Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO II
Era quase meia-noite quando finalmente me impus a inadiável tarefa de descer de minha árvore. Por que permancera tanto tempo em cima dela? Até hoje não cheguei a uma conclusão satisfatória. Embora aquela imprevista e ensandecida batalha tenha me gerado o mais profundo horror, em nenhum momento entrei em estado de choque. Tanto é assim que, durante as horas subseqüentes, teci tantas conjecturas sobre o ocorrido que me seria impossível reproduzí-las. Mas por que me entreguei com tal volúpia a algo que sabia inútil, já que me deparava com um fato consumado? É possível que apenas tentasse adiar ao máximo a única atitude que me cabia tomar, que era a de abandonar aquele lugar escabroso, o que implicaria em renunciar à bizarra postura de galho seco que assumira - a menos, naturalmente, que minha integração ecológica chegasse a um ponto em que nada mais me restasse a não ser depositar no outono todas as minhas esperanças de descer dali...
Mas enfim, à meia-noite iniciei meu trajeto em direção ao solo. Devido ao meu estado emocional, o pequenino arbusto assumia ares de sequóia e tal qual uma jibóia míope eu deslizava febrilmente, sem jamais atingir meu objetivo, sendo que em vários momentos tive a sensação de estar subindo. Até que, exaurido e esfolado, me entreguei à gravidade, cuja enérgica sucção me deu a certeza de que meu encontro com o solo não seria dos mais agradáveis. Entretanto, e para minha alegria, o formidável baque foi em muito suavizado pela generosa obesidade de um senhor que consumara seu destino ao pé do meu refúgio.
Ao desembaraçar-me dele, fiquei por um momento contemplando o macabro espetáculo. A lua, equivocada quanto ao verdadeiro sentido daqueles corpos entrelaçados, retribuía o que talvez lhe parecesse uma homenagem transformando em marfim suas partes descobertas. Era ao mesmo tempo bela e assustadora aquela visão, que descreveria em páginas imortais se a natureza não tivesse sido tão madrasta comigo no que concerne à vocação poética - em todo o caso, acalento a esperança de que o amigo leitor encare com benevolência a imagem do "equívoco lunar", que só se materializou após muitas horas do mais tenaz esforço.
Mas prossigamos. Sendo imperioso procurar auxílio na cidade, embora julgasse mínima a possibilidade de nela encontrar alguém, comecei a caminhar por entre os restos da chacina. Na realidade, fui passando por cima dos combatentes mortos, literalmente pisando-os, e os falecidos, quando premidos contra o solo, emitiam (não sei ao certo por qual orifício) o curioso som de alguém que soprasse uma vela. E foi assim, constrangido e de certa forma vaiado, que ao cabo de uma hora consegui transpor a interminável barricada e me dirigir às apalpadelas para a cidade.
A ela cheguei mais rápido do que supunha e por um tempo que não consigo precisar, vaguei pelas ruas à espera de um milagre - como teria sido bom vislumbrar uma luzinha ou esbarrar com alguém que, por qualquer razão, não tivesse comparecido ao funeral de Ambrosina!? Isso me permitiria usufruir algum tipo de conforto, pois certamente essa pessoa escutaria de bom grado as impressionantes revelações que lhe faria. E juntos traçaríamos um plano, pois era imperioso tomar algumas atitudes tão logo o sol raiasse. Infelizmente, tudo que consegui em minha inútil peregrinação foi perder completamente a voz, já que a intervalos regulares clamava por um auxílio que não poderia mesmo vir.
Finalmente, renunciei ao impossível e me estirei no primeiro banco que encontrei, adormecendo no mesmo instante. E é claro que pesadelos me assaltaram, o que não deixa de ser compreensível, dado o meu estado de excitamento e assombro. Mas um deles merece ser contado, já que o interpretei como um sinal irrefutável de que minha chegada àquela cidadezinha - onde, como já foi dito, só deveria permanecer por algumas horas - não fôra mera obra do acaso. Vamos a ele, portanto.
