segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Dança e Educação

Rolf Gelewski


A inclusão da arte no processo educativo, a qual tem sua motivação básica no desejo de favorecer a evolução integral do ser em desenvolvimento, significa realizar uma educação atualizada. E se os pais procuram dar a seus filhos uma educação atualizada, e se os próprios educadores buscam a atualização de seus conhecimentos e métodos didáticos, então, isso é sem dúvida algo certo e bom.

Mas o termo atualização, tão interligado com a atual inclusão da arte no processo educativo, é um termo ambíguo. Tem dois sentidos fundamentais. Um deles poderia ser denotado, aproximadamente, pela conjugação das noções modernização e reforma, e o outro, pela conjugação das palavras intensificação e consciencialização. Com isso, quero dizer o seguinte:

Nós, contemporâneos do século XX, temos a tendência de buscar perpetuamente inovações. Sentimos uma inquietude existencial e por isso lançamo-nos em atividades sempre novas, em vez de estabelecer paz e tranquilidade em nós. Não conseguimos satisfazer-nos com as coisas de hoje, e como cada dia é um novo hoje, ficamos na busca contínua das coisas de amanhã.

Há uma verdade nisso. Pois os melhores entre os contemporâneos, depois de terem vivenciado e profundamente experimentado os valores de nossa civilização, os do passado e os atuais, voltam-se, afinal, de maneira decisiva para o futuro. Têm a esperança, a certeza de que a saída da situação em que o mundo está só pode ser encontrada no ainda não-realizado - que a monotonia das estúpidas repetições dos atos de ignorância, brutalidade e mesquinharia, que marcam nossa realidade, há de dar lugar a uma consciência nova, elevada, base da construção de um mundo novo, um mundo menos ignorante, menos brutal e menos mesquinho.

Mas os indivíduos que assim pensam sabem também que uma coisa, pelo simples fato de ser nova, não precisa ser sinal da consciência nova esperada, absolutamente, e que as assim chamadas atualizações são, muitas vezes, apenas modernizações e reformas que nada atingem a não ser a aparência visível das coisas, mas não sua raiz - equivalem-se a uma troca de roupas. É claro que o homem que vestiu uma camisa nova, não mudou. Atualização, no sentido de uma mera modernização, seja ela referente ao comprimento da saia ou a técnicas educativas, aparece como algo que, em última análise, é dispensável.

Atualização, porém, no sentido da atualização de forças até então latentes, atualização como transladação de potências em poderes de eficácia construtiva - a essa atualização o nosso sim! espontâneo e total. Sim! ao despertar das riquezas que em nós e no mundo dormem, à intensificação de nossa vida e consciência. Sim! à transformação e mutação de nosso ser.

O próprio tema de minha palestra chama-se Dança e Educação. É um tema específico, tão específico que acho necessário dizer primeiro algo sobre o significado da arte como recurso educativo; e antes disso, até, quero procurar apreender a essência da educação em si, perguntando pelos objetivos da última. Apenas desta maneira - parece-me - estaremos em condições de peceber qual a contribuição da arte e, em particular, da dança para a educação. Surge então a pergunta básica:

Quais os objetivos da educação?

Como resposta extremamente concentrada quero citar o pensamento de um homem até então pouco conhecido, e que especialmente no círculo dos profissionais de educação não tem nome. Esse homem é indiano, pensador, poeta e yogi, e chama-se Sri Aurobindo. Eis seus pensamentos:

"O próprio objetivo da educação deveria ser ajudar a alma em crescimento a desenvolver dentro de si aquilo que é melhor e tornar isso perfeito para um uso nobre".

Sri Aurobindo fala do próprio objetivo da educação. Segundo ele, a educação tem um determinado fim que, essencial e inalienável, é equivalente ao sentido dela. A um mesmo fim, diferentes caminhos podem conduzir. Pode haver, então, técnicas e práticas educativas distintas com fins específicos, mas devemos estar conscientes de que toda realização meramente específica na educação é uma reazlização apenas parcial, e quaisquer que sejam os caminhos e quaisquer que sejam os fins específicos, o objetivo central da educação é um só e deve estar sempre presente.

