segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VI


Passei um dia absolutamente tranquilo. Ao voltar para o meu quarto, constatei que agradáveis surpresas me haviam sido reservadas. À escassa mobília tinha sido acrescentada uma cadeira e uma ampla escrevaninha contendo papéis, caneta e tinta. Eu fiquei felicíssimo, pois o que mais queria era registrar a extraordinária experiência que estava vivendo e meu minguado bloquinho não me permitiria fazê-lo. Além disso, uma esplêndida refeição, colocada numa bandeja com rodas, estava à minha espera. Assim que a vi me lembrei de que não me alimentava desde o dia anterior e foi portanto com volúpia que devorei tudo o que havia nas travessas, só não pedindo para repetir porque achei que não seria educado. Sentindo-me, então um outro homem - é impressionante a facilidade com que me sinto um outro homem - entreguei-me à tarefa de passar para o papel tudo o que testemunhara desde minha chegada àquela cidade.

Às cinco da tarde minha missão estava concluída. Tendo escrito sete horas consecutivas, tinha a mão direita destroçada e os olhos turvos. Foi então que me lembrei da magnífica banheira e resolvi repousar imerso até que me chamassem para a expedição noturna. Tão relaxado me senti que acabei adormecendo, e, para minha surpresa, não sonhei. Passei duas horas à margem da vida, como diria Tennessee Williams, sem visões ou sobressaltos de qualquer espécie. Fui acordado por sacudidelas que verifiquei, ao abrir os olhos, terem sido dadas por uma irmã que me olhava com um misto de simpatia e severidade.

- Sou irmã Ocampo. Fui eu que lhe entreguei o traje de monge, lembra-se?

- Ah, claro...- eu não me lembrava, am absoluto.

- Nós formaremos um grupo de sete pessoas. Todas as que estavam naquela sala, com exceção de irmã Geovana, e o senhor.

- Quer dizer que irmã Vantini também irá?

- Sim.

- A presença dela é absolutamente necessária?

- Sim. - e esta segunda assertiva foi articulada com certa impaciência.

- Por quê?

- Senhor Aquino: fui incumbida de chamá-lo, apenas isso. O senhor provavelmente ainda terá inúmeras oportunidades de resolver sua relação com irmã Vantini.

- Eu não tenho nada para resolver com ela.

- Então por que questiona sua presença em nosso grupo?

- Acho-a uma grossa.

- E ela o acha um mentiroso.

Ao ouvir tal confidência, erguí-me de um salto na banheira, exibindo sem querer minha nudez ensaboada.

- Mentiroso, eu? Escute, baseada em que ela se atreve a...

Mas irmã Ocampo, em atitude que me pareceu algo deselegante, simplesmente deu-me as costas e se foi, apenas me avisando que me aguardava no corredor. Deixei a banheira indignado e depois de me enxugar rapidamente, contemplei-me no espelho e murmurei, rangendo minha frágil destição: "Não se deixe encharcar de bílis, Gabriel, pois a desconfiança que ora pesa sobre você logo se converterá em gratidão eterna".

Ao chegarmos à estrebaria do convento, cuja existência até aquele momento desconhecia, já nos aguardavam montadas as irmãs Fernanda, Marcela, Clara, Silvia e, naturalmente, a antipática e descrente Vantini. Irmã Ocampo me indicou o corcel que deveria montar e subiu no seu com uma destreza de profissional. Curiosamente, todos os cavalos eram brancos, excetuando-se o meu, negro como uma graúna. E todos eram enormes e extremamente fogosos. Como até então só andara em cavalos de pracinha, não tive o menor constrangimento de declarar que, em nenhuma hipótese, subiria num monstro daquele tamanho. Ante meu tom categórico, as irmãs entreolharam-se em silêncio. Subitamente, irmã Vantini se aproximou de mim com sua montada e disse:

- Venha comigo, já que não tem coragem...

