quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Segundas histórias”

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Poesia de Tonheta volta à cena

 

Lionel Fischer

 

Para os que imaginaram que só poderiam rever o saltimbanco Tonheta numa remontagem de “Brincante”, Antônio Nóbrega reservou uma surpresa: o personagem está de volta em uma montagem ainda mais encantadora do que a anterior. Com texto do mesmo autor, Bráulio Tavares, e direção do próprio Nóbrega, que divide novamente a cena com Rosane Almeida, “Segundas histórias” converte o Teatro II do CCBB num espaço impregnado de humor, lirismo e poesia.

“Segundas histórias” é a continuação da narrativa das proezas de um personagem que sintetiza a magia dos verdadeiros cômicos populares, ou seja, profissionais que exibem sua arte nas esquinas e praças, nos circos e tablados, tendo como referência componentes da realidade imediata mesclada a mais delirante fantasia. No presente caso, as aventuras de Tonheta são contadas por um casal de artistas ambulantes, João Sidurino (Nóbrega) e sua parceira Rosalina de Jesus (Rosane), utilizando recursos de dança, música, mímica, canto, circo e jogo de máscaras.

Na primeira parte do espetáculo, sempre apresentado por Rosalina com aquele absurdo sotaque espanholado que, por razões um tanto misteriosas, caracteriza os mestres de cerimônia dos circos nacionais, vemos Tonheta envolvido em uma série de situações que servem de trampolim para a anunciada saga: o personagem recebera a promessa de Deus de que, se conseguisse vencer os desafios propostos, poderia rever a amada morta.

“Segundas histórias”, escrita alternadamente em prosa e verso com extrema competência, não importa tanto enquanto enredo, pois o que de fato assume relevância é a forma como são construídas as cenas e resolvidas as questões interpretativas. Nóbrega e Rosane, sobretudo o primeiro, são excepcionalmente dotados de técnica e sensibilidade, o que lhes permite extrair poesia, lirismo e humor de fatos banais, como o rodopiar de peões.

Além disso, conseguem conduzir o espectador a um contexto que nada tem com sua idade ou realidade imediata, já que povoado de mistérios e encantos que normalmente só as crianças compreendem. Aliás, o sorriso constante, o fascínio expresso em todos os rostos mostra que a platéia embarca sem defesa numa jornada que resgata o que talvez o homem possua de mais precioso: sua faculdade de sonhar.

A direção de Antônio Nóbrega é de uma simplicidade enganosa. Por trás de tanta singeleza, existe uma estética rigorosa, precisa, que valoriza a expressividade dos movimentos, a inflexão das vozes, a diversidade dos ritmos, o vigor dos contrastes. E a poesia, naturalmente, visível em todos os momentos. Como na estrela que brilha solitária, sugerindo que há sempre um caminho capaz de transcender o breu de todas as noites.

Mas a beleza do texto, criatividade da direção e excelência interpretativa não poderiam ser devidamente apreciadas na ausência de uma equipe técnica de qualidade. Felizmente, a de “Segundas histórias” é de primeiríssima linha. A figurinista Luciana Buarque criou trajes multicoloridos, plenos de fantasia e lirismo, inteiramente em consonância com o universo em que transitam os personagens. O mesmo pode ser dito do trabalho cenográfico da Companhia Brincante, feito essencialmente de trapos e retalhos, como se sonhos novos e antigos estivessem ali costurados.

Igualmente fascinantes são os bonecos e figuras criados por Mestre Saúba, assim como a sensível iluminação de Marisa Bentivegna em parceria com o grupo. A trilha sonora de Antônio Nóbrega, em parte executada por ele próprio em vários instrumentos (violão, violino, percussão), reforça a certeza de que “Segundas histórias” é um dos mais brilhantes espetáculos em cartaz na cidade e que merece ser prestigiado de forma incondicional pela platéia carioca.

SEGUNDAS HISTÓRIAS – Criação e direção de Antônio Nóbrega. Diálogos de Bráulio Tavares. Com Antônio Nóbrega e Rosane Almeida. Teatro II do CCBB.

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