No momento em que um parcial domina, a educação deixa de ser educação. Torna-se qualquer outra coisa, talvez instrução, treinamento, adestramento ou imposição. "O educador" - diz Sri Aurobindo - "não é um instrutor ou mestre de tarefas, ele é aquele que ajuda e guia".

Ajudar quem? Guiar quem? Claramente, diz Sri Aurobindo: "O próprio objetivo da educação deveria ser ajudar a alma em crescimento...". Ajudar, guiar a alma em crescimento? Não se deveria dizer: "Ajudar a mente em formação?" ou "o corpo em crescimento", ou, de uma maneira mais geral, "o ser humano em desenvolvimento?" Pôr em lugar disso a alma?

Quem conhece Sri Aurobindo sabe que ele usa essa palavra conscientemente. Sabe que ele, quanto fala do ser humano, dá o valor central à alma e sua evolução. Por que? Tem a alma realmente tal importância? O que significa ela, no fundo?

"O segredo do ser humano" - diz Pierre Teilhradt de Chardin - "...situa-se na natureza espitirual da alma. Mas essa alma escapa à ciência cuja natureza é analisar as coisas em seus elementos e antecedências materiais. Apenas o sentido interior e a reflexão filosófica podem descobrí-la". O segredo do ser humano, o segredo da existência humana, o sentido encoberto da existência do homem no mundo atual situa-se, diz Teilhardt de Chardin, na natureza espiritual da alma e não em outras propriedades nossas. O essencial no homem, então, é a alma, e dizer que ela é de natureza espiritual, significa dizer que ela se origina do Espírito, do Uno, de Deus, que ela é parte D'Ele.

"Natureza e Ego não são tudo que somos; há a alma livre..." - escreve Sri Aurobindo. E, numa carta diz: "A alma é algo do Divino que desce para dentro da evolução, como um Princípio divino no meio dela, a fim de apoiar a evolução do indivíduo, sua partida da Ignorãncia e seu crescimento para dentro da Luz".

E desde sempre que se acrescenta à palavra "alma" a outra - "divino". É desde sempre que o ser humano percebe algo diferente de seu ser natural, uma presença dentro de si, uma entidade secreta, oriunda de uma dimensão supra-mental e por isso não-tangível, não-apreensível pelo intelecto. Essa entidade, emissora de nossa consciência interior cujo espelho puro o ego cobriu, sabe, espontânea e claramente, da existência de algo superior às coisas e acontecimentos deste mundo, algo de que nossos sentidos e nosso raciocínio não são capazes de nos falar.

Mas sem precisar da afirmação pela mente ou pela sociedade, a alma sabe, sabe e estimula no indivíduo a busca da Realidade Superior, não, afinal, para promover a fuga desse mundo, mas para ajudar o indivíduo a libertar-se de seu ego, e, assim, começar uma vida mais verdadeira.

"O ser humano" - diz o filósofo Ernst Bloch na sua obra Princípio Esperança - "é aquilo que tem ainda muito diante de si...O verdadeiro, no homem como no mundo, não está realizado, está esperando...". E num outro lugar, EB diz: "Esta percepção significa: o ser humano vive ainda, em todo lugar, na pré-história, absolutamente tudo e cada coisa ainda está antes da criação do mundo, o mundo verdadeiro".

Esse mundo, então, não seria o mundo verdadeiro? O homem não seria o resultado último da criação, mas um ser transitório, imperfeito, ainda em evolução? Esses sucessos da ciência, da técnica, da civilização, essas grandes excitações em torno da música popular, o panorama universal de modernização, criminalidade e corrupção, a fome, as guerras, as fachadas de paz, o número de suicídios, neuroses e outras doenças - será que o indivíduo que não fuma maconha e não se faz de servo de suas ambições, do estômago, do dinheiro ou do sexo, que não cultiva uma tola auto-satisfação nem foge para dentro de um estreito sistema filosófico ou dogma religioso, será que o indivíduo, com a consiência desperta e voltado para o todo, pode achar que este mundo e o papel do homem nele sejam o mundo e a vida verdadeiros?