Eu estou dormindo no mesmo banco e de repente acordo com a sensação de que um perigo iminente ronda o meu descanso. Sento-me no leito improvisado, olho à minha volta, mas tudo continua deserto. Uma estranha inquietação, no entanto, me impede de voltar a dormir. E a certeza de que estou absolutamente só, ao invés de me tranquilizar, vai aos poucos me gerando a impressão de que a qualquer momento uma catástrofe se abaterá sobre mim. Tentanto superar o injustificado medo, entrego-me a um desenfreado exercício de lógica, cujo único fruto é me gerar um pânico indescritível. Finalmente, ao perceber que meus sovacos pingam de forma torrencial - fato que só acontece quando estou prestes a perder o controle sobre mim mesmo - torno a me deitar e, resignado como um condenado à morte, passo a aguardar a chegada do verdugo. Meu foco então passa a ser a modalidade de suplício a que serei submetido. Ao repassar os mais conhecidos, opto pela forca, desde que erguida em praça pública e com direito a um breve discurso de despedida, cujo conteúdo, sem dúvida lamentável, em todo caso me faria encontrar a morte do mesmo jeito que saboreara a vida. Ou seja, falando pelos cotovelos...
Julgando haver conseguido apaziguar o terror que me invadira, preparo-me novamente para adormecer. É então que um longínqüo rumor de marcha se faz ouvir, arrancando-me dessa ilusória tranquilidade e me remetendo sem transição ao sentimento de inquietação inicial - com a agravante de que agora meus hipotéticos receios se materializam de forma inexorável. Aguçando os ouvidos, concluo que uma multidão se dirige para onde eu estou, impregnada de sentimentos inamistosos - não sei por quê, mas tenho certeza de ser o alvo da irada passeata. Logo o chão começa a tremer e uma claridade crescente vai convertendo em bronze as casas vizinhas. Naturalmente que penso em me evadir, mas antes que pensamento se converta em ação, vejo-me rodeado por uma sinistra turba: todos portam archotes, exibem adagas e escopetas e têm os corpos tatuados de chumbo. Eu os reconheço imediatamente, é claro: são os mesmos sobre os quais caminhei no cemitério! Mas por que me olham com tamanha animosidade? Não havia sido eu o responsável pelo desvario que deles se apossou e se trafeguei sobre seus cadáveres é porque não me restava outra alternativa!? Assim, imaginei - oh, doce ilusão! - que se lhes desse a conhecer as razões que me levaram a agir daquela forma, eles poderiam renunciar à premente e injusta vingança que tramavam!?
No entanto, mal iniciei hesitantes e mal articuladas palavras, tive que me calar em face da imprevista archotada que recebo - em plena ponta do nariz, que chega a chamuscar - de um sujeito com uma adaga cravada na testa. Vergonhosamente fraco no que diz respeito à dor física, grito de forma escandalosa e se a memória não me trai, chego mesmo a invocar o nome de minha mãe. Mas o sujeitinho travestido de rinoceronte, impaciente para dar início ao massacre, brande novamente seu archote, com a nítida intenção de me cegar. Entretanto, como imprime ao gesto excessiva violência e dele consigo me esquivar, seu archote lhe escapa e aterrissa na cabeça de um velho postado à minha retaguarda, que após soltar um urro medonho, começa a pegar fogo. Inexplicavelmente, ao invés de socorrerem o zumbi que arde, seus vizinhos varejam seus dardos incandescentes na direção do meu algoz e de pronto toda a multidão baila ao sabor da própria combustão! Trepado em meu banco, como antes naquela árvore, assisto estupefato àquele festival de corpos que se esbarram, ardem e rapidamente encolhem. Como da outra vez, em poucos minutos o silêncio se abate sobre o desvairado campo de batalha. E novamente eu sou o único que sobra...
Embora atônito, me preparo para iniciar uma longa reflexão, mas a ela renuncio ao perceber uma estranha luz que se aproxima. Com a vista ofuscada pela fumegante atmosfera que me rodeia, demoro alguns segundos para decifrar o mistério do espectral facho luminístico. Mas ao fazê-lo, o assombro toma conta de mim, pois ele não provém de nenhum artefato mecânico e sim do corpo de Ambrosina Sarmento, que, impávida, caminha majestosa sobre as cinzas!