Pensei em lhe dar uma boa resposta, mas preferi engolir em seco a ofensa, certo de que horas mais tarde ela se veria obrigada a desculpar-se. Contudo, embora tenha aceito sua proposta, não conseguia achar um jeito de trepar no maldito cavalo, que não parava quieto. Em vista disso, irmã Vantini foi obrigada a desmontar, a trazer um banquinho e a me ajudar, com ambas as mãos, a me instalar na corcova do neurastênico equino. Em seguida, deu-se início à operação que a levaria ao seu lugar, ainda mais complexa: tive que me deitar sobre o animal enquanto ela engatava o pé esquerdo no estribo e girava a perna direita sobre meu corpo, sentando-se literalmente em cima de mim. Depois, erguendo-se nos estribos, ordenou-me que recuasse até sair debaixo dela. Estando numa posição desconfortável e um tanto aterrorizado, demorei um tempo enorme para cumprrir sua ordem e creio mesmo ter ouvido sair de sua boca a expressão "mas que merda!" enquanto sob suas saias eu me debatia. Quando finalmente deu-se início à cavalgada, o amigo leitor bem pode imaginar o humor daquela que, à sua revelia, comigo partilhava sua montada.

Nossa tropa deixou o convento em fila indiana, tendo a comandá-la irmã Ocampo e fechando o grupo, irmã Vantini e eu. Uma vez no prado, puseram-se a galopar, aproveitando-se da magnífica visibilidade que a lua proporcionava e do conhecimento do terreno que possuíam. Quanto a mim, temendo despencar a qualquer momento, sem pedir licença grudei-me como um carrapato ao corpo de irmã Vantini e fechei os olhos, não sem antes entregar minha alma a Deus.

Confesso que tentei ocupar minha cabeça com pensamentos suaves e isentos de risco, mas o terror bloqueava minha fantasia e nada me ocorria de reconfortante. Impossibilitado de pensar, concentrei-me apenas no sentido de não levar um tombo, ajustando-me de tal forma ao corpo à minha frente que à distância deveríamos parecer uma só pessoa. Com os dois braços enlaçava a cintura de irmã Vantini, sendo que o direito, colocado acima do esquerdo, recebia constantemente o afago de dois seios que me pareceram magníficos. Nossas coxas, que a necessidade grudava, se roçavam sempre que o animal fazia um súbito desvio ou dava um pequeno salto. E suas nádegas, comprimidas contra o meu ventre, faziam-me sentir o delicado córrego que as dividia.

Involuntariamente, fui ficando excitado. Meu pênis inflava dando a sensação de que a qualquer momento explodiria. É claro que tentei o mais que pude refrear esse ímpeto, procurando pensar em coisas que, em condições normais, arrefeceriam o tesão do mais lúbrico dos mortais. Mas ainda assim meu caralho, tal qual uma injeção gigante, continuava a fustigar a bunda de irmã Vantini, dando-me a impressão de que a qualquer momento iria penetrá-la. E o pior é que a noviça tinha necessariamente que estar sentindo o tremendo ariete que a fustigava!? E se resolvesse interromper aquele sarro surrealista - seria absurdo supor que eu estaria tirando proveito da situação - e me desse uma bundada? Esta fatalmente me atiraria ao solo, onde encontraria morte imediata!

Sinceramente apavorado, segurei-a pelos quadris e tentei me afastar, nem que fosse uns míseros centímetros, a fim de aliviar a bárbara pressão. Mas quanto mais tentava, mais tesão sentia. Graças ao bom Deus - foi o que ingenuamente pensei - quando já estava a ponto de desistir, os cavalos foram sofreados, pois chegáramos às portas da cidade. Aliviado, já que a partir desse momento poderia me equilibrar sem tanta necessidade de apoio, soltei os quadris da ninfa malcriada e afastei meu corpo. Mas aí se deu o inesperado...