A pergunta essencial na educação é, se queremos adaptar o educando à realidade existente, ou se queremos despertar nele as forças que o tonam capaz de colaborar na transformação da vida e do mundo. E para dizer isso com toda clareza: essa transformação é uma questão essencialmente interior e não exterior, isto é, a alavanca dessa transformação escontra-se no dentro e não no fora - é uma questão de consciência e não de meios materiais. O escritor Satprem, no seu ensaio O Grande Sentido, diz: "Inventamos meios enormes a serviço de consciências microscópicas, artifícios esplêndidos a serviço da mediocridade, e mais artifícios para nos curar do Artifício".

O objetico central da educação é ajudar o educando a descobrir dentro de si o que é essencial, o núcleo de seu ser, a fonte da força, a consciência e individualidade verdadeiras; do outro lado, estimular o desenvolvimento e aperfeicoamento de força, consciência e individualidade, e sugerir que sejam colocadas a serviço da verdade mais alta que conseguimos conceber.

Sem dúvida, nossos problemas são problemas de consciência. Por isso, o crescimento de uma consciência nova, mais intensa que a atual, seria o resultado máximo da educação. É evidente que o meio fundamental e mais eficaz para despertar uma consciência nova no educando é a realização vivencial dessa consciência nova pelo próprio educador. Mas este deve, antes de falar dela, vivê-la e manifestá-la em seu ser e existência. Na pessoa desse educador, tudo e cada coisa torna-se-ia recurso criativo e construtivo de educação.

Tais educadores, porém, são bem raros, e o número daqueles que devem ser educados é enorme. No que se refere à realidade escolar presente, necessitamos concretamente de recursos que possam modificar as estruturas limitadas do ensino. Precisamos de meios educativos que possibilitem ao professor encarar o ensino de uma maneira nova, e ao educando experimentar-se, descobrir-se e encontrar-se num sentido mais integral.

Não se pode duvidar que aquelas técnicas educativas, sejam elas tradicionais ou moderníssimas, que visam à formação e ao treinamento do intelecto apenas ou que, unilateralmente, se utilizam dele, sufocando invenção, intuição e realização individual, não representam meios para favorecer o crescimento integral do ser humano. A mera formação intelectual, seja ela de natureza científico-técnica ou cultural-artística, nada resolve nesse sentido. Não resta dúvida: afinal, as teorias hão de ser substituídas por experiências, as idéias por realidades.

Nessa fase da educação, a arte pode trazer contribuições de inestimável valor. Pois a arte, além de corresponder, juntamente com a filosofia e a religião, às necessidades metafísicas, meta-vitais e meta-mentais do ser humano, é ao mesmo tempo um meio excelente de desenvolver, disciplinar e coordenar harmonicamente as componentes de nosso ser: o físico, o vital, o mental e o psíquico.

Em toda prática artística, o ser humano é chamado a participar com a inteireza de seu ser. Espontaneidade, sensibilidade, criatividade e inteligência, concentração, controle e disciplina do físico, da dinâmica vital e das emoções, o sentido filosófico e outras qualidades são exercitadas e desenvolvidas, nas experiências artísticas criadoras e re-criadoras. Além disso, a arte é uma linguagem internacional, verdadeiramente apta a pôr o indivíduo em contato direto com os povos do mundo e suas culturas e, desta maneira, fazê-lo reconhecer seu lugar como integrante da Família Humana.

E a mais valiosa contribuição da arte para a educação consiste na exigência de voltar-se para dentro de si próprio, o chamado para tranquilizar e silenciar o ser exterior e entrar numa relação sincera com seu ser e vida interiores. "A arte não reflete o visíve, mas torna visível", diz o pintor Paul Klee. Se a arte procura tornar visível o que normalmente não é visível, estão, precisa estabelecer correspondências com o invisível, para experimentá-lo e conhecê-lo, e essa busca significa exatamente o que dissemos antes - significa a exigência de voltar-se para dentro de si próprio, o chamado para tranquilizar e silenciar o ser exterior e entrar numa relação sincera com seu ser e vida interiores. Pois na arte, a realização interior é a fonte e a raiz da realização exterior.

