quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“Na solidão dos campos de algodão”

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A busca desesperada do outro

 

Lionel Fischer

 

Bernard Marie Koltès deixou uma obra que tem, como uma de suas principais características, a inadaptação do homem ao mundo moderno – não no sentido tecnológico, mas em termos de valores. Alguns dos melhores textos do autor tratam de pessoas que vagam à beira do sistema ou simplesmente vivem transgredindo suas normas – é o caso, por exemplo, de “Roberto Zucco”, encenada recentemente no CCBB. E esta temática predomina em “Na solidão dos campos de algodão”, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. A montagem é assinada por Gilberto Gawronsky, que também atua como ator ao lado de Ricardo Blat.

Ambientada num espaço indefinido e num tempo que vai do crepúsculo à madrugada, e peça (magnificamente traduzida por Jacqueline Laurence) coloca frente a frente dois homens cujos papéis parecem reconhecíveis: um deles seria um homossexual e o outro um michê. Entretanto, o que menos importa é a possibilidade de satisfação de um desejo físico: o que está em causa é a desesperada tentativa de dois seres à deriva de estabelecer, ainda que através de atitudes que sugerem a iminência de um confronto, algum tipo de contato capaz de amenizar a mútua solidão.

Desprovidos de nomes e antecedentes, os personagens têm trajetórias opostas. De início, o suposto homossexual exibe timidez e fragilidade, com o outro agindo com a segurança dos que julgam dominar uma situação conhecida. Aos poucos, porém, os papéis vão se invertendo, e então fica claro que ambos são como faces de uma mesma moeda, pois padecem de uma mesma síndrome e dela procuram se livrar através de um encontro. Mas este só ocorre quando ambos abdicam da palavra e dançam alucinadamente em volta de um casaco estendido no chão, como no passado o faziam os guerreiros em torno de uma fogueira – se esta marcação não decorre de uma rubrica do autor, parabenizo entusiasticamente o diretor, pois encontrou uma imagem de fortíssimo impacto para sugerir a possibilidade dos personagens transcenderem a miséria de sua condição.

Diretor gaúcho que estreou no Rio de Janeiro há alguns anos com a inesquecível “História de borboletas”, protagonizada por Ricardo Blat, Gawronsky impõe à cena uma dinâmica que só na aparência prioriza a palavra. É claro que o texto tem papel relevante, mas cabe destacar a forma como é articulado, assim como o trabalho corporal dos intérpretes e o ótimo aproveitamento do espaço criado por Cláudia Moraes – a cenógrafa converte o Sérgio Porto numa arena soturna e ameaçadora, tendo a auxiliá-la a tênue luz de Paulo César Medeiros, que só raramente destaca os rostos e assim enfatiza a dramaticidade da trama.

Ricardo Blat talvez seja o intérprete nacional que mais se arrisca em cena. Super dotado para o ofício poderia trilhar um caminho em que a investigação só ocasionalmente se fizesse presente, já que nem sempre ela é aceita pelo público, bem mais afeito ao naturalismo imposto pela TV e que cada vez mais domina os palcos. Mas Blat faz o oposto, pois a cada trabalho revela uma vontade inquebrantável de superar seus próprios limites. Sua notável atuação, portanto, em nada me surpreende. Mas ainda assim gostaria de destacar a riqueza dos gestos que utiliza e o maravilhoso uso que faz da voz, fatores que contribuem decisivamente para materializar de forma irrepreensível a complexa personalidade do personagem que interpreta.

Quanto a Gawronsky, este também tem excelente atuação, sobretudo em termos vocais – neste particular, o ator/diretor expressa com clareza e contundência todos os conteúdos propostos. Fisicamente, acredito que a figura do aparente michê poderia ser mais ameaçadora na parte inicial do espetáculo, o que possibilitaria um contraste ainda maior quando o personagem exibe seu lado frágil e perplexo. Tal deficiência, porém, é de certa forma compensada por uma composição que tem na estranheza a sua tônica, já que o ator se vale de signos que remetem simultaneamente à androginia e ao universo punk.

NA SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO – Texto de Bernard Marie Koltès. Direção de Gilberto Gawronsky. Com Gawronsky e Ricardo Blat. Espaço Cultural Sérgio Porto.

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