sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“A Dama do Mar”

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Densidade e elegância no cais

 

Lionel Fischer

 

Por muitos considerado o pai do teatro moderno, o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) escreveu 23 peças, algumas delas verdadeiras obras-primas. É o caso, entre muitos outros, de “A Dama do Mar”, que acaba de inaugurar um novo e fascinante especo cênico: o Pier Mauá. Dirigida por Ulysses Cruz, a montagem tem elenco formado por Cristiana Guinle, Felipe Martins, Floriano Peixoto, Helio Cícero, Murilo Elno, Paloma Duarte e Tereza Seiblitz.

Como em geral ocorre em textos de grande profundidade, este tem enredo simples. Casada com o dr. Wangel, Ellida vive presa a recordações que parecem ligá-la irremediavelmente a um misterioso estrangeiro, o que a leva a só manter com o marido uma relação de paciente. Instável e sempre angustiada, ela só se mostra feliz quando nada no mar. Bolette e Hilde, filhas do primeiro casamento de Wangel, convivem com a madrasta apenas porque as circunstâncias as obrigam a fazê-lo. Os dois outros personagens – Ballested foi suprimido – são o professor Arnholm e Lyngstrand, este último tuberculoso e com ambições artísticas.

Embora permita múltiplas interpretações, a que mais me interessa é a abordagem que Ibsen faz do inconsciente. O mar, que tanto fascina Ellida, torna-se uma metáfora das forças conflitantes que se agitam em seu interior e lutam para emergir. Se por um lado ela não tem plena consciência do que a aflige, por outro sente que sua vida não deve obedecer aos rumos traçados pela moral burguesa. É por isso que não consegue libertar-se da lembrança do Estrangeiro, com quem no passado estabelecera um romântico compromisso matrimonial – sendo ele um marinheiro, é como se Ellida o encarasse como uma espécie de veículo capaz de levá-la a materializar seus obscuros anseios.

O diretor Ulysses Cruz impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com os principais conteúdos propostos pelo autor. Tudo ocorre numa atmosfera simultaneamente densa e elegante, com marcações precisas que permitem  à platéia apreender todos os conflitos. Evidenciando pleno domínio do material dramatúrgico, Cruz o converte em linguagem de grande expressividade, cujo ponto alto é a relação dos personagens com o particularíssimo espaço que os envolve – no original, o mar é apenas mencionado, mas aqui sua permanente visão adquire uma dimensão assustadora, como se todos estivessem sempre na iminência de serem tragados por suas verdadeiras e inconfessáveis aspirações. Trata-se, sob todos os pontos de vista, de uma encenação irretocável, sem dúvida um dos maiores destaques da atual temporada.

Na pele de Ellida, Cristiana Guinle tem a melhor atuação de sua carreira. Conseguindo transmitir as principais características da personagem – sua angústia, fragilidade e desejo de encontrar-se -, a atriz é uma presença que inquieta e fascina. Felipe Martins está no mesmo caso de Cristiana: seu Lyngstrand, frágil, sonhador e cheio de esperança, me parece seu trabalho mais bem realizado no teatro. A jovem Paloma Duarte, que até então desconhecia, é uma revelação: com uma atuação vigorosa e plena de contrastes, a atriz explora com inteligência e sensibilidade todo o potencial da irriquieta e carente Hilde. Floriano Peixoto (Arnholm), Murilo Elno (Estrangeiro) e Tereza Seibltz (Bolette) têm participações seguras, o mesmo podendo ser dito de Hélio Cícero – mas este poderia explorar um pouco mais os eventuais momentos de desespero de Wangel, ao invés de adotar uma postura que quase sempre se mantém excessivamente contida e cerebral.

Na equipe técnica, o desempenho de todos é excepcional, sobretudo a deslumbrante cenografia criada por Ulysses – esta incorpora o mar à ação dramática a ponto de praticamente convertê-lo em personagem. Os figurinos de Rita Murtinho retratam com perfeição o caráter e nível social desse curioso microcosmo desenhado por Ibsen, cabendo igualmente destacar a sensível iluminação de Maneco Quinderé, fundamental para o estabelecimento das múltiplas atmosferas psicológicas contidas no texto.

A DAMA DO MAR – Texto de Ibsen. Direção de Ulysses Cruz. Com Cristiana Guinle, Felipe Martins e outros. Pier Mauá.

 

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