês, sou um cristão”.
          Quando você entra no teatro, tem de estar disposto a dizer: “Estamos todos aqui para entrar em comunhão e descobrir que diabos anda acontecendo neste mundo”. Se não estiver disposto a dizer isto, o que você recebe é entretenimento em vez de arte, e entretenimento pobre, ainda por cima.
          Na peça de mensagem, no noticiário noturno e no drama romântico do uber-indivíduo, o triunfo eventual recebe uma posição de cortesia como estando “em dúvida” (a possibilidade de vitória dos EUA na guerra do Golfo; o destino de Sherlock Holmes) para nos permitir novamente saborear e dominar a ansiedade. Mas assim que aquele episódio ou aquela guerra específica termina, assim que a nossa “vitória” é proclamada, a ansiedade se reinstala.
           Sabíamos que aquela luta era falsa, e precisamos então sair procurando outro adversário/outro vilão/outro filme de ação/outro povo oprimido para “libertar”, a fim de nos certificarmos mais uma vez do que já sabemos não ser verdadeiro: que somos superiores às circunstâncias (que somos, de fato, Deus).
          Na peça de mensagem, no noticiário noturno, no romantismo e no drama político, em tudo isso nós conquistamos não a nossa natureza, mas o nosso terror, aquela proposição específica única: defendemos as cores do romantismo, ou seja, do capcioso, do ficcional, do falso; e nossa vitória nos deixa mais ansiosos do que antes.
          Se outros aceitam nossa proclamação de divindade, as coisas no mundo devem estar piores do que imaginávamos, e nossa ansiedade então cresce. O ditador procura idéias menos prováveis ainda para reafirmar, e força obediência a elas com crueldade maior ainda; os  Estados Unidos procuram tropegamente alguma causa justa na qual triunfar;  Conan Doyle é obrigado a voltar a Sherlock Holmes e salvá-lo das cataratas de Reichenbach.
          Nossa busca ansiosa de superioridade não pode ser aplacada por um triunfo momentâneo. Pois sabemos que no final teremos de sucumbir.
          O romantismo da Europa ocidental nos deu Hitler, os romances de Trollope  e os musicais americanos. Em cada um deles a excelência – às vezes oculta, mas sempre emergente – do herói a tudo vence. Tais dramas podem entreter, mas são falsos e têm um efeito debilitante cumulativo.
          Vivemos num mundo extraordinariamente depravado, interessante e selvagem, onde as coisas realmente não são justas. A finalidade do verdadeiro drama é nos lembrar disso. Talvez isto tenha realmente um efeito social acidental e cumulativo: o de nos lembrar de sermos um pouco mais humildes, um pouco mais gratos ou um pouco mais contemplativos.
           Stanislavski diz que existem dois tipos de peças. Existem as peças das quais você sai e diz a si mesmo: “Meu Deus, eu simplesmente, eu, nunca, caramba, eu quero, agora eu entendo! Que obra-prima! Vamos tomar um café.” E quando chega em casa já não se lembra mais do nome da peça e já não se lembra mais do que a peça tratava.
          E existem peças – além de livros, canções, poemas e danças – que são talvez perturbadoras, intrigantes ou incomuns, das quais você sai inseguro, mas sobre as quais você pode pensar no dia seguinte, talvez por uma semana, e talvez até pelo resto da sua vida.
          Porque elas não são limpas, não são bem-acabadas, mas há algo nelas que vem do fundo do coração, e, sendo assim, atinge o coração.
          O que vem da cabeça é apreendido pela platéia, pela criança e pelo eleitorado como manipulatório. E podemos por um instante sucumbir ao manipulatório, porque nos sentimos bem perfilados ao lado do poder. Mas por fim acabamos compreendendo que estamos sendo manipulados. E nos ressentimos disso.
          A tragédia é a celebração não do nosso triunfo eventual, mas da verdade; não é uma vitória, mas uma resignação. Muito do seu poder tranqüilizador vem, mais uma vez, daquela operação descrita por Shakespeare: quando o remédio se exaure, finda também o sofrimento.
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Extraído de “Três usos da faca – sobre a natureza e a finalidade do drama”, Editora Civilização Brasileira/2001/Tradução de Paulo Reis.


     

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