quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Comunicação a uma academia”

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Uma saída para o desespero

 

Lionel Fischer

 

“Escola de bufões” é um marco na carreira do encenador Moacyr Góes. Não pelo fato de ter sido sua montagem mais premiada, mas sim porque o diretor se propôs, a partir dali, buscar uma nova estética teatral. Ao invés de prosseguir criando espetáculos cuja tônica residia na elaboração de complexos signos visuais, Moacyr anunciou que elegeria o ator e o texto como principais focos de interesse. E sua primeira experiência neste sentido obteve pleno êxito. Encenada em janeiro deste ano, “Antigona” encantou o público e a crítica – fenômeno raríssimo -, além de assinalar o início de uma parceria com o ator Italo Rossi que dá agora o seu segundo fruto, “Comunicação a uma academia”, de Franz Kafka, em cartaz no Espaço III do Teatro Villa-Lobos.

Extraído do volume de contos “Um médico rural”, “Comunicação a uma academia” coloca em cena um ex-símio que, após ser capturado na Costa do Ouro e ante a possibilidade de permanecer preso o resto da vida resolve, durante a viagem no navio que o conduz à Europa, transformar-se num homem europeu, racional e branco. Solicitado por uma assembléia de sábios a relatar sua espantosa metamorfose, o personagem a descreve em detalhes, fazendo sempre questão de ressaltar que assim agira apenas para encontrar uma saída para o próprio desespero. “Se o meu objetivo fosse a liberdade, teria me atirado ao mar”, afirma.

Entre ir para o zoológico e realizar um brutal esforço para converter-se em pessoa, o macaco escolhe a segunda opção. Entretanto, acaba sendo exibido em shows de variedades. Ou seja: mudaram as grades, mas o aprisionamento persiste.  Com este estratagema, Kafka deixa claro que, da mesma forma que os homens não conseguem incorporar ao seu mundo um ser capaz de tal proeza, tratando-o como um igual, também se mostram incapazes de conviver harmonicamente entre si, tantas são as barreiras que fazem questão de erigir – ideológicas, culturais, econômicas e afetivas, dentre tantas outras.

Para dar vida a esta extraordinária criação de Kafka, Moacyr Góes contou com dois preciosos aliados: o cenógrafo José Dias e o ator Italo Rossi. Dias construiu um gigantesco container, manejado por dois contra-regras – os atores Leon Góes e Floriano Peixoto – cujas laterais se abrem para construir o espaço cênico. Esse dispositivo “tipo exportação”, que sugere uma jaula, contribui para desumanizar o personagem e reforçar a idéia de que ele jamais será aceito no mundo dos homens. Quanto a Italo Rossi, sua atuação supera todas as expectativas.

Para começar, Italo elimina toda e qualquer possibilidade de enveredar por uma linha caricatural. O macaco existe apenas em sutis movimentos de mãos, discreta inclinação da cabeça e um jeito de olhar característico do momentâneo alheamento de um animal. No mais, é um ser humano que se vale de fina ironia para minimizar o próprio desespero diante do evidente malogro de sua metamorfose. Valorizando ao máximo cada palavra, gesto ou movimento corporal, Italo Rossi domina completamente o personagem e a cena, mantendo a platéia magnetizada ao longo dos 50 minutos de duração do espetáculo.

No que se refere à encenação de Moacyr Góes, é visível que toda ela foi estruturada em função da presença de Italo Rossi. Góes percebeu, acertadamente, que uma montagem dessa natureza prescinde de elaboradas marcações, pois tudo repousa no texto e no trabalho do ator, obrigado pelas circunstâncias a se relacionar diretamente com a platéia. Seu principal mérito, portanto, foi o de se concentrar em extrair do conto e da atuação de Italo a maior gama de significados. E dessa dupla tarefa o encenador se sai plenamente vitorioso, já que a esplêndida interpretação de Italo Rossi nos permite um emocionante encontro com o pensamento do mais instigante autor deste século.

COMUNICAÇÃO A UMA ACADEMIA – Texto de Franz Kafka. Direção de Moacyr Góes. Com Italo Rossi, Leon Góes e Floriano Peixoto. Espaço III do Teatro Villa-Lobos.

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