Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO IV
Ao atingir as colossais muralhas estava completamente esgotado. Os olhos me saltavam, como se sofresse da tireóide, e sentia todos os sintomas da dispnéia pré-agônica. Estendido no chão, o rosto colado na rala vegetação, contemplava esbugalhado as formigas que passavam e de vez em quando interrompiam a marcha para me olhar, umas com curiosidade, outras com indignação, pois sem dúvida eu atravancava seu caminho. Não foram poucas, inclusive, as que chegaram a me tocar. Nesses momentos, acreditei sinceramente que seria devorado - fraco como estava, não teria conseguido esboçar a menor reação. Mas felizmente suas intenções nada tinham de predatórias e ao cabo de meia-hora já não havia mais nenhuma delas à minha volta.
Encorajado por haver escapado de morte tão horrível e já parcialmente refeito da brutal caminhada, iniciei um giro em torno da mastodônica construção. Sua estrutura, a começar pelas muralhas, lembrava bem mais uma fortaleza medieval do que um convento - nos quatro ângulos do enorme retângulo havia torres de vigia e a porta principal era do tipo levadiça, só faltando mesmo o fosso de águas pútridas. Havia também uma outra entrada, num fundos, mas era tão pequena e estreita que por ela só poderia passar, com algum conforto, um anão magro. Todo o acesso ao interior, portanto, se limitava a essas duas entradas. Mas como em nenhuma delas existia qualquer tipo de campainha e uma tentativa de escalada estava fora de cogitação, comecei a gritar "Oh de casa!", "Oh de casa!", à medida que rodopiava em torno da medieval morada. Só interrompi o inútil e rotativo percurso quando as estrelas afugentaram o sol e as pedras viraram mármore. Aí, rouco de angústia, adormeci.
Ao acordar, levei o maior susto de minha vida. Estava deitado numa espécie de altar situado no centro de uma sala enorme, totalmente despido e rodeado por umas cinqüenta freiras. Sem ser propriamente burro, devo admitir que em dadas circunstâncias levo mais tempo do que a maioria dos mortais para compreender a realidade. Isto talvez explique o fato de ter permanecido boquiaberto e parvo, incapaz de tomar qualquer atitude, a não ser a de ter levantado, enquanto era minuciosa e indelicadamente observado pelo inóspito mulherio. A severidade com que me esquadrinhavam era proporcional à minha impotência, não tendo me ocorrido sequer tapar o sexo, reação que a qualquer um ocorreria. Limitei-me a ficar balançando as bolas, já que não parava quieto em meu púlpito. Aliás, tanto girei que acabei perdendo o equilíbrio e desabei no chão.
Pensando talvez que se tratasse de uma tentativa de fuga, um grupo de irmãs me cercou e com espantosa habilidade me reconduziu ao incômodo patamar. Esfolados na queda, meus joelhos sangravam abundantemente. Mas isso não pareceu comovê-las nem um pouco, muito pelo contrário: várias chegaram mesmo a esticar os lábios, numa demonstração inequívoca de crueldade. Foi então que tive certeza de que era protagonista de alguma cerimônia macabra e que seria sacrificado em nome de um deus qualquer. Aquelas mulheres - pensei - não poderiam ser freiras e de religiosas só possuíam os hábitos. E deveriam estar mancomunadas com Anacleto, que, aproveitando-se de minha proverbial ingenuidade, me atraíra para uma cilada mortal - ou ao menos a indicara. E eu, que escapara milagrosamente tanto da carnificina no cemitério quanto das formigas, estava condenado a passar ao outro mundo cortado em pedacinhos e transformado por aquelas loucas em seu frugal repasto!? - não sei, com toda a sinceridade, porque foi que achei que seria retalhado e devorado, mas em todo caso essa medonha fantasia me possibilitou iniciar um violento discurso:
- Que a cólera divina se abata sobre aquelas que, travestidas de servas do Senhor, se preparam para liquidar-me, simulando agir em Seu nome. Que a minha carne, uma vez saboreada, se converta na entranhas canibais no veneno mais terrível. Que a morte de toda essa assembléia, que ora me contempla com evidentes pretensões degustativas, seja lenta e dolorosa. E que os abutres, que Deus há de enviar como resposta a tão infame covardia, devorem até os ossos de vossos abomináveis cadáveres, para que nenhum vestígio permaneça de tão ignominiosas criaturas!
