O Living Theatre
Odette Aslan
Dirigido por Julien Beck e Judith Malina nos Estados Unidos, conhecido por suas turnês pela Europa após a revelação do grupo no Teatro das Nações em 1961, O Living Theatre ofereceu seus primeiros espetáculos em 1951, em New York. Beck, enquanto pintor, havia frequentado o círculo surrealista americano por volta de 1945. Malina havia estudado teatro com Piscator, que trabalhou nos Estados Unidos de 1939 a 1951 e a levou a conhecer as teorias de Brecht e de Meyerhold. Por que chamaram a companhia de Living Theatre? Porque desejavam "acentuar o instante que se vive, no meio atual" das peças que representariam.
Perseguindo um certo fantástico, bucaram na linguagem poética a apreensão de um além do real, uma oportunidade de agarrar o inconsciente. Montaram alguns dramas em verso, mas parece que a poesia lhes colocou um problema difícil de resolver. Queriam somente a sua essência e não sabiam como conciliar tecnicamente a dicção poética e o novo estilo de atuação que estavam elaborando, unir um texto em verso com os movimentos do corpo, torná-lo vivo. Escolheram autores contemporâneos: Paul Goodman, Gertrude Stein, Kenneth Rexrotts, Picasso, Eliot, Cocteau etc. Montaram também Jarry, Strindberg,Pirandello e Brecht.
Rapidamente comprometeram o espectador na representação, montrando-lhe acontecimentos da vida, cruamente, sem trapacear, sem esconder nada, incitando-o a reagir. Em "Faustina", de Paul Goodman, uma comediante interpelava o público: "Vocês acabam de assistir a um assassinato, por que não o impediram?". Com "Connection" (peça sobre as drogas) e "The Brig" (sobre a disciplina numa prisão de fuzileiros navais americanos), afirma-se um estilo: o documentário provocador. Já se vêem aí inserções de seqüências que são o resultado de improvisações sobre o tema da peça; a duração da representação varia segundo o tempo maior ou menor dessas improvisações a cada noite.
Mas, pouco a pouco, a companhia se renovou, novos atores vieram amalgamar-se nessa trupe boêmia e anarquizante, e mordidos pela improvisação, impacientes para se exprimir na primeira pessoa, contribuíram para a criação de espetáculos coletivos: "Mysteries", "Paradise Now". Entrementes, o Living Theatre encenou duas peças escritas por autores: "As criadas", de Genet, e "Antígona", de Brecht.
O Living preocupa-se muito mais em fazer teatro do que existir enquanto grupo que se propõe problemas e os propõe ao espectadores. Beck e Malina contestam a sociedade capitalista, recusam o circuito comercial do teatro, a própria forma do teatro, desde a arquitetura até a escrita e a atuação. Tendem a um novo modo de vida. Trabalham pela liberação do homem em todos os níveis. Queriam abolir a entrada paga no teatro. Aceitar a circulação do dinheiro é aceitar todo o sistema de uma civilização que não os satisfaz. Querem abrir o teatro a todos, partilhar seus sonhos e suas revoltas. Desejam chocar o espectador e recusam-lhe qualquer pretexto à ilusão, como belos cenários e belos figurinos para olhar. Não hesitam em experimentar um realismo cruel a confinar no verismo. Em outros espetáculos recorreram aos símbolos mais abstratos. Acabaram por criar um novo tipo de ator.
O Ator do Living
(segundo período, a partir de "Connection")
Ele se apresenta em cena tal como o é na cidade: geralmente em blue-jean e pulôver gola rolê, alpargatas ou descalço - em "Paradise Now", usa só uma sunga). Em algumas peças conserva seu próprio nome e representa sua própria personagem. É um "criador": o encenador lhe dá apenas o ponto de partida, um estímulo e ele deve reagir com sua personalidade. Não uma personalidade de cabotino exibicionista, porém de indivíduo consciente, responsável, microcosmo da sociedade na qual ele vive e que busca em si mesmo as fontes necessárias para exprimir-se. Por que eu quero ser ator? O que tenho a dizer? O que posso fazer para que o mundo viva em paz e no amor? Eis o tipo de perguntas que o ator do Living faz a si mesmo. Quando o recrutam, não se examina a sua técnica, pergunta-se-lhe se aceita as regras de vida da comunidade.
Do ponto de vista da formação, eles vêm de todos os lugares: teatro, cinema, cabaré. Um estudou no Actor's Studio, outro no Herbert Berghof Studio, outro na Universidade de Winconsin. O passado e as convenções dos outros teatros pouco importam. No Living, as pessoas se questionam, participam de uma experiência em todos os instantes, têm espírito anarquista, estão "à margem". No meio profissional, alguns os desprezam, achando que a eles faltam método e técnica, que seus comediantes, formados de qualquer jeito, são amadores que, por seu aspecto andrajoso, desconsideram a profissão, que eles uivam e chafurdam no chão por não saberem dizer um texto nem se movimentar em cena, que sua histeria impede qualquer atitude crítica do espectador. Se os espetáculos do Living nem sempre atingem a perfeição formal, contribuíram grandemente para derrubar os tabus e os trabalhos banais e tornaram a dar ao público jovem a vontade de ir ao teatro.