Dissemos que a arte é um excelente meio para desenvolver, disciplinar e coordenar harmonicamente as componentes de nosso ser: o físico, o vital, o mental e o psíquico. E entre as artes, a dança deve ser considerada o meio mais eficiente e intenso para tal desenvolvimento, disciplina e coordenação, porque em nenhuma outra arte, as componentes constituintes de nosso ser são exercitadas de maneira mais total.

No dançarino verdadeiro, o físico, o vital e o mental formam o completo instrumental: o físico é a mecânica, o instrumento material movimentado pelas energiais vitais que tanto servem de força motora quanto possibilitam a realização da dinâmica de expressão, no físico; o mental observa, consientiza, corrige, organiza e coordena a execução dos movimentos e suas relações com o espaço, o ritmo, a música etc.; e o movedor central e revelador desse instrumental é o psíquico, que se manifesta através do material vivo e coordenado do movimento corpóreo humano.

Sem dúvida, o psíquico procura manifestar-se com igual força e intensidade também nas outras artes. Mas o médium mais próximo à psique é o corpo no qual ele habita; ele é o instrumento mais imediato, mais capaz de adaptação e mais pronto a transformar-se e irradiar.

Vê-se, assim, que a dança é a comunicação mais direta e a realização mais total entre as artes, ao lado do teatro. Mas enquanto há no teatro uma diversidade de recursos básicos (fala, mímica e expressão corporal) e, desta meneira, uma certa divisão de forças e da concentração, toda a intensidade do homem, na dança, se une e se manifesta num só meio: o movimento de seu corpo. O material essencial e mesmo único da dança é o movimento do corpo humano.

Igual à música e à poesia, a dança é uma arte no tempo, isto é, as manifestações musicais, poéticas e de dança precisam do tempo para desdobrar-se e realizar-se, como seres vivos que crescem e evoluem. Esse condicionamento básico em comum é exatamente a razão pela qual a dança consegue unir-se tão naturalmente com som, ritmo e fala, e a fascinação específica que as artes no tempo exercem tem sua causa principal na simbólica equivalência das mesmas a tudo que é transitório, como nós, nasce, cresce, se desenvolve e desvanece, tudo que vive e evolui.

Igual à pintura, escultura e arquitetura, a dança é uma arte no espaço, isto é, sem o espaço as manifestações das artes plásticas e da dança não teriam existência - ele é a condição essencial de todas as realizações concreto-materiais. A dança, segundo isso, é uma arte no espaço e no tempo, e espaço e tempo, vistos por si, são as duas componentes fundamentais do exsitir do mundo e da vida, sendo que a terceira componente fundamental da evolução universal é a energia. Espaço, tempo e energia, porém, são igualmente os três elementos constituintes do movimento e este, por sua vez, é um fator sem a presença do qual as noções de vida e evolução não teriam sentido.

Constatamos antes que o material essencial da dança é o movimento do corpo humano. É certamente por causa dessas interrelações complexas, por causa da profunda correspondência da dança aos princípios e componentes que condicionam e determinam a existência do universo e da vida, que a dança vem ocupando, desde o começo perceptível da humanidade, um lugar de destaque na vida do homem, tanto como manifestação vital elementar quanto e especialmente como meio de evolução, veneração e simbólica representação de poderes universais e espirituais, da realizão de rituais de magia a religiosos, da aproximação à região do supramental e da fusão com ela.

Nesse contexto, revelam-se a luz e a força das intuições que deram origem às mitologias das culturas antigas - pois segundo a mitologia indiana, por exemplo, o universo com a plenitude de suas manifestações foi criado pela dança de um deus, o deus Shiva. A dança, então, origina-se da busca do homem de comunicar-se e fundir-se de uma maneira integral com a região do supramental, experimentando e intensificando o indivíduo, deste modo propiciando as evoluções de sua interioridade. E uma segunda raiz da dança consiste em nossa necessidade elementar de extravasar energias vitais excessivas, através do movimento do nosso corpo. Nisso, temos os fundamentos das contribuições básicas da dança para a nossa educação.
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Artigo extraído, e aqui um pouco reduzido, da revista Cadernos de Teatro nº 54/1972. Este artigo reproduz a palestra proferida pelo autor no IV Festival de Inverno de Ouro Preto.

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