E teria prosseguido com minhas maldições delirantes por pelo menos mais meia-hora. Se não o fiz, foi apenas por ter percebido a presença de uma freira de uns quatrocentos anos de idade, totalmente curva, e que, apoiada em dois bastões que lhe sustinham a secular ossada, me olhava da entrada da sala com intenções sinistras. Jamais, amigo leitor, pousara os olhos em tão horrenda criatura, perto da qual a pavorosa Ecúria se transformava em ninfa de jardim. Além disso, sua carcaça troncha irradiava vibrações tão malignas que, mais do que nunca, tive certeza de que seria mesmo vítima de um ritual macabro.
Após um tempo que não consigo precisar, aquele pingüim reumático se pôs em movimento. Seu andar obedecia a um compasso quaternário: bastão direito, perna direita; bastão esquerdo, perna esquerda. Ritmo perfeito. Era a própria Semibreve. Tendo-lhe o tempo estropiado as pernas, ela demorou uma eternidade para chegar aonde eu estava, o que sem dúvida contribuiu para transformar o medo que eu sentia no mais absoluto pavor. Agora separados por não mais de um metro, contemplávamo-nos como adversários que se estudassem atentamente antes de arriscar um movimento que poderia ser o último. Algo extenuada, ela arfafa como uma heroína de cinema mudo, liberando um bafo fétido que faria inveja a um tigre. Extremamente sensível a odores nauseabundos, já estava prestes a vomitar quando a criatura, quem sabe por pressentir o que lhe aguardava se prolongasse sua imobilidade, soltou os dois bastonetes, cujo impacto contra o solo produziu intensa reverberação na sala. Em seguida, apoiou a mão esquerda na borda do gelado mármore e estendeu a direita na direção de meus órgãos genitais, que assustados, encolheram-se como se eu houvesse mergulhado em água fria.
Então, eu me senti perdido. Mas ainda assim resolvi vender caro minha vida. Dando um salto sobre a malévola criatura, apossei-me de seus dois bastões e como um bárbaro pus-me a rodopiá-los, ao mesmo tempo em que advertia aquelas que de mim tentavam se aproximar que muitas cabeças rolariam antes que me privassem de minha preciosa masculinidade - esta, por um desses mistérios inexplicáveis, abdicara de seu compreensível recolhimento e inflara de forma surpreendente, o que na prática equivalia a um terceiro bastonete; mais modesto, sem dúvida, que os outros dois, mas de qualquer forma capaz de intimidar.
Num dado momento, quando a exaustão já ameçava tornar inócuos meus rodopios e imprecações, todo aquele pandemônio cedeu lugar a um espectral silêncio. Minhas algozes e sua abjeta líder, como que petrificadas, assumiram ares de estátua. Abismado, procurei no espaço à minha volta algo que justificasse aquela interrupção e foi aí que notei que um grupo de seis irmãs
caminhava serenamente em minha direção, ignorando as demais e sem demonstrar a menor animosidade para comigo. E quando chegaram aonde eu estava, uma delas se destacou e disse:
- Venha conosco, por favor. Irmã Geovana deseja vê-lo.
Profundamente aliviado, atirei longe os bastões. Nada tinha a perder - ao menos, aparentemente - e por isso resolvi acompanhá-las, não sem antes lançar à inóspita freirada um olhar que poderia definir como de desdém altivo...
Percorremos infindáveis corredores pontilhados de claustros, chegando finalmente a uma pracinha onde não havia nada além das paredes que a delimitavam. Passados alguns segundos, e para meu total assombro, uma das paredes começou a girar lentamente, revelando a existência de uma passagem secreta através da qual o grupo me introduziu e que dava numa estranha sala cheia de arcos, iluminada por archotes. Nela já se encontrava irmã Geovana, sentada ao centro de uma mesa em forma de melancia, em frente à qual fôra colocado um banquinho de cozinha que me induziram a ocupar. Em seguida, as seis irmãs se acomodaram à mesa, sem pronunciar uma única palavra.
É claro que eu julguei que deveria partir delas a iniciativa de iniciar o diálogo, por isso mantive-me impassível, limitando-me a cruzar as pernas, a fim de manter um mínimo de privacidade. Entretanto, o tempo passava e a situação permanecia inalterada. E quanto mais se prolongava, mais inquieto eu me sentia. O que pretendiam, afinal, com aquele obstinado silêncio?Depauperar ainda mais o meu já esfrangalhado sistema nervoso? Submeter-me a uma nova modalidade de tortura? Teria sido para isso que me haviam "libertado" das tenazes de Semibreve e da fúria de suas asseclas?
