terça-feira, 10 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO I


Quando Ambrosina Sarmento surgiu na porta de sua casa, conduzida numa maca por quatro adolescentes assombrados, a contrita multidão que a aguardava contritou-se ainda mais. Os senhores libertaram suas cabeças de chapéus imaginários e as senhoras apertaram contra os seios terços que não possuíam. Nada conhecendo dos hábitos e costumes daquela cidadezinha, onde só ficaria por algumas horas, julguei que a dama em questão poderia ser uma atriz e que todo aquele inusitado festival de mímicas fizesse parte de algum espetáculo, ainda que bastante insólito. Todavia, um corcunda a quem solicitei a confirmação de minha hipótese se encarregou de destruí-la com uma ênfase próxima da ferocidade. Em seguida, deu três medonhas cusparadas e desapareceu na multidão, sem ao menos dar-se a luxo de reparar que sua última escarrada se alojara no topo do meu pé esquerdo. Fiquei indignado, naturalmente, mas entre perseguir o gnomo e remover o asqueroso souvenir que me deixara, optei pela inadiável assepsia. No entanto, nem bem a iniciara quando uma tonitroante e cavernosa voz feminina me rasgou os tímpanos, literalmente paralisando-me:

- O demônio há de arrancar-te as trompas, mulher desnaturada!

Desconcertado mais com a potência vocal do que propriamente com a estranha professia, procurei avidamente sua autora. Foi então que percebi que todas as pessoas se concentravam na janela superior de uma casa situada do outro lado da rua. Nela uma anciã de indescritível feiúra, cujos cabelos esvoaçavam como se vento houvesse, mantinha-se fixa na maca de Ambrosina. Ninguém se mexia e nada era dito. Passados alguns instantes, novamente a voz terrível proferiu o mesmo vaticínio. O estranho é que a megera dava a sensação de não movimentar os lábios, o que me levou a suspeitar de que se tratava de uma ventríloca que odiava Ambrosina e que apenas procurava, ao exibir-se, roubar para si um momento que evidentemente não lhe pertencia - só mais tarde fiquei sabendo que a velha Ecúria, em dadas circunstâncias, conseguia transformar pensamentos em sons...

Finalmente, ela trovejou pela terceira vez e então a multidão virou-se em coro para Ambrosina, como a esperar dela a reação que ninguém ousava ter em seu nome. Mas a portentosa dama mantinha-se impassível, como se a perspectiva de Lúcifer arrancar-lhe um segmento de suas partes íntimas lhe parecesse ridícula a ponto de não merecer resposta. Entretanto, como deve ter intuído que a multidão inquietava-se e que nada retrucar poderia ser interpretado com um sintoma de fraqueza, ergueu ligeiramente o tronco e, após apoiar-se sobre os cotovelos e inclinar a cabeça com desdenhosa altivez em direção à bruxa, disparou com voz metálica:

- Mais uma palavra e todos ficarão sabendo que nasceste sem buceta!

O efeito da surpreendente revelação foi imediato. De pacata, a multidão converteu-se em furiosa turba, que atravessando a rua pôs-se a apedrejar a casa da desbucetada, ao mesmo tempo em que repetia com indizível prazer o obsceno refrão: "Ecúria não tem buceta! Ecúria não tem buceta!"

Percebendo que poderia sucumbir sob a chuva de bagulhos, a horrenda não teve outra alternativa a não ser refugiar-se no interior de sua casa, o que fez com que Ambrosina ordenasse o fim do bombardeio. Em seguida, pronunciou uma frase que me deixou atônito:

- Obrigado, meus amigos, pela fidelidade de sempre. Mas o tempo urge e eu faço questão absoluta de ser enterrada às cinco em ponto da tarde. Portanto, vamos indo!

