Teatro/CRÍTICA
“A casa dos Budas ditosos”
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Sexo,
poesia e humanidade
Lionel
Fischer
Pouco antes do início do espetáculo, a platéia
escuta uma gravação. A voz é do autor, João Ubaldo Ribeiro, que informa que o
texto teria sua origem em uma coleção de 30 fitas gravadas, deixadas em sua
portaria por uma senhora já entrada em anos, que não quis se identificar. De
posse do volumoso material – que narra com incrível riqueza de detalhes as
incontáveis e diversificadas aventuras sexuais da suposta autora – João Ubaldo
o converteu no livro “A casa dos budas ditosos”, grande sucesso de público e de
crítica.
Mas é óbvio que tudo se resume a uma deliciosa
piada, já que a libertina em questão é um ser imaginário: só passou a existir
graças ao imenso talento do escritor, que teve o presente livro adaptado para o
teatro por Domingos Oliveira. Após cumprir brilhante temporada em São Paulo –
Fernanda Torres recebeu o Prêmio Shell de Melhor Atriz de 2003 – o espetáculo
dirigido por Domingos está em cartaz no Centro Cultural Correios.
Lançado com estardalhaço, “A casa dos budas ditosos”
promoveu uma verdadeira correria às livrarias, em especial dos libidinosos de
plantão, que acreditaram que o livro se limitaria a detalhar as incontáveis
escaramuças sexuais de uma libertina baiana de 68 anos. Mas é claro que ele transcende
em muito as aparentes premissas que lhe deram origem.
Na verdade, o que torna “A casa dos budas ditosos”
um livro obrigatório é seu caráter filosófico. Ao contrário dos heróis gregos,
obrigados pelos deuses a cumprir seu destino, nossa heróica baiana exerce
plenamente seu arbítrio. Contrariando todas as normas vigentes, ela converte o
próprio corpo em agente de sua liberdade, vivendo todas as experiências que lhe
interessam - até mesmo algumas de natureza incestuosa. E se por um lado lança
mão de um vocabulário, digamos, bem objetivo, não raro também se vale de
considerações de grande beleza poética, demonstrando que o profano e o sagrado
podem perfeitamente conviver em harmonia.
Contando com primorosa adaptação de Domingos
Oliveira – nosso maior especialista em questões amorosas – o texto de João
Ubaldo recebeu maravilhosa versão cênica. Ao optar por manter a personagem
sentada diante de uma mesa e falando ao microfone, o encenador obriga a platéia
a concentrar-se nos conteúdos propostos pelo autor, assim explicitados com
total clareza.
Ao entrar em cena com o palco tenuamente iluminado,
e vestida lindamente por Cristina Camargo, já em seu curto caminhar Fernanda
Torres evidencia um charme muito parecido ao que sua mãe (Fernanda Montenegro)
exibe desde sempre. Em seguida, e com infinita graça, ela se senta, as luzes se
acentuam e o espetáculo começa. A partir daí, o público tem o privilégio de,
mais uma vez, conferir o imenso talento da atriz, que exibe aqui a melhor performance de sua
carreira.
Nas partes mais picantes, Fernanda Torres confere beleza
e humanidade a momentos que, se reduzidos à sua especificidade, jamais
ultrapassariam a mera pornografia. E nas passagens mais poéticas a atriz
valoriza ao máximo todas as imprevistas e mais do que pertinentes reflexões do
autor. Sob todos os pontos de vista, uma atuação extraordinária, que certamente
haverá de ser prestigiada de forma incondicional pelo público carioca.
A
CASA DOS BUDAS DITOSOS – Texto de João Ubaldo Ribeiro. Adaptação e direção de
Domingos Oliveira. Com Fernanda Torres. Centro Cultural Correios.
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