Teatro/CRÍTICA
“A Dama do Mar”
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Densidade
e elegância no cais
Lionel
Fischer
Por muitos considerado o pai do teatro moderno, o
norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) escreveu 23 peças, algumas delas verdadeiras
obras-primas. É o caso, entre muitos outros, de “A Dama do Mar”, que acaba de
inaugurar um novo e fascinante especo cênico: o Pier Mauá. Dirigida por Ulysses
Cruz, a montagem tem elenco formado por Cristiana Guinle, Felipe Martins,
Floriano Peixoto, Helio Cícero, Murilo Elno, Paloma Duarte e Tereza Seiblitz.
Como em geral ocorre em textos de grande
profundidade, este tem enredo simples. Casada com o dr. Wangel, Ellida vive
presa a recordações que parecem ligá-la irremediavelmente a um misterioso
estrangeiro, o que a leva a só manter com o marido uma relação de paciente.
Instável e sempre angustiada, ela só se mostra feliz quando nada no mar.
Bolette e Hilde, filhas do primeiro casamento de Wangel, convivem com a
madrasta apenas porque as circunstâncias as obrigam a fazê-lo. Os dois outros
personagens – Ballested foi suprimido – são o professor Arnholm e Lyngstrand,
este último tuberculoso e com ambições artísticas.
Embora permita múltiplas interpretações, a que mais
me interessa é a abordagem que Ibsen faz do inconsciente. O mar, que tanto
fascina Ellida, torna-se uma metáfora das forças conflitantes que se agitam em
seu interior e lutam para emergir. Se por um lado ela não tem plena consciência
do que a aflige, por outro sente que sua vida não deve obedecer aos rumos
traçados pela moral burguesa. É por isso que não consegue libertar-se da
lembrança do Estrangeiro, com quem no passado estabelecera um romântico
compromisso matrimonial – sendo ele um marinheiro, é como se Ellida o encarasse
como uma espécie de veículo capaz de levá-la a materializar seus obscuros
anseios.
O diretor Ulysses Cruz impõe à cena uma dinâmica em
total sintonia com os principais conteúdos propostos pelo autor. Tudo ocorre numa
atmosfera simultaneamente densa e elegante, com marcações precisas que
permitem à platéia apreender todos os
conflitos. Evidenciando pleno domínio do material dramatúrgico, Cruz o converte
em linguagem de grande expressividade, cujo ponto alto é a relação dos
personagens com o particularíssimo espaço que os envolve – no original, o mar é
apenas mencionado, mas aqui sua permanente visão adquire uma dimensão
assustadora, como se todos estivessem sempre na iminência de serem tragados por
suas verdadeiras e inconfessáveis aspirações. Trata-se, sob todos os pontos de
vista, de uma encenação irretocável, sem dúvida um dos maiores destaques da
atual temporada.
Na pele de Ellida, Cristiana Guinle tem a melhor
atuação de sua carreira. Conseguindo transmitir as principais características
da personagem – sua angústia, fragilidade e desejo de encontrar-se -, a atriz é
uma presença que inquieta e fascina. Felipe Martins está no mesmo caso de
Cristiana: seu Lyngstrand, frágil, sonhador e cheio de esperança, me parece seu
trabalho mais bem realizado no teatro. A jovem Paloma Duarte, que até então
desconhecia, é uma revelação: com uma atuação vigorosa e plena de contrastes, a
atriz explora com inteligência e sensibilidade todo o potencial da irriquieta e
carente Hilde. Floriano Peixoto (Arnholm), Murilo Elno (Estrangeiro) e Tereza
Seibltz (Bolette) têm participações seguras, o mesmo podendo ser dito de Hélio
Cícero – mas este poderia explorar um pouco mais os eventuais momentos de
desespero de Wangel, ao invés de adotar uma postura que quase sempre se mantém
excessivamente contida e cerebral.
Na equipe técnica, o desempenho de todos é
excepcional, sobretudo a deslumbrante cenografia criada por Ulysses – esta
incorpora o mar à ação dramática a ponto de praticamente convertê-lo em
personagem. Os figurinos de Rita Murtinho retratam com perfeição o caráter e
nível social desse curioso microcosmo desenhado por Ibsen, cabendo igualmente
destacar a sensível iluminação de Maneco Quinderé, fundamental para o
estabelecimento das múltiplas atmosferas psicológicas contidas no texto.
A
DAMA DO MAR – Texto de Ibsen. Direção de Ulysses Cruz. Com Cristiana Guinle,
Felipe Martins e outros. Pier Mauá.
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