Então ela tornou a se estender na maca e os adolescentes assombrados começaram a conduzí-la através da larga e arborizada avenida em que nos encontrávamos, encabeçando um cortejo cuja marcha circunspecta sugeria a iminente despedida de alguém de suma importância. Em poucos minutos, já não havia mais ninguém ali. Um tanto atordoado, repassei o que acabara de presenciar e por um momento acreditei ter sido vítima de uma alucinação. Mas como nunca fora dado a essa modalidade de passatempo, resolvi investigar a fundo o aparente delírio e corri na direção em que o cortejo partira. Entretanto, após dobrar algumas esquinas não descobri o menor vestígio dele. Decepcionado, estava a ponto de aceitar que havia de fato tido um surto quando avistei meu concurdinha, que seguia determinado numa direção precisa. Como além do calombo espinhal ele também puxava de uma perna, não tive grande dificuldade em alcançá-lo, mas em todo o caso me mantive a uma distância prudente, temeroso bem mais de sua saliva do que de sua aversão à nobilíssima arte de representar.

No entanto, por mais que caminhássemos não chegávamos a lugar algum, o que me fez suspeitar que o gnomo me atraía para uma cilada fatal. Em vista disso, decidi que se ele se embrenhasse por uma viela escura eu não o seguiria mais, pois é sempre num local como este que as pessoas são apunhaladas. Mas meus temores revelaram-se infundados, pois de repente nos agregamos aos milhares que, em profundo silêncio, rodeavam a imponente campa de Ambrosina Sarmento.

Imediatamente um faniquito percorreu-me a espinha, sensação que sempre me acossa quando intuo estar prestes a testemunhar algo de extraordinário. E aquilo certamente prometia: toda uma cidade, em silêncio de catacumba, rodeando o túmulo de uma senhora em vias de cumprir a mais estapafúrdia promessa que já ouvira! Excitadíssimo, tentei achar um local mais adequado, já que um mar de nucas me separava da aparentemente tresloucada protagonista. Para minha alegria, avistei a poucos passos uma pequena árvore, fácil de escalar, que me permitiria contemplar a cena comodamente instalado. Sem muito esforço galguei o arbusto e dali assisti ao mais espantoso funeral de que se tem notícia.

De pé sobre a própria campa, apoiada numa enorme bengala vermelha, toda vestida de negro, tendo na popa da cabeça um gigantesco coque que a distância convertia em casa de maribondo, Ambrosina Sarmento prescrutava com altivez a multidão, girando lentamente o esquálido pescoço como se procurasse se certificar de que ninguém faltara - e a julgar pelas ruas desertas que varei, toda a população, com exceção da velha Ecúria, deveria mesmo estar ali. Num dado momento, convencida de que ninguém ousara se ausentar, Ambrosina interrompeu seus pescoçais movimentos giratórios e se fixou num ponto que, incomodamente, me pareceu ser a minha árvore. Fantasiei de imediato que ela me descobrira e ordenaria à multidão que me arrancasse a pescoções do meu girau. Sim, pois eu era o único que não estava num plano inferior ao da campa e isso poderia ser interpretado como um desejo de equivalência, ao menos espacial, que não seria tolerado. Felizmente, tal não se deu. Na verdade, o que Ambrosina punha em prática era um velho ensinamento das escolas de teatro:

"Para se comunicar de forma eficiente com uma platéia numerosa o ator deve situar seu foco num ponto acima e atrás da mesma" - tal artifício, segundo os especialistas, produz a curiosa impressão de que o intérprete fala com todos ao mesmo tempo, quando na verdade não se dirige a ninguém.

- Meus amigos - iniciou a imponente figura - quando menina prometi a mim mesma que morreria aos cem anos e seria enterrada impreterivelmente às cinco da tarde, como o famoso toureiro. Aquilo que na época foi entendido como um capricho infantil e inexequível hoje se dá exatamente como arquitetado. Algumas pessoas se tornam alvo de admiração porque conseguem comandar suas vidas sem jamais se afastar um milímetro do rumo traçado. Espero que jamais se esqueçam daquela que, além disso, foi capaz de comandar sua própria morte!

