quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“A alma imoral”

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O poder vital da transgressão

 

Lionel Fischer

 

Como já disse várias vezes, podemos carecer de tudo, menos de ótimos intérpretes. Mas alguns ainda conseguem exibir um diferencial, que se deve às escolhas que fazem. Neste caso, o artista não está apenas buscando explorar ao máximo seu potencial expressivo e sua criatividade, mas também materializar idéias e sentimentos que julga imprescindíveis partilhar com o público. E é neste seleto grupo que se insere Clarice Niskier.

A presente montagem evidencia que a atriz pretende nos levar a refletir sobre o caótico mundo em que vivemos. E tal reflexão parte de algo que normalmente procuramos negar, ou simplesmente desconhecemos: o poder vital da transgressão, explicitado de forma exemplar no livro “A alma imoral”, do rabino Nilton Bonder, mesmo título do espetáculo em cartaz no Espaço Sesc. Além de atuar, Clarice Niskier assina a adaptação e concepção cênica, sendo que esta última contou com a supervisão de Amir Haddad, um mestre na arte de transgredir.

Como são muitas e extraordinárias as idéias de Bonder, torna-se literalmente impossível esmiuçá-las aqui. De qualquer forma, o que o autor propõe fundamentalmente é uma nova forma de olhar, no sentido mais abrangente do verbo. E este olhar pressupõe o entendimento de que toda moeda tem o seu reverso, que os opostos são absolutamente necessários, que a obsessão pela fidelidade às tradições inviabiliza a possibilidade de novos caminhos. É como se Bonder nos indagasse: “O que você prefere? Manter-se confinado a fronteiras que o senso comum aplaude ou arriscar-se numa espécie de deserto, onde você pode até mesmo eventualmente se perder, mas certamente conseguirá traçar uma pista?”

Clarice Niskier nos oferece a possibilidade de pensarmos nesta alternativa: criar novas trilhas para o nosso caminhar. Através de uma dinâmica cênica absolutamente despojada, a atriz se desnuda por completo, no sentido literal e metafórico, certamente nos estimulando a fazer o mesmo. E é tamanha a sua paixão pelas idéias e sentimentos propostos por Bonder que a platéia se envolve por completo com este espetáculo absolutamente fundamental, em especial numa época como a nossa, que julga prioritário multiplicar os peixes ao invés de aprender a repartir o pão.

Clarice reparte com a platéia o que de melhor possui e por isso saímos tão enriquecidos desta inesquecível ceia, cujo êxito também se deve às imprescindíveis colaborações de Amir Haddad, Luís Martins (cenário), Kika Lopes (figurino), Aurélio de Simoni (luz), José Maria Braga (música), Márcia Feijó (direção de movimento), Mary Lima (preparação corporal) e Célio Rentroya (preparação vocal).

A ALMA IMORAL – Texto de Nilton Bonder. Adaptação, concepção e atuação de Clarice Niskier. Supervisão de Amir Haddad. Espaço Sesc.

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