Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO V
O quarto que me fôra destinado - na verdade, uma suíte - era amplo e bastante simples. Todo o mobiliário se resumia a uma cadeira de mogno e uma cama um tanto ambígüa, não sei se de solteiro grande ou de casal miúdo. Ao fundo, uma janela permitia esplêndida visão dos campos adjacentes ao convento. Quanto ao banheiro, nada de especial a declarar, a não ser que carecia de bidê. Aliás, foi para o banheiro que me dirigi assim que fiquei sozinho, pois sentia em minhas entranhas o reboliço típico que antecede o desaguar de tempestuosa caganeira. E de fato, tão logo me sentei no vaso ocorreu-me a pior delas, que denomino de "em leque", porque mesmo estando assentados na privada acabamos defecando fora dela. Tal fenômeno possui, como principais características, as seguintes:
1) A pessoa explode, como um vulcão ao contrário;
2) Seu cu solta peidos de transatlântico;
3) O desafortunado (a) começa a quicar e se não se agarrar às bordas da latrina, corre o risco de sair voando pelos ares.
Quando por fim cessaram as convulsões intestinais, o banheiro estava em estado lamentável. Gotículas de todas as tonalidades de marrom salpicavam o assoalho e até mesmo parte das paredes mais próximas. Só havendo no banheiro uma toalha, que utilizaria para me enxugar após o banho, não tive dúvidas: traje de monge em punho, pus-me a fazer a assepsia do ambiente, certo de que, se lavada e pendurada em seguida, de manhã minha fantasia estaria seca. Sendo ela marrom, disfarçaria as manchinhas mais renitentes e ninguém ficaria sabendo acerca do ocorrido.
Ao acabar a degradante faxina estava tão cansado que nem sei como tive forças para lavar o hábito, que coloquei para secar utilizando como varal o prego que sustinha um crucifixo - este foi posto na pia, entre as duas torneiras, que simbolicamente passaram a representar os dois ladrões. Depois, cambaleando, entrei numa banheira tão grande que mais parecia uma piscina de motel obsoleto, deixando primeiro a água escoar, à medida que me limpava, só mais tarde permitindo que se enchesse. Uma hora depois, metí-me na cama, dormindo imediatamente.
No dia seguinte, fui acordado antes das sete. Três batidas secas na porta vieram interromper um sonho magnífico que estava tendo. Mas não protestei e apenas pedi que aguardassem um minutinho. Indo então até o banheiro, quase desmaiei ao constatar que meu traje de monge havia sumido! Aturdido, voltei ao quarto e só aí reparei que minhas roupas haviam sido colocadas na cadeira, impecavelmente limpas e passadas, inclusive a cueca e as meias. Quanto aos meus sapatos, reluziam como se novos fossem.
Ao renovaram-se as batidas na porta, agora já mais secas, pedi um novo minutinho e me vesti às pressas, constatando alegremente que todos os meus pertences me haviam sido devolvidos: os documentos, o bloquinho de anotações, uns trocados, enfim, tudo o que por direito me pertencia. Quando, por fim, me encaminhei para a porta - que nesse instante recebia três coléricas porradas -, sentía-me tão bem disposto que cheguei a assoviar. Ao abrir a porta, entretanto, levei um susto tremendo: uma irmã altíssima, de cerca de dois metros, matinha os braços erguidos e os punhos cerrados, pronta, ao que me pareceu, para desferir-me potentes cacetadas.
Numa reação de puro reflexo, batí-lhe com a porta na cara e corri para a janela. Movido pelo mais absoluto pânico, como se o prédio estivesse em chamas, saltei-a certo de que me esborracharia de encontro ao chão. Mas a sorte, até aquele momento tão madrasta, desta vez parecia estar do meu lado, pois logo abaixo havia um telhado que não só amorteceu minha queda quanto me possibilitou, aos saltos, atingir um outro mais acima, sobre o qual comecei a correr como se fugisse da polícia - não me voltei nem mesmo ante os histéricos apelos da irmã gigante, que da janela do meu quarto se esgoelava tentando me convencer a parar com a alucinada correria.
Aos poucos, a essa voz solitária se agregaram muitas outras, mas nada me detinha. Até que resolvi arriscar uma olhadela para baixo: de todas as janelas que davam para o pátio central, freiras tresloucadas acenavam e emitiam apelos, que em meu desvario interpretei como sádicos estímulos para que do alto me jogasse. Indignado, retribuí-lhes a crueldade com gestos obscenos e reiniciei minha feérica disparada, a esta altura já começando a sofrer algumas vertigens.
De repente, todas as vozes se calaram e o convento assumiu ares de sepulcro. Assombrado, não resisti e tornei a olhar para o pátio. A visão do mesmo me deixou perplexo: lá estava irmã Geovana, sozinha, aparentando extrema calma. Ao perceber que a olhava, indagou:
- O que faz aí, senhor Aquino? Pretende acaso se matar?