Ela está vestida da mesma maneira, mas descalça, sem o coque e algo desgrenhada, o que me fez supor que seu ansiado encontro com o Senhor não tenha ocorrido exatamente como previra. Os cabelos lhe atingem a batata da perna e modulam seu corpo como uma mortalha de neve. Sob o impacto de suas vigorosas passadas, o fogo remanescente se extingue. E isso me causa uma tal impressão que, sem o perceber, vou me prostrando de joelhos, como se de mim se aproximasse uma aparição milagrosa que me faria revelações. Ao chegar a uns cinco passos de onde estou, ela se imobiliza e radiografa minha alma, adivinhando todas as emoções que me agitam. Mesmo assim, fiel ao hábito que trago do berço de sempre acrescentar algo quando tudo já foi dito e compreendido, inicio um dispensável adendo, mas só consigo articular um pronome pessoal e um verbo, pois o objeto direto o esgar sardônico de Ambrosina tem o poder de esfacelar. Coagido ao silênciio, imagino que chegou a minha hora...
Subitamente, Ambrosina começa a arquear um pouco as pernas, entreabrindo-as de tal forma que não tenho a menor dúvida de que vai liberar uma pavorosa ventosidade. Na esperança de ao menos adiar a morte inevitável, que jamais poderia supor que se desse de forma tão bizarra, contraio os lábios e viro o mais que posso o rosto para a esquerda. É então que Ambrosina Sarmento pronuncia suas primeiras palavras:
- Fique tranquilo, meu jovem. Eu não pretendo peidar.
É sabido que diante desse verbo de alívio a humanidade se divide: metade acha graça e a outra também - só que finge o contrário. Como pertenço ao primeiro grupo, seria natural que sorrisse. Entretanto, ao ouvir o dito verbo escapar da boca de uma enigmática senhora recentemente falecida, reajo como se o escutasse pela primeira vez - ao invés de apenas rir discretamente, disparo uma gargalhada frenética, que me sacode o corpo como se estivesse com malária. E embora consciente de que esse inesperado ataque pode apressar meu epílogo, por mais que tente refreá-lo ele cada vez mais assume dimensões paroxísticas. De repente, quando já se instalara em mim a certeza de não haver a menor perspectiva - ao menos imediata - de pôr fim à rumba gargalhante que me acossa, eis que recebo no teto da cabeça um golpe tremendo, que me atira como um bólido de encontro ao ainda fumegante asfalto!
Coberto de piche e de lágrimas, ergo os olhos na esperança de, inicialmente, identificar a origem de tão formidável porretada, para em seguida empreender uma reação à altura. Mas a visão da bengala de Ambrosina, ainda suspensa sobre minha cabeça, aborta todos os meus planos. Com que então...fôra ela a autora da inominável agressão!? Mas por que teria agido de forma tão intempestiva e até mesmo covarde, já que eu estava distraído e não poderia ter esboçado nenhum gesto de defesa? Era essa, afinal, a mulher por quem toda uma cidade se matara? Capaz de punir com tamanha virulência uma atitude que, no máximo, poderia ser definida como levemente deselegante?
Tomado de súbito furor, ignoro o rubro bastonete, retorno de um salto ao banco de onde a esquálida criatura me desalojou e, como se dela não tivesse medo algum, vocifero o que se segue, com postura e inflexão dignas dos maiores canastrões:
- Que as chamas do inferno te consumam, anciã desalmada! E que o esquecimento das gerações futuras seja o saldo de tua crueldade!
Provavelmente habituada a mesuras, a furibunda matriarca recua dois passos e, bengala novamente erguida, retruca:
- Essa grosseria sela o teu destino, frango assanhado!
E sem me dar tempo sequer de me ofender com a redução de minha pessoa a tal categoria, ela rodopia a bengala, com a óbvia pretensão de me causar irremediável dano. Mas eu me abaixo e graças a esse providencial reflexo não tenho a orelha esquerda decepada. Implacável, ela começa a se aproximar lentamente, fazendo malabarismos com a maldita bengala, como se possuísse sólida formação circense.
- O modo como galgaste aquele arbusto e a atenção com que escutaste minha despedida, deram-me a esperança de que, falhando meus concidadãos, tu empunharias com ardor a bandeira de me divulgar!
Magnetizado tanto com a oratória na segunda pessoa, que conferia à cena uma atmosfera clássica, como com o ininterrupto rodopio do bastão, permaneço completamente imóvel, enquanto ela se aproxima.
- Mas agora percebo, com infinita tristeza, a extensão de meu equívoco. A torpeza de teu coração macularia meu testamento literário, pois quem não respeita uma senhora morta e angustiada não haverá de respeitar o que dela restou autografado!