Contrariando toda a lógica, senti em minhas entranhas o inequívoco sinal de que iria gozar. Ainda tentei pular do animal, mas o orgasmo me pegou no meio do caminho e então não me restou outra alternativa a não ser a de me agarrar violentamente àquela que, totalmente a contragosto, teve que receber nas ancas minha desproposital demonstração de virilidade. E para piorar ainda mais o quadro, gozei como um condenado, exibindo caras e bocas, tentando ao máximo não rebolar - mas rebolando!? -, enfim, fazendo alarde de tudo a que não tinha direito. Quando por fim foi-se amenizando o espasmo, enfiei o rosto nas costas de irmã Vantini, disposto a nunca mais voltar a exibí-lo para aquelas mulheres, consciente da abjeção - ainda que involuntária - que perpetrara e da impossibilidade de obter perdão. Entretanto, passados alguns instantes, escutei a voz de irmã Ocampo, que a mim se dirigia sem trair nenhuma emoção especial:

- Será que já podemos prosseguir, senhor Aquino?

Mas, como? Nada me seria dito? Nenhuma humilhação imposta? Não me obrigariam a escutar severas reprimendas e quem sabe até a receber, sem reagir, alguns tabefes? Não, tudo o que lhes interessava era continuar a expedição. Em vista disso, e ainda que surpreso, ergui o polegar direito e reiniciou-se a marcha.

A cidadezinha, naturalmente, estava deserta. Parecia que todos os habitantes haviam saído de férias. Nada levava a crer que uma catástrofe vitimara todos eles, cujos corpos apodreciam ao ar livre justamente no lugar onde deveriam apodrecer enterrados. Mas sigamos. À medida que percorríamos a cidade, embora nada fosse dito, fui percebendo que a tensão do grupo aumentava. É evidente que, embora tenham optado pela expedição, no fundo as irmãs deveriam nutrir a esperança de que tudo se resumisse a um delírio de minha parte, pois a história que lhes relatara poderia perfeitamente ter sido engendrada por um louco. Mas, infelizmente para elas, a cada passo surgiam evidências de que eu não mentira. Quando chegamos ao botequim de vidro, irmã Ocampo, que seguuia puxando a marcha, estaqueou seu cavalo. Após contemplar por alguns instantes os vidros estilhaçados e os restos de meu vômito, se aproximou de mim com um ar algo transtornado:

- Até o momento, tudo que o senhor disse corresponde à realidade. Mas para que não reste a menor dúvida, é preciso ir até o cemitério. O senhor tem certeza de que não se enganou quanto ao essencial?

- Tenho. - repondi, sem a menor hesitação.

- Se tudo não passou de uma brincadeira de sua parte, ainda há tempo de voltar atrás! - insistiu, trêmula.

- Eu não iria brincar com algo tão sério.

Ficamos nos encarando algum tempo; ela, procurando detectar em mim algum sintoma de que mentira; eu, limitando-me a sustentar minha verdade. Finalmente, irmã Ocampo se afastou num rápido galope, para retornar em seguida até onde eu estava, sofreando sua montada quando já imaginava que ela resolvera saltar sobre minha cabeça.

- E lhe juro, senhor Aquino, que se isto for uma piada, o senhor não viverá o sufficiente para contá-la a mais ninguém!

E arrancou em louca disparada, no que foi seguida por todas as demais. Agarrei-me novamente à irmã Vantini e pela primeira vez me deu uma certa dúvida quanto ao meu relato. Até então seria capaz de jurar, por tudo que me era mais sagrado, de que não inventara um mísero detalhe. Mas agora, devido à lúgubre ameaça, eu vacilava. E se tudo não tivessse passado de uma alucinação? Afinal, a minha história parecia coisa de místico ou de drogado. E eu não era nada disso. Sempre acreditara em Deus mais por hábito do que por convicção e quanto às drogas, estas se limitavam às injeções de Baralgin que eu tomava quando meus rins se revoltavam. Além de tudo, sendo boa pessoa, não iria brincar com o sentimento das irmãs. Portanto, o meu perfil, no sentido moderno do termo, era o de um homem superficial - admito - mas incapaz de produzir sofrimento de forma deliberada.

Raciocínio profundo e conclusão óbvia. No entanto, para não fugir à regra, cheguei ao final dessas conjecturas mais inquieto do que quando as iniciei. Se fosse uma outra pessoa, teria sem dúvida me acalmado. Mas não era. O exercício da lógica produzia em meu organismo neurastênico o efeito inverso do esperado, da mesma forma que as bebidas alcoólicas acabavam me fazendo lembrar de tudo que visava esquecer ao ingerí-las. Em suma: sempre fora e continuava sendo o fim da picada.

