Teatro/CRÍTICA
"O Idiota"
............................................................................................
Extraordinário
mergulho na alma humana
Lionel Fischer
Antes de mais nada, gostaria de declarar que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é o
escritor que mais amo e cuja obra li em sua totalidade - isto não significa,
bem entendido, que seja um especialista no autor e,
portanto, capaz de tecer sobre ele considerações mais significativas do
que as infinitas já formuladas por alguns dos mais brilhantes teóricos de
todo o mundo.
Isto posto, cabe uma segunda declaração: todas as vezes que vou assistir a um
filme ou peça de teatro baseados em alguma obra do autor, em termos metafóricos
me tremo todo, como se padecesse de malária, por temor de que a mesma
resulte parcial ou completamente desfigurada. Felizmente, não é o caso
desta inesquecível montagem, produzida pela Mundana Companhia de Teatro, de São
Paulo, em cartaz no Espaço Tom Jobim (Galpão das Artes) e que encerra sua temporada
carioca na próxima segunda-feira.
Contando com tradução de Paulo Bezerra, roteiro adaptado de Aury Porto,
colaboração dramatúrgica de Vadim Nikitin, Luah Guimarães e Cibele Forjaz,
consultoria teórica de Elena Vássina e direção de Cibele Forjaz, o
espetáculo chega à cena com elenco formado por Aury Porto, Fredy Allan, Luah
Guimarães, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sérgio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia
Prado e Vanderlei Bernardino.
Pensando naqueles que ainda não leram a obra, transcrevo a seguir a sinopse da
mesma, extraída do programa oferecido ao público:
"O príncipe Míchkin está de volta a São Petersburgo depois de um período
na Suíça, onde estivera se tratando de epilepsia. Ao chegar a São Petersburgo,
ele pretende procurar por Lisavieta, uma parenta distante com quem deseja
travar conhecimento. Apesar de príncipe, Míchkin é pobre e, ao viajar num vagão
de terceira classe do trem da rota Petersburgo-Varsóvia, ele conhece Ragôjan,
um novo-rico que acaba de ganhar uma vultuosa herança do pai, com a qual
pretende arrebatar Nastássia Filípovna, mulher fatal, primeiro afilhada e
depois amante de Tôstski, um milionário petersburguense.
Arma-se aí um dos pilares de O Idiota. Ragôjan, protótipo do homem
rude, é apaixonado por Nastássia, que, por sua vez, fica fascinada pela
santidade de Míchkin, também 'medusado' pela figura da concubina santa. A
partir da segunda parte da peça vemos Míchkin enredado em outro triângulo
amoroso. Agora, em um dos vértices do triângulo está Aglaia, a filha de sua
parenta Lisavieta, que ficará fascinada com a possibilidade de Míchkin vir a
ser o amante revolucionário com o qual ela tanto sonha. Nesse triângulo,
Nastássia e Aglaia disputam o coração de Míchkin. Outros personagens envolvidos
diretamente nesses triângulos tornam o enredo dessa história bem mais complexo,
para além do simples jogo amoroso. No olho do furacão está Mítchkin, que tem
como falha trágica compadecer-se de todas as personagens à sua volta".
Como se vê, estamos diante de uma trama com evidente caráter folhetinesco. Mas
o que a difere do folhetim tradicional é a extraordinária capacidade do
autor de mergulhar profundamente na alma humana, fazendo aflorar alguns de
seus aspectos mais contraditórios e sombrios. Ao mesmo tempo, e por mais
paradoxal que possa parecer, Dostoiévski reafirma sua crença no homem através
do protagonista, que muitos consideram uma mescla de Dom Quixote e
Jesus Cristo. E tal crença baseia-se na suposição de que o homem, ainda
que contendo aspectos nada meritórios, ao mesmo tempo também possui uma
porção, digamos, de santidade, aqui materializada na capacidade de Míchkin de
sentir compaixão (ao invés de julgar) e de perdoar a todos aqueles
que se maltratam e, em especial, o maltratam com cruel insistência.
