Teatro/CRÍTICA
“Na solidão dos campos de algodão”
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A busca desesperada do outro
Lionel Fischer
Bernard Marie Koltès deixou uma obra que tem, como
uma de suas principais características, a inadaptação do homem ao mundo moderno
– não no sentido tecnológico, mas em termos de valores. Alguns dos melhores
textos do autor tratam de pessoas que vagam à beira do sistema ou simplesmente
vivem transgredindo suas normas – é o caso, por exemplo, de “Roberto Zucco”,
encenada recentemente no CCBB. E esta temática predomina em “Na solidão dos
campos de algodão”, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. A montagem é
assinada por Gilberto Gawronsky, que também atua como ator ao lado de Ricardo
Blat.
Ambientada num espaço indefinido e num tempo que vai
do crepúsculo à madrugada, e peça (magnificamente traduzida por Jacqueline
Laurence) coloca frente a frente dois homens cujos papéis parecem
reconhecíveis: um deles seria um homossexual e o outro um michê. Entretanto, o
que menos importa é a possibilidade de satisfação de um desejo físico: o que
está em causa é a desesperada tentativa de dois seres à deriva de estabelecer,
ainda que através de atitudes que sugerem a iminência de um confronto, algum
tipo de contato capaz de amenizar a mútua solidão.
Desprovidos de nomes e antecedentes, os personagens
têm trajetórias opostas. De início, o suposto homossexual exibe timidez e
fragilidade, com o outro agindo com a segurança dos que julgam dominar uma
situação conhecida. Aos poucos, porém, os papéis vão se invertendo, e então
fica claro que ambos são como faces de uma mesma moeda, pois padecem de uma
mesma síndrome e dela procuram se livrar através de um encontro. Mas este só
ocorre quando ambos abdicam da palavra e dançam alucinadamente em volta de um
casaco estendido no chão, como no passado o faziam os guerreiros em torno de
uma fogueira – se esta marcação não decorre de uma rubrica do autor, parabenizo
entusiasticamente o diretor, pois encontrou uma imagem de fortíssimo impacto
para sugerir a possibilidade dos personagens transcenderem a miséria de sua
condição.
Diretor gaúcho que estreou no Rio de Janeiro há
alguns anos com a inesquecível “História de borboletas”, protagonizada por
Ricardo Blat, Gawronsky impõe à cena uma dinâmica que só na aparência prioriza
a palavra. É claro que o texto tem papel relevante, mas cabe destacar a forma
como é articulado, assim como o trabalho corporal dos intérpretes e o ótimo
aproveitamento do espaço criado por Cláudia Moraes – a cenógrafa converte o
Sérgio Porto numa arena soturna e ameaçadora, tendo a auxiliá-la a tênue luz de
Paulo César Medeiros, que só raramente destaca os rostos e assim enfatiza a
dramaticidade da trama.
Ricardo Blat talvez seja o intérprete nacional que
mais se arrisca em cena. Super dotado para o ofício poderia trilhar um caminho
em que a investigação só ocasionalmente se fizesse presente, já que nem sempre
ela é aceita pelo público, bem mais afeito ao naturalismo imposto pela TV e que
cada vez mais domina os palcos. Mas Blat faz o oposto, pois a cada trabalho
revela uma vontade inquebrantável de superar seus próprios limites. Sua notável
atuação, portanto, em nada me surpreende. Mas ainda assim gostaria de destacar
a riqueza dos gestos que utiliza e o maravilhoso uso que faz da voz, fatores
que contribuem decisivamente para materializar de forma irrepreensível a
complexa personalidade do personagem que interpreta.
Quanto a Gawronsky, este também tem excelente
atuação, sobretudo em termos vocais – neste particular, o ator/diretor expressa
com clareza e contundência todos os conteúdos propostos. Fisicamente, acredito
que a figura do aparente michê poderia ser mais ameaçadora na parte inicial do
espetáculo, o que possibilitaria um contraste ainda maior quando o personagem
exibe seu lado frágil e perplexo. Tal deficiência, porém, é de certa forma
compensada por uma composição que tem na estranheza a sua tônica, já que o ator
se vale de signos que remetem simultaneamente à androginia e ao universo punk.
NA
SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO – Texto de Bernard Marie Koltès. Direção de
Gilberto Gawronsky. Com Gawronsky e Ricardo Blat. Espaço Cultural Sérgio Porto.
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