Suas palavras tiveram sobre mim um duplo efeito. De imediato me ampararam, como se ao menos ela não me desejasse uma morte tão estúpida. Essa primeira impressão, no entanto, não me impediu - certamente devido ao meu estado emocional - de encarar sua pergunta como uma cilada, na medida em que, parando para respondê-la - ou me dispondo a iniciar um diálogo - acabaria sendo alcançado pelas possessas. Seu plano me pareceu para lá de óbvio. Afinal, onde haviam se metido todas as irmãs que pouco antes gritavam alucinadamente? Teriam se recolhido aos seus claustros? Estariam rezando na capela para que Deus me protegesse? É evidente que não: como comandos de elite, já deveriam estar deslizando pelos telhados para me surpreender pelas costas, enquanto eu, ingenuamente, dialogava com aquela que só estava ali com a missão de distrair minha atenção!
Louco de raiva (sobretudo porque já começara a amá-la) e contrariando todo o raciocínio acima exposto (que me levaria a prosseguir correndo, sem nada retrucar), vociferei:
- Poupe seu fôlego, minha cara! Não sou o imbecil que imagina! Ninguém me surpreenderá pelas costas!
Inteligência a salvo, realizei um estupendo giro de 180 graus sobre os calcanhares, com o qual esperava, apenas, manifestar meu desprezo e retomar a fuga. Mas agí com tal ímpeto que acabei perdendo o equilíbrio e me estatelei de costas, começando imediatamente a deslizar na direção do precipício. Aterrorizado, agitava os braços e as pernas como um gigantesco inseto, tentando me virar de barriga para baixo e assim sofrear o fatídico resvalo. Entretanto, tais espasmos só contribuíram para aumentar sua velovidade. Sentindo-me perdido, já que incapaz de inventar qualquer recurso salvador, parei de espernear, relaxei e pensei: "Senhor, que seja feita a Vossa vontade!".
Imediatamente, senti um violento golpe no cume da cabeça, o que me levou a duas conclusões: a vontade do Senhor era de uma dureza exemplar - já que esfacelara o crânio de encontro ao solo - e estava morto. O fato de continuar a pensar não me surpreendeu nem um pouco, desde o momento em que havia falecido numa cidade em que as pessoas baixavam à sepultura por conta própria e em meio a discursos e impropérios.
De repente, porém, quando já me preparava para iniciar pertinente delírio póstumo, escutei uma voz, que me disse:
- Mas, senhor Aquino: o que está esperando para finalmente descer daí?
Irmã Geovana - pensei - realmente possui poderes extraordinários: atravessa o tempo com a maior das naturalidades. Mas o que será que ainda espera de mim, já que não mais pertenço ao seu sofrido mundo?
- Não seja infantil...- ela insistiu. - A calha acabará cedendo!?
Calha...mas que calha? O que significaria isso? Será que o remorso lhe afetara as meninges e ela agora não conseguia mais dizer coisa com coisa?
- Tudo não passou de um mal-entendido, acredite em mim! - prosseguiu. - O senhor nos é da maior importância!
É curioso como a morte nos dá sempre uma dimensão da qual em vida carecemos - refleti, amargurado.
- Senhor Aquino, eu suplico...
Ainda impregnado da reflexão que acabara de fazer e certo de que novas súplicas me seriam endereçadas, permaneci em silêncio. Mas como irmã Geovana nada mais disse, após um tempo resolvi abrir os olhos, plenamente convicto de que o Senhor daria o devido desconto a essa extravagância. Em seguida, virei-me com surpreendente facilidade de barriga para baixo e...tive o insite!? Meu Deus do céu - pensei - se havia falecido de encontro ao solo, nele deveria estar!? E não no local de onde teria se originado minha queda!? Portanto, uma única conclusão se impunha: estava vivo!!!
Fiquei tão feliz com essa inesperada ressurreição que me esqueci completamente de onde estava e dos riscos reais que ainda corria. Erguendo-me impetuosamente sobre as telhas, exclamei, todo exaltação e esperança:
- Irmã querida, eu te amo!
Foi aí que o telhado, que até então havia suportado tão bem o meu desespero, não resistiu à minha felicidade e desabou. Só não me esborrachei de encontro ao chão porque, ao fazer minha declaração de amor, involuntariamente recuara dois passos. Graças a isso, minha queda terminou num velho sótão, cuja laje de concreto por pouco não me quebra todos os ossos.
Seja como for, e para minha suplementar felicidade, a operação resgate foi iniciada logo após meu triunfal desaparecimento. Ao perceber que algumas telhas estavam sendo removidas, enchí-me de esperança, pois cheguei a temer que resolvessem me esquecer para sempre naquele tenebroso sótão. Ao cabo de poucos instantes, um incansável par de mãos transformou o estreito orifício - era magérrimo na época - numa magnífica clarabóia, por onde se inflitrava, cheio de curiosidade, o astro-rei. Quando me preparava par saudá-lo, uma imensa cabeçorra se interpôs entre nós e fez-se a treva.