Já transpirando abundantemente, preparava-me para iniciar um veemente protesto quando irmã Geovana se ergueu, com indescritível graça, apoiando delicadamente as mãos sobre a mesa, e a mim se dirigiu com voz de fada:
- Senhor Aquino: podemos compreender seu estado de espírito. Mas precisamos de sua ajuda. Sem ela jamais chegaremos a uma conclusão definitiva sobre os acontecimentos vividos pelo senhor em nossa casa.
Em seguida, sorriu e tornou a se sentar. Ah, amigo leitor...ninguém jamais pronunciara meu sobrenome com tanta doçura. Se o delicado gestual de irmã Geovana já me impressionara, o som de sua voz teve o poder de me seduzir completamente, a ponto de me fazer esquecer que estava diante de uma religiosa. Mas logo me refiz e depois de enxugar o suor que me escorria pela testa, respondi à pergunta que ela me fizera com o senso de objetividade que me caracteriza:
- Irmã, eu quero minhas calças.
Elas morderam os lábios.
- Sem elas eu não consigo pensar.
Elas taparam suas bocas.
- Ou me são devolvidas neste segundo ou então...me suicido imediatamente!
Elas explodiram em sonora gargalhada.
Mas eu não achei a menor graça. Não estava brincando e o riso frouxo daquelas irmãs me encheu de indignação. Como poderia expor minhas emoções com um mínimo de tranquilidade se a consciência do meu ridículo não me abandonava? Queria ser levado a sério, que diabo! E sem calças isso nao é possível!? Descontrolado, erguí-me em meu banquinho, disposto a mandá-las enfiar o próprio riso em lugar adequado. Foi então que reparei que irmã Geovana, ao contrário das outras, não apenas não gargalhava como me fitava com a mesma expressão serena e cativante que exibira ao me pedir que aclarasse os fatos que vivenciara. Sua doçura, é imperioso confessar, arrefeceu por completo minha indignação. E me deu segurança. E então eu me senti em paz. Irmã Geovana, decididamente, não era deste mundo...
A um gesto seu, todas silenciaram, sem contudo demonstrar a menor contrariedade. Irmã Geovana, como vim a testemunhar com o passar do tempo, exercia aquele raro tipo de liderança que não provoca ressentimentos, que existe como conseqüência natural de um caráter superior, diante do qual o ceder passa a ser prova de inteligência e bom senso.
- Espero que não se ofenda - principiou a extraterrestre - pois não tivemos a intenção de magoá-lo. Quanto às suas roupas, elas lhe serão devolvidas tão logo estejam secas e passadas. Se o senhor quiser, podemos lhe emprestar um traje monástico. Talvez o senhor se sinta mais à vontade.
- Eu lhe agradeço. A senhora há de convir que minha situação é terrivelmente constrangedora...- retruquei, hipnotizado.
Uma das irmãs foi então ate o fundo da sala e voltou trazendo um impecável hábito de monge, estilo beneditino, com capuz e cordinha. Assim que o vesti, sentí-me um outro homem, bem mais seguro e logo assumi ares de quem iria proferir uma conferência. No entanto, minha impressão era de que, para elas, o fato de eu passar a estar vestido não fazia a menor diferença. Continuavam a me olhar do mesmo jeito, como se nu ainda estivesse. Só meu rosto lhes interessava, o resto era mera paisagem. Essa total indiferença me incomodou bastante, pois se nada tenho de Apolo, tampouco o tenho de Quasímodo. Em todo o caso, nada deixei transparecer, pois a situação comportava tudo, menos ofensas desse tipo. Instado novamente a me pronunciar, fui direto, como de hábito, ao âmago da questão:
- Gostaria, se possível, de saber de que maneira meu sobrenome chegou ao vosso conhecimento...- esse "vosso" eu empreguei não para parecer refinado, mas apenas porque o traje de monge me impregnara de uma certa solenidade.
- O senhor, como todo homem normal, trazia consigo documentos...- respondeu uma irmã de imensos olhos azuis, cuja voz traía sua pouca idade e relativa impaciência.
- Com que então reviraram meus pertences?
- Deveríamos tê-los colocado no tanque, junto com sua roupas?
- Deveriam tê-los guardado, pura e simplesmente.
- Incomoda-o tanto o fato de conhecemos sua identidade?
- Por que haveria de me incomodar? Eu nada tenho a esconder!?
- Não parece...
- O que quer dizer com isso?