Nesse ponto ela estaqueia, até porque se desse mais um passo romperia as canelas contra o banco. Mesmo assim, sua altura continua superior à minha, o que me obriga a olhá-la de baixo para cima. E tão próximos estamos que uma súbita lufada de vento faz com que seus cabelos me envolvam por completo, dando-me a impressão de que neva. Como sempre nutri patológica aversão ao frio, projeto-me para frente e faço de Ambrosina o meu iglu. Uma vez no côncavo e já saturado de tantos gritos, luzes e ameaças, vejo-me subitamente tomado de inebriante sensação de paz, como se ali, tal qual um bebê gigante, eu pudesse estar a salvo de todas as agruras. Fragilizado ao extremo, mergulho fundo em minha fantasia uterina e regrido descaradamente, chegando inclusive a colar o rosto num dos seios da implacável matriarca. Ela, certamente equivocada quanto ao real sentido desse gesto - mas sem parecer ofendida -, tão logo se extinguiu o vigoroso frêmito que lhe sacudiu a enorme ossatura, murmura, com doçura:
- Meu filho: certas coisas, na minha idade, já não fazem mais sentido...
Em seguida, depois de pressionar-me as costas com suas gigantescas mãos, fazendo com que tecido e carne me invadam a boca, ela me afasta delicadamente, interrompendo o inesperado contato, que, pelo visto, interpretamos de maneira oposta. E quando nossos olhos tornaram a se encontrar, todo o terror e animosidade anteriores já se haviam dissipado - o equívoco nos gerara um sentimento recíproco de bem-estar e confiança. E pela primeira vez consigo viver uma emoção sem que minha compulsiva oratória dê o ar de sua graça. Limito-me, embevecido, a captar as mensagens que aqueles olhos negros, inesperadamente remoçados, me enviam. E são tantas e tão surpreendentes que só a consciência - que não nos abandona nem nos sonhos - de que estou diante de uma morta setenta anos mais velha do que eu, me impede de me atirar aos pés de Ambrosina Sarmento e confessar-lhe todo o meu amor! Sim, era inegável o poder de sedução dessa dama atemporal e esperpêntica. Reunindo todos os poderes e todos os mistérios, podia oferecer toda a esperança e toda a fantasia àquele que elegesse como sua metade - ou terço, que seja. "Tê-la por apenas vinte e quatro horas e depois marchar para um mosteiro!" - esse deve ter sido o pensamento de uma legião de homens conscientes de que, se realizado este desejo, nada mais lhes retaria a fazer neste insosso e previsível mundo. E quanto mais eu deliro, mais ela sorri, pois tudo adivinha. Quando, porém, minha veneração se converte em espessa baba, que minha boca libera em direção ao queixo, Ambrosina, tocando com suavidade meus cabelos revostos, me diz:
- Eu te agradeço, meu jovem. E fique certo de que do teu amor depende a perpetuação de minha pessoa.
Comovido ao extremo, tomo a mão que me acaricia e a conduzo aos lábios, numa pretensão de beijo que meu ardor converte em mordida. Ela contrai levemente a mão, mas não a retira de imediato, demonstrando valorizar muito mais a intenção do que o efeito produzido. Finalmente, ela interrompe o martírio que imponho à sua carne e me diz:
- Agora preste bastante atenção. Minha cidade não existe mais. Exceção feita à hedionda Ecúria e às freiras do convento, todos estão mortos. Portanto, você não poderá recorrer a ninguém. Terá que agir sozinho. Sua missão será árdua e consiste no seguinte: quero que você vá até minha casa e arrombe um velho baú que está encostado na janela do meu quarto de dormir, no segundo andar. Uma vez de posse de todos os meus diários, reescreva a história de minha vida, os combates de minha saga heróica. Mas não mais em fascículos, cujo objetivo pedagógico a destruição desta cidade tornou nulo, e sim condensado num único volume!
Seu pedido, na verdade, equivale a uma sentença. Amedrontado ante a enorme responsabilidade que uma tal tarefa impõe e já antevendo o inevitável fracasso, tento argumentar afirmando que não conseguirei, que o que ela me pede só pode ser materializado por alguém que mantenha uma relação minimamente amistosa com a Arte, o que não é o meu caso!? Mas ela me dá as costas e parte apressada, iluminando tudo à sua passagem. E sem ao menos despedir-se...
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quarta-feira, 11 de agosto de 2010
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