Em função desta amarga constatação, já me preparava para iniciar uma longa sessão auto-depreciativa quando notei que nos aproximávamos do cemitério. Ou por outra, senti. O cheiro nauseabundo de cadáveres em decomposição tornava-se cada vez mais forte. Subitamente, irmã Ocampo sofreou seu cavalo e em torno dela se agruparam todas as irmãs. Nada diziam, apenas se entreolhavam, mas em todas se notava a mesma angústia. Agora se tornava evidente que eu não mentira. Não seria nem mesmo necessário prosseguir com a expedição: poderíamos voltar dali mesmo nos poupando um sofrimento inútil. Por isso me ocorreu sugerir um retorno imediato ao convento. Mas logo me detive ao reparar que irmã Ocampo chorava, as mãos crispadas no pescoço do animal.

Consciente de que a qualquer momento também começaria a soluçar - além de tremendamente influenciável, estava triste - saltei do meu cavalo (nem sei como) e corri até ela, comprimindo minhas mãos contra as suas, como se isso pudesse minimizar seu sofrimento. Foi aí que todas as irmãs, ao perceberem que a líder se descontrolava, começaram a chorar ao mesmo tempo. Meu trabalho, então, multiplicou-se por seis, e tal qual uma abnegada enfermeira da Cruz Vermelha, passei a correr de um lado para o outro, consolando e apertando, até que eu próprio não aguentei e me afastei correndo.

Eu não pretendia, em absoluto, penetrar no cemitériio, mas quando dei por mim era lá que estava. E o espetáculo que fui forçado a contemplar era dantesco: centenas de urubus disputavam sofregamente o que ainda restava dos cadáveres. À visão do macabro festim, minha angústia deu lugar ao mais profundo ódio. De posse de um galho seco que avistara casualmente, irrompi no meio das horripilantes criaturas distribuindo golpes para todos os lados. Muitas delas, devido à volúpia com que se entregavam à rapina, não percebiam minha aproximação e pagavam com a vida - não sei se Deus guiava minhas mãos, mas o fato é que a cada cacetada correspondia um urubu a menos sobre a Terra.

Num dado momento, alguns mais atrevidos me atacaram furiosamente. E embora conseguissem de vez em quando me bicar, acabei conseguindo afugentar todos aqueles que minha cólera ainda não vitimara - muitos, em sua debandada igualmente colérica, vomitavam os pedaços que não tiveram tempo de engolir. Então, exausto e ensangüentado, me ajoelhei na terra pútrida, fechei os olhos e também me permiti chorar. Alguns minutos depois, já mais calmo, reabri os olhos e dei de cara com irmã Vantini, que a curta distância me fitava.

- Venha rezar conosco - falou, num tom que mais se assemelhava a uma súplica do que a um mero e formal convite.

- Eu não sou católico. Quer dizer, não a ponto de...

- Não faz mal - interrompeu, com firme delicadeza. - O que importa, nesse momento, é que pensemos juntos naqueles que se foram. Venha...

Deu-me então as costas e começou a caminhar. Eu a seguui, um tanto perturbado por aquela inesperada mudança de atitude. Talvez por isso, quando nos aproximávamos do local onde nos aguardavam as demais irmãs, murmurei, baixinho:

- Irmã Vantini...eu lhe peço perdão.

Ao ouvir essas palavras, ela parou de caminhar e virou-se para mim:

- Eu também....- e se juntou às demais.

Fizemos um círculo e de mãos dadas nos ajoelhamos. E foi assim, em meio ao mais absoluto silêncio, que dedicamos um pouco de nós mesmos aos que se tinham ido. Em seguida, nos dirigimos até os cavalos, que, surpreendentemente dóceis, não armaram nenhuma cena. Voltamos a passo para o convento, como se o peso de tantas mortes nos tivesse convertido em chumbo.

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