Nesse momento, eu me levantei e minhas saias deram uma rodadinha. Esperava, com essa mudança de postura, intimidar a impertinente noviça. Ela, entretanto, também se levantou e arqueando curiosamente a sobrancelha esquerda retrucou, num tom de voz parente próximo do grito:
- Quero dizer que sua desconfiança quanto às nossas intenções, pelo simples fato de ter-mos visto seus documentos, é no mínimo uma afronta. Nós sim é que teríamos todos os motivos para desconfiar do senhor, que rondou durante horas nossa casa indiferente ao silêncio com que respondíamos aos seus apelos. E que, ainda por cima, se permitiu dormir bem em frente à nossa porta!
Inflamado, avancei dois passos, na esperança de que ela recuasse outro tanto. Mas tal não aconteceu.
- Eu desmaiei, fique sabendo. E se indiferença houve foi de vossa parte. Procurei esta casa movido pelas melhores intenções!
- Todos os homens que, através dos séculos, procuraram se aproximar desta casa, alegaram invariavelmente possuir as melhores intenções...
É evidente que tal frase estava impregnada de uma enorme carga de ódio com relação aos homens que, segundo deduzi, deviam ter empreendido, ao longo do tempo, incursões nada louváveis contra o santo convento. Mas não era esse o meu caso. Assim, e já cansado do meu inócuo bate-boca com a noviça, deixei-a de lado e me dirigi diretamente à irmã Geovana, que durante o entrevero mantivera-se, como não poderia deixar de ser, absolutamente serena.
- Senhora: sempre acreditei que o ódio, assim como o medo, são sentimentos altamente contagiáveis. Portanto, antes que a cólera desta intempestiva noviça contagie as demais e quem sabe até mesmo a senhora, peço que me seja dada a oportunidade de ao menos tentar dirimir todas as possíveis dúvidas.
E sem esperar pela autorização, que acreditei que viria de qualquer forma, prossegui:
- Em primeiro lugar, nada tenho a ver com os tártaros que no passado pretenderam escalar vossos muros e conspurcar vossa virtude. Se aqui estou é porque só aqui poderia estar. Depois, todas são testemunhas de que não procurei me infiltrar em vossa casa de forma sorrateira. Meu desmaio aconteceu em decorrência de puro esgotamento, não foi a resultante de um torpe ardil. Espero, sinceramente, merecer vosso crédito e se possível o de vossas companheiras, inclusive o desta jovem - e aí eu apontei a noviça - que investiu contra mim com quatro pedras na mão, como se eu fosse a adúltera da Bíblia!
Isto dizendo, e confiando na eficácia de meu breve discurso, tornei a me sentar. E me permiti, inclusive, permanecer por um momento de olhos semi-cerrados, com se tivesse mergulhado em profundíssimas reflexões. Mas logo os reabri, assim que escutei a voz que me magnetizava:
- Irmã Vantini deve ter tido suas razões para agir com tanta severidade. Mas não me cabe julgá-la. Gostaria, isto sim, de lhe pedir desculpas pela forma como as outras o trataram e conhecer os motivos que o levaram a nos procurar.
Só aí me dei conta de que já deveria, há muito tempo, ter relatado os tenebrosos acontecimentos que presenciara no cemitério. Então, sem mais delongas, fiz um rápido inventário não apenas da carnificina, mas de tudo que me acontecera desde que chegara naquela cidade - sem deixar de mencionar o sonho que tivera com Ambrosina e a tarefa que ela me impusera. No entanto, ao concluí-lo, tive a nítida impressão de que ninguém me levara a sério. Apenas irmã Geovana parecia empenhada em tentar conferir algum sentido ao que acabara de escutar. Inconformado, aproximei-me da mesa disposto a repetir toda a minha história, por acreditar que a mesma ganharia maior consistência se relatada a uma distância menor - mesmo proceditento a que recorrem advogados e promotores nos tribunais quando pretendem influenciar o corpo de jurados. Mas irmã Geovana levantou-se abruptamente e me convidou a companhá-la. Abandonando então a sala por uma outra passagem secreta, nos embrenhamos por um sem número de corredores estreitos e mal iluminados, que lembravam uma catacumba, até pararmos diante de uma porta, que me impressionou sobretudo por sua solidez. Então, irmã Geovana se virou para mim e dessa forma despediu-se:
- O senhor dormirá aqui. De manhã mandarei chamá-lo. Desejo-lhe uma boa noite.
E após realizar um expressivo movimento de cabeça, desapareceu. Aquela noite, realmente, parecia não ter fim...
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terça-feira, 17 de agosto de 2010
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