Com freqüência cita-se Artaud a propósito dos espetáculos do Living. De fato, Beck e Malina conheceram-no muito tarde, porque ele não havia sido traduzido para o inglês. Viram que suas idéias de certo modo coincidiam: agredir o espectador, mergulhá-lo num estado físico mais do que lhe dar explicações, provocá-lo para que participe de uma improvisação coletiva, a fim de que reaja. Fraternidade e crueldade. Espectador, meu irmão, você não está aqui para se divertir, mas para protestar conosco contra a guerra e contra todos os crimes da sociedade de consumo. Beck está também muito próximo de uma técnica de agitação e propaganda (agit-prop), mas ele se sente cidadão do mundo e do universo espiritual mais do que sustentáculo de um partido. Gastaria de "acentuar o caráter sagrado da vida, aumentar o campo da consciência, destruir muros e barreiras".
Em 1963, quis desencadear uma greve mundial pela paz. Ao montar a "Antígona" de Brecht, pensava no pacifismo de Gandhi. A pluralidade das influências em Beck e Malina, de Piscator ao Oriente, no entanto não redunda em desaparecimento de um lado especificamente americano, onde a psicanálise mantém seus direitos: "Procedemos de modo que os arquétipos do subconsciente se depositem na consciência, começamos a utilizá-los, dirigimos nossos corpos segundo as mensagens que recebemos do sub-consciente", diz Henry Howard. Como faria um membro do Actor's Studio, Beck diz: "Em 'Antígona', não somos personagens. Não faço Creonte, faço Julien Beck". Ele evoca até a memória emotiva:
No início, não chegava a chorar enquanto Creonte. Tentava todas as combinações sensoriais e nada ocorria. Não chegava a sentir profundamente o suficiente, eis o problema; só fui capaz de chorar no coro dos Monstros quando o diafragma começava a me impedir de respirar.
O ator do Living não tem de adquirir uma dicção de teatro, uma voz de teatro. Atua como é. Sem cenário, sem móveis. Três comediantes fazem o trono de Creonte. Para servir de assento a Tirésias, um comediante deitado levanta o traseiro. Os comediantes sugerem as celas da prisão onde Antígona se debate, através da posição de seus corpos. Este velho procedimento é retomado agora por todas as jovens companhias. O Living também cai na tendência que prolifera na era do audiovisual, a multiplicação das imagens, a transposição de tudo o que, no texto, pode dar lugar a uma ilustração plástica.
Em "Antígona", em "essa carne exposta aos pássaros", três comediantes fazem os pássaros. "Não havia guerra": o povo e os Anciãos mimam a guerra. Posturas, agrupamentos, inspiram-se na pintura ou escultura (J. Bosch, o Egito, os astecas). Com freqüência é por meio da postura, do gesto, que se traduz uma relação entre duas personagens, uma vontade ou um pensamento não contido nas palavras. Creonte torce o braço de Antígona, castra os homens, monta sobre seu dorso. Quase se pode seguir as falas pelo encadeamento das imagens.
Iniciada na biomecânica de Meyerhold através de Piscator, Judith Malina viu que uma ação exata do corpo podia favorecer certos sons. Sem estender tal estudo como Grotowski, o Living construiu com base nesse princípio a partitura sonora de representação. Apela à ioga para desenvolver a respiração. Uma comediante se iniciou nas ragas indianas. Há esforços a fim de se passar da voz falada à cantada sem chegar à arte lírica. Trata-se de proferir e encadear sons numa empreitada coral. Um universo sonoro integra-se à ação, além das palavras: ambiência, sonoplastia. O verbo se prolonga. Instaura-se uma melopéia, inspirada nos negros spirituals ou no ritual hebraico. Alternam-se respostas cantadas e faladas.
Em "The Brig", um comediante faz uma noite o prisioneira, noutra o carcereiro. Nas peças seguintes, a noção de personagem explode: cada ator desempenha vinte ou trinta, passando livremente de um a outro sem trocar de maquiagem, vestuário ou de comportamento. Em "Frankenstein", vários intérpretes formam coletivamente uma criatura. Em "Antígona", a fala no presente sofre distorções: um ator representa o que se passa na imaginação ou na lembrança do outro. A fala do guarda relatando a falta de Antígona é mimada por ela que torna a executar a ação passada. O cadáver de Polinices, em vez de estar lá onde o guarda o descobriu, encontra-se ao lado de Creonte, de quem é obsessão. Junto com a própria ação, a encenação representa igualmente o imaginário. O jogo do ator é dispensado de todos os embaraços da psicologia.
O ator não é obrigado a ser, cada noite, idêntico a si mesmo. Em "Connection", e em "The Apple", há mistura de cenas fixas e improvisadas, sendo que estas últimas ocorrem sempre no mesmo lugar, num determinado quadro. Como em um happemimg, enfim, os comediantes mesclados ao público dão aos espectadores a possibilidade de intervir. No Living, quebram-se todos os tabus. Ao montar "Connection", queriam mostrar que "todos nós temos necessidades de uma droga e que se os drogados chegam lá onde chegam, isto não provinha de sua natureza diabólica, mas dos erros do mundo inteiro.
Depois, a trupe entrega-se aos alucinógenos. Quebrar tabus é também desnudar-se para encorajar os espectadores a realizarem o mesmo. É demolir todas as inibições entre si. No exercício em que cada ator é um dia o sujeito, um dia uma das "forças" que agridem o sujeito, cada um inventa meios de agredir: gritos, golpes, toques, carícias no sexo do ator-cobaia.
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Artigo extraído, e aqui muito pouco reduzido, do livro " O ator no séculoXX" (Editora Perspectiva, 2010).
terça-feira, 24 de agosto de 2010
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