Um início de ovação foi prontamente contido por um enérgico e circular movimento da bengala, à moda dos samurais. Um enorme viralatas, que jiboiava a poucos metros da campa, pensando talvez ser ele o alvo da expressiva bengalada, começou a latir de forma descontrolada. Calmamente, Ambrosina cravou seu olhar no cão, que logo se aquietou e, como se fosse de circo, estirou-se no chão, grudando o focinho no incômodo cascalho - na realidade, sofrera um colapso e caíra fulminado...

- Quanto ao meu livro de memórias - prosseguiu Ambrosina, indiferente ao assassinato que perpetrara - ao qual já tantas vezes me referi, ele deverá ser publicado em fascículos mensais, a preços populares e sua tradução fica expressamente proibida. Quem quiser conhecer a história de minha saga que aprenda nossa língua!

Novamente a multidão ensaiou uma manifestação aprobativa. E novamente a bengala cortou os ares.

- Como já lhes disse de outra feita, também faz parte do meu projeto ser enterrada somente ao som de minha própria voz. Portanto, ainda que respeitando o sentimento que os anima, peço que não me obriguem a caminhar para o além sob o efeito de gritarias e bateções de pé. Quero os ouvidos limpos para que possam ser fecundados pelo Senhor, com quem dentro de uns quuinze minutos travarei um diálogo memorável!

Tendo sido Deus introduzido na conversa, a massa, incontinenti, prostrou-se de joelhos. A fantástica precisão dos movimentos me remeteu às antigas paradas militares e por um momento imaginei que Ambrosina, tendo à sua mercê um contingente tão harmonioso, se poria a comandar uma sessão de ordem-unida. Mas ela não me pareceu nem um pouco entusiasmada. Após fuzilar a multidão com o olhar implacável de um inspetor de recreio, articulou, severa:

- Se querem prestar uma homenagem a Deus se colocando de joelhos, que assim seja. Mas não o façam todos ao mesmo tempo, nem do mesmo jeito. Se há uma coisa que Ele não suporta é a carência de pesonalidade. O rebanho, meus queridos, é uma metáfora bíblica. Será que até na hora de baixar à sepultura terei de lhes repetir isso?

A multidão tornou-se rubra. Embora conscientes da verdade proferida, todos coraram ao mesmo tempo. Ambrosina, percebendo a unânime mudança de coloração, começou a perder as estribeiras:

- Mas será que a devoção de vocês é apenas aparente e no fundo encobre um desejo de me irritar? Isso aqui mais parece uma plantação de rabanetes!?

E tornou-se levemente azulada. O frêmito de suas enormes narinas traía a dispnéia que lhe invadira a alma. A massa - sem querer, naturalmente - começou a soluçar baixinho e a fungar de forma ritimada. Percebendo que prosseguir com sua catequese seria pura perda de tempo, Ambrosina colocou as mãos nas cadeiras, fixou minha árvore com expressão sarcástica e com o deboche típico de uma atriz de teatro de revista proferiu suas últimas palavras terrenas:

- Puta que os pariu!!! - e mergulhou no sepulcro, que lacrou à sua passagem fazendo alarde de um vigor físico inimaginável.

Ao coletivo pasmo sucedeu um coletivo movimento de aproximação ao túmulo sagrado. Ato contínuo, como pareciam nada ter compreendido, todos se limitaram a reproduzir a única maneira que o ser humano encontrou até hoje de exteriorizar uma grande surpresa, que consiste em afastar o mais possível o maxilar inferior do superior e transformar a testa numa espécie de pergaminho. E assim, escancarados e franzidos, os órfãos desse esperpêntica matriarca procuravam uma resposta para a angústia comum que os afligia. Mas logo se puseram a vociferar, trocando acusações e imputando responsabilidades. Numa fração de segundos, os impropérios degeneraram em luta corporal. Nas adagas pontiagudas refletiu-se a agonia do sol. As escopetas vomitaram flores de chumbo. E quando o velho carrilhão da igreja cantou as cinco horas, eu fui a única pessoa alí a ouví-lo...

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