Tais predicados geram, inevitavelmente, sentimentos antagônicos. Quando alguém
é vítima de uma ofensa, por exemplo, o natural é que reaja. Mas se, ao invés de
fazê-lo, oferece a outra face, o agressor se sente confuso, não sabe como
proceder diante de uma reação tão inesperada. Ao invés de ódio, recebe o
perdão...
No entanto, ultrapassada a surpresa inicial, surge o grande impasse, pois o
agressor é como que forçado a encarar aquele que agrediu como uma espécie de
materialização do ideal humano; não sendo ele capaz de se enquadrar nesta
categoria, passa a amar e a odiar aquele que o perdoou. E que, assim
agindo, mostra a viabilidade de um maior entendimento entre os homens. Em
última instância, Mítchkin causa profundo desconforto em todos que o
cercam exatamente pelo fato de personificar o bem, no sentido mais amplo da
palavra.
Com relação ao espetáculo, este merece ser considerado como um dos mais
significativos já vistos em palcos cariocas. Exibindo uma estrutura
itinerante, o espetáculo convida o espectador a acompanhá-lo em diversos
cenários, sempre colocando-o muito próximo da ação. E a tal ponto que me foi
dado o privilégio de escutar o seguinte diálogo entre duas jovens, de no
máximo 20 anos, quando a montagem estava chegando ao seu final.
Uma delas disse: "É como se a gente estivesse na peça", no que a
outra retrucou: "Mas nós estamos na peça!". E foi
exatamente essa a sensação que senti ao longo das seis horas do espetáculo.
E isto se deve não apenas ao fato de, eventualmente e com toda a delicadeza, os
atores convidarem alguns espectadores a breves participações. O essencial é
que desde o primeiro momento já estava implícito que a montagem só faria
endossar a definição de Peter Brook do fenômeno teatral: "O teatro é
a arte do encontro". E tenho absoluta certeza de que todos que
assistiram "O Idiota" jamais esquecerão este encontro tão
arrebatador.
Impondo à cena uma dinâmica repleta de humor e humanidade, aqui materializadas
através de marcas tão imprevistas quanto criativas, Cibele Forjaz consegue ser
absolutamente fiel ao romance, mas ao mesmo tempo teatralizando-o de forma
admirável. E mais: a ele conferindo um tamanho grau de contemporaneidade que
por vezes temos a impressão de que o autor poderia perfeitamente estar sentado
na platéia - e, sem dúvida, felicíssimo com o resultado exibido.
Com relação ao elenco, mais uma vez me vejo obrigado a repetir o que já disse
em tantas críticas: este país pode carecer de tudo, menos de intérpretes
maravilhosos. E os atores da Mundana Companhia de Teatro só fazem reafirmar
esta minha inabalável crença. E não apenas por exibirem amplos recursos
expressivos, mas também por sua notável capacidade de entrega e pelo inenarrável
prazer que demonstram de estar em cena, partilhando suas emoções com
o público. A todos, portanto, agradeço essa noite memorável, e apelo aos sempre
caprichosos deuses do teatro que continuem abençoando esta montagem e permitam
que a mesma fique em cartaz por muito, muito tempo.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os irrepreensíveis trabalhos
de Paulo Bezerra (tradução), Aury Porto (roteiro adaptado), Vadin Nikitin, Luah
Guimarães e Cibele Forjaz (coloboração dramatúrgica), Elena Vássina (consultoria
teórica), Lu Favoreto (direção de movimento), Lúcia Gayotto (direção vocal e
interpretativa), Otávio Ortega (direção musical, trilha sonora, música ao
vivo), Laura Vinci (cenografia), Joana Porto (figurinos), Alessandra Domingues
(iluminação) e Simone Mina (arte gráfica) - e aqui faço questão de ressaltar
que este foi o melhor programa de uma peça que já me chegou às mãos, tantas e
tão pertinentes são as informações nele contidas.
O IDIOTA - Texto de Fiódor Dostoiévski. Roteiro adaptado de Aury Porto. Direção
de Cibele Forjaz. Com a Mundana Companhia de Teatro. Espaço Tom Jobim (Galpão
das Artes).
Nenhum comentário:
Postar um comentário