- Você ainda está vivo? - perguntou, cavernosa, a apavorante silhueta.
- Estou...- respondi, timidamente, como se no fundo não julgasse merecê-lo.
Fez-se então um breve silêncio. Subitamente, a sombra colossal me atirou com violência uma corda, por meio da qual fui içado até o telhado. Lá chegando, deparei-me com a gigantesca irmã da qual fugira aterrorizado. Após olhar-me por alguns segundos com amedrontadora animosidade, ela disse:
- Agora vamos descer, palhaço...
E dando-me as costas, iniciou o caminho de volta. É claro que a segui com a devoção que normalmente consagra ao seu guia um turista americano, imitando-a como se fosse seu duplo - isso, evidentemente, é força de expressão, pois na verdade eu era muito mais seu terço. Irmã Vôncia - assim se chamava aquela que antes socara a porta do meu quarto e agora me salvara - deslizava pelos telhados com tanta desenvoltura que não tive dúvidas de que, na outra encarnação, ela havia sido uma majestosa cabra alpina, cujo passatempo predileto, como todos sabemos, é mascar grama na beira dos mais terríveis abismos. Sim, outra não poderia ser a explicação para tão soberba segurança. E essa era a primeira vez, conforme mais tarde me disseram, que irmã Vôncia subia num telhado!?
Finalmente aterrissamos no pátio, incólumes e sob palmas apoteóticas de um grande número de irmãs que, das janelas e corredores, haviam acompanhado nosso regresso com a respiração suspensa. Irmã Vôncia, sabedora de que para ela eram dirigidos os aplausos, agradecia à moda dos lutadores de boxe e dava saltos de canguru. A emoção reinante se prolongou até o momento em que irmã Geovana, com um discreto sinal, deu a entender que já era suficiente. Então todas as irmãs se recolheram, à exceção de Vôncia, que embriagada com o próprio sucesso continuava com os agradecimentos, só os interrompendo quando irmã Geovana, delicadamente, lhe sussurrou qualquer coisa baixinho. Dando a impressão de não haver compreendido nada do que ouvira, fitou a superiosa com a expressão mais estúpida que já vira estampada num rosto humano. Em seguida, olhou em todas as direções, retorcendo-se como um animal flechado. Depois, virou-se para mim, com semblante feroz, como se fosse eu o responsável pelo desaparecimento das irmãs e conseqüentemente pelo final da festa que protagonizara. Mas felizmente ela não tomou a iniciativa de me esganar: aparentemente satisfeita com o efeito que seu esgar de ódio produzira, afastou-se como um Gulliver, esbarando em algumas árvores que, apavoradas, choraram folhas.
Irmã Geovana e eu ficamos a sós, cercados de flores e de pássaros. Nossa solidão, entretanto, era totalmente ilusória, já que ambos sabíamos que todas que ali viviam se ocupavam conosco, com o que diríamos, com as conseqüências de nossa conversa. Eu, ao contrário, estava muito mais interessado nas coisas que calaríamos, em tudo aquilo que nada tinha a ver com a objetividade dos fatos. E creio que irmã Geovana pensava como eu. Embora exteriormente parecesse a mesma, era visível que sua atitude carecia de espontaneidade. Pequenos detalhes me autorizavam a pensar dessa forma. Seus olhos, sempre tão serenos, demonstravam certa inquietude; seus lábios, entreabertos, pareciam querer pronunciar algumas palavras, mas indecisos se continham; suas mãos, que sempre vira entrelaçadas, estavam caídas rente ao corpo e no hábito se contraíam. Em resumo: ou eu estava delirando ou algo se passava com irmã Geovana. Comigo, então, nem se fala...
Tentando camuflar o próprio embaraço, ela sugeriu que caminhássemos. O primeiro benefício que passamos a usufruir deve-se ao fato de que um corpo em movimento se torna menos tenso. O segundo é que, andando lado a lado, evitávamos o olhar um do outro, que como disse o poeta, é "o espelho da alma". Assim, relaxados e sem espelho, caminhamos um bom tempo, até que ela se imobilizou e me disse:
- Senhor Aquino: embora não tenhamos nenhum motivo para duvidar de suas palavras, é nossa obrigação confirmá-las pessoalmente. Portanto, esta noite um grupo de irmãs irá até o cemitério na sua companhia. Na volta, o senhor será levado à minha presença e então decidiremos o que fazer. Até lá, peço que fique em seu quarto. Tenha um bom dia.
E então ela começou a se afastar. Não sei por quê, mas fantasiei de imediato que não a veria mais. E essa idéia me pareceu tão inconcebível que não hesitei em correr até ela:
- Essa história de que serei levado à sua presença é séria mesmo?
- Por que não haveria de ser?
- Não sei...é que me passou pela cabeça que..enfim, idiotice minha.
E como ela manifestasse novamente a intenção de retirar-se, emendei:
- Por falar nisso: a irmã me considera um imbecil?
Irmã Geovana apenas sorriu...
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sexta-feira, 20 de agosto de 2010
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