Teatro/CRÍTICA
“Epifanias”
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Sonho
de excepcional beleza
Lionel
Fischer
Falecido em 1912, o dramaturgo sueco August Strindberg
deixou uma obra na qual se inserem títulos importantes – a trilogia “A estrada
de Damasco”, “Senhorita Júlia”, “O pai”, “A sonata dos espectros” e “Os
credores”, entre muitas outras peças. Dos grandes dramaturgos deste século,
Strindberg é certamente aquele que mais impregnou seus trabalhos de conotações
biográficas, repartindo sua conturbada e paranóica personalidade entre dezenas
de personagens. Esta característica é particularmente visível em “O sonho”, em
cartaz no Espaço III, rebatizada de “Epifanias”, encenação de Moacyr Góes.
Embora possua passagens brilhantes e questionamentos
mais do que pertinentes sobre algumas das mais dilacerantes dúvidas humanas, “O
sonho” é uma peça que padece de graves defeitos: é gigantesca, bastante confusa
e evidencia uma estrutura dramatúrgica que, sob o pretexto de colocar em cena a
ilogicidade do sonho, termina por privilegiar o caos. A adaptação feita por
Moacyr Góes e seu grupo , ao contrário, reduz o original àquilo que possui de
essencial. E tem o mérito suplementar – e sumamente original – de inverter a
perspectiva básica do texto: ao invés de tudo ocorrer a partir do “olhar” da
deusa Inês, que desce a Terra para tentar entender o sofrimento humano, são os
homens que lhe oferecem o retrato patético, comovente e poético de suas vidas.
A “revelação”, portanto, passa a ser humana, e a deusa se converte em receptora
desta curiosa epifania.
Sob todos os aspectos, trata-se da melhor encenação
de Góes desde a inesquecível “Escola de bufões”. A começar pela tradução de
Clara Góes e Maria de Medici, de extrema fluência. A cenografia de José Dias é
de enganosa simplicidade: a partir de sobras de outras montagens do grupo –
partes do container utilizado em “Conferência a uma academia”, panos, cordas, caixotes e caixinhas que escondem
segredos e poesias. Dias criou uma ambientação que não situa a montagem em
nenhum lugar específico, já que o fundamental é fornecer uma visão planetária
do sofrimento humano. O mesmo critério de reciclar poeticamente as sobras de
trabalhos anteriores norteou Samuel Abrantes na confecção dos deslumbrantes
figurinos: botões, trapos, cacos, panos impregnados de anteriores vivências,
enfim, “roupas” do grupo convertidas em invólucros de novos sonhos. A trilha
sonora, de autoria do próprio Góes, mescla canções e ritmos de vários
quadrantes, e é de uma beleza e eficiência avassaladoras.
A montagem de “Epifanias” ratifica algo que só
invejosos natos ou hereditários ainda ousam contestar: Moacyr Góes é,
disparado, o maior encenador carioca. Além de estar muito próximo do domínio
completo dos elementos que compõem o espetáculo – quase me esqueci de mencionar
que a expressiva iluminação de “Epifanias” também é de sua autoria –Góes leva
sobre os demais diretores cariocas (muitos sem dúvida competentes) uma significativa
vantagem: é um poeta, ou seja, não apenas compreende os conceitos inerentes à
Beleza como é capaz de materializá-la. A seguir, cito apenas um exemplo dentre
tantos verificáveis em Epifanias”.
Há um momento em que um personagem evoca a partida
do navio onde está seu filho; como o ator que articula este texto o faz muito bem,
um encenador convencional se daria por satisfeito; mas Góes faz navegar no
fundo do palco o barco que se afasta e há nesse cortejo que flutua sobre as
ondas uma tal carga de melancolia que o sofrimento do pai ganha contornos trágicos.
Um trabalho admirável, que tem a sustentá-lo um elenco homogêneo e
excepcionalmente apto a responder a todas as solicitações da direção. E como
tudo ocorre de forma a não destacar um determinado ator, limito-me a
parabenizar Leon Góes, Floriano Peixoto, Sílvia Buarque, Antonella Batista,
Maurício Marques, Adriana Garambone, Gaspar Filho e Paulo Vespúcio.
EPIFANIAS
– Adaptação de “O sonho”, de Strinberg. Direção de Moacyr Góes. Com Leon Góes,
Sílvia Buarque e outros.
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