quarta-feira, 16 de março de 2011

O doce veneno do pecado

Arnaldo Jabor


          Fui ver o filme "Bruna surfistinha", o mais recente fenômeno de público, e penso nas razões de seu imenso sucesso, para além das qualidades do filme, além do carisma de Deborah Secco. Uma das razões é que a prostituta nos fascina. A chamada profissão mais antiga provoca intensa curiosidade nos caretas e pessoas "comuns". Em nosso imaginário, a prostituta conhece mistérios de liberdade que nos são vetados.

          Ela vive uma impalpável ambiqüidade que nos enlouquece: ela vive no mal e dá prazer, ela é um mal e um bem, ela está entre a liberdade sexual e a escravidão. As peruas a desprezam e invejam. A prostituta é um mito. Claro que não falo da prostituta real, pobre, sofrida. Não me refiro ao problema social. Falo das que povoam nossas fantasias imaginárias.

          A prostituta antiga era o oposto das esposas santas. Hoje, nossas mulheres "da vida" são chamadas de "garotas de programa" e fazem parte da cultura do entretenimento, tanto quanto os filmes sobre elas. A prostituta contemporânea não é uma marginal; ela está no centro do sistema, como os advogados, os banqueiros ou dentistas. A exploração e violência continuam, claro. Mas a aura obscura do pecado se desfez.

          Antes, nossas bacantes se escondiam pelos cantos, trêmulas de vergonha. Agora, com a permissividade pós-tudo, ser uma "mulher da vida" é uma profissão mais nobre do que a vida de muita perua casada (também uma profissão rentável). Aliás, o nome "mulher da vida" já denota que elas se aventuram no lugar abstrato onde imaginamos que se passa a "realidade", a aridez do mundo sem lei, o mundo como um nervo exposto, demandando coragem e sobrevivência.

          Quando íamos aos prostíbulos adolescentes, tínhamos a sensação de conhecer o lado mau da vida, o lado "real" que nos escondiam, conhecer quase um doce "crime". Eu fui a bordéis para conhecer a "vida".

          Antes, as "decaídas" precisavam do casamento sagrado que as excluía. A micheteira antiga era uma necessidade fisiológica, uma extensão, um "puxadinho" das famílias, para compensar a tristeza do amor conjugal.

          Hoje, elas são "acompanhantes", "scorts", "promoters" e outros eufemismos. São malhadas, aerodinâmicas, sadias. Hoje, elas são digitais, milhares de flores se oferecendo na web.

          Antigamente, vivíamos uma feérie de gonorréias. Hoje, elas é que temem as tuas doenças. A camisinha te exclui, te faz ridículo com o pênis encapotado como um cachorrinho de suéter. A camisinha te humilha e ofende; com a camisinha, você é que é o perigo - ela, a saúde.

          As ex-decaídas (hoje ascendentes) modernas não aspiram a uma "vida normal"; preferem a gelada aventura pela grana. Cada vez mais a prostituta é pura - a vida social é que se "bordelizou". A mulher romântica e a "perdida" infeliz são invenções dos homens, para minorar a insegurança que sentem diante das mulheres. Os frequeses de bordéis pagam as prostitutas para que elas não "existam".

           A prostituta contemporânea não se envergonha do trabalho e não tem sentimento de culpa; talvez, apenas nojo...de você. Elas te olham de igual para igual, ou melhor, com uma finíssima superioridade. Elas são ativas, despachadas, tomam providências, tirando do homem seu maior prazer, que era o sentimento de superioridade moral em folga passageira - um habitante.

          Hoje, o sujo é você. Havia no velho putanheiro a vaga crença na recuperação das "infelizes". No ar dos prostíbulos antigos, flutuava um silêncio triste pela ausência de amor, por um visível sentimento de culpa que fregueses tentavam preencher com uma repugnante bondade. O diálogo melodramático de antanho denotava seu desejo de parecerem mais "humanos":

- Por que você caiu nessa vida? - perguntavam os hipócritas bordeleiros, antes do ato.

- Ah...meu noivo me fez mal, meu pai me expulsou...- gemia a rapariga.

- Mas por que você não larga essa vida? - sussurrava o canalha, superior e sinistro, tirando as calças.

          Por isso é que elas se apaixonavam pelos cafetões boçais, que as espancavam com jubilosas bofetadas.

          Elas não pensam em se salvar pelo casamento. Esse papo da "Pretty woman" já era; elas não sonham com algum babaca romântico que lhe dê a mão; muitas são até bem casadas e ajudam os maridos. Conheci uma professora de Ribeirão Preto que se prostituía regularmente no Rio, num famoso lupanar da Rua Senador Dantas, onde era muito desejada, orgulhosa como uma rainha-mãe.

           Mais "anormais" que elas são os homens que as procuram. Trata-se de um teatro a dois, onde as gargalhadas, os gozos fingidos, escondem o drama, a dor, a realidade.

           Os putanheiros não querem saber da realidade. Assim, escondem de si mesmos o constrangimento da situação, com mentiras consentidas, como se fosse possível o encontro feliz entre classes sociais. Para eles, a prostituta é uma utopia, a prostituta é o socialismo.

          Há algo de artista nas prostitutas; mais que atrizes, elas acreditam em sua obra. Nelson Rodrigues disse: "Não há atriz mais inepta ou medíocre que represente mal uma prostituta. A meretriz de teatro é perfeita como a Eleonora Duse".

          Mais artistas ainda são os travestis, pois eles fazem arte séria e corajosa. O travesti tem orgulho de ser quem é; ele é uma afirmação de identidade. Há algo de clone no travesti, algo de robô, pois eles nascem de dentro de si mesmos; eles são da ordem da invenção poética.

          Antigamente, ia-se ao bordel em busca de ilusões. O homem queria se sentir um sultão no harém. O putanheiro era o "sujeito" do lupanar. Hoje, ele é o "objeto". Há um vento gelado nos bordéis atuais - limpos, rápidos e eficientes como uma lanchonete. Há algo de enfermeira ou psicóloga na moderna "cocote". Há algo de McDonald's nos puteiros de hoje.
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Artigo extraído do jornal O Globo (15/03/2011)

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