sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“A rua da amargura – 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus”

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Paixão, lágrimas e sorrisos

 

Lionel Fischer

 

Durante 20 minutos, o foyer do Centro Cultural Banco do Brasil teve a decorá-lo sorrisos e olhares de criança deslumbrada daqueles que assistiam à estréia de “A rua da amargura – 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus”, segunda parceria do diretor Gabriel Villela com o Grupo Galpão, de Minas – a outra foi “Romeu e Julieta”. Embalados por canções religiosas e populares, magnetizados pelos belíssimos figurinos que remetem tanto ao Oriente Médio à época de Jesus como a qualquer lugar onde a imaginação tenha feito sua morada, todos se renderam à magia deste breve aperitivo, findo o qual ninguém parecia duvidar de que as iguarias que seriam servidas a seguir, no palco do Teatro I, seriam tanto ou mais saborosas.

Na segunda parte, a vida de Jesus é contada através do anacrônico e pomposo texto de Eduardo Garrido – adaptado por Arildo de Barros -, infinitamente representado nos circos desde o início do século. Mas tal pomposidade e anacronismo se encaixam perfeitamente dentro da proposta da encenação, que é a de explorar as possibilidades do circo-teatro a partir do melodrama religioso. É claro que católicos ortodoxos discordarão de eventuais e propositais exageros, assim como do humor de algumas passagens. Mas não se pode esquecer que o gênero pressupõe não só paixões exacerbadas e, portanto, algo risíveis, como um certo tom de paródia, típico das representações circenses. Em todo caso, é provável que até mesmo hipotéticos detentores do monopólio da “verdade” religiosa se rendam ao encantamento desta montagem extraordinária.

São tantos os méritos de “A rua da amargura...” que justificá-los a todos demandaria um espaço ainda mais generoso do que este que disponho. Mas vamos tentar resumi-los. Inicialmente, cabe destacar a singela e deslumbrante cenografia do próprio diretor. Emoldurando a boca de cena, ex-votos reforçam o clima de religiosidade, também valorizado pelo estilizado presépio colocado ao fundo. O chão, uma grossa espuma pintada de azul, dá a sensação de que o céu coloriu as areis de um deserto. E não poderia deixar de mencionar a maleta carregada por Jesus de onde emerge, subitamente, uma maquete de Jerusalém, como a indicar a consciência do personagem a respeito do trágico destino que o aguardava.

Os figurinos de Maria Castilho e Wanda Sgarbi talvez sejam os mais criativos já vistos em palcos nacionais. Confeccionados com incomparável esmero a partir de materiais variados, os deslumbrantes trajes expressam todos os significados contidos no texto ou propostos pela montagem. Também merecem ser destacados os arranjos musicais de Fernando Muzzi e Hernâni Maleta, alguns para várias vozes, que além de belíssimos são esplendidamente cantados pelo grupo, assim como a expressividade da iluminação de Maneco Quinderé.

Quanto à encenação propriamente dita, ela traz a marca inconfundível deste diretor de exceção que é Gabriel Villela, cuja capacidade de nos fazer sonhar ou reviver emoções que imaginávamos sepultadas para sempre parece inesgotável. Seria pueril, a esta altura dos acontecimentos, tentar explicar este fenômeno através de uma análise rigorosa da forma como Villela combina os elementos que elege. Preferimos acreditar que ele, quem sabe por contar com a bênção dos sempre caprichosos deuses do teatro, deles tenha recebido o dom de nos falar diretamente ao coração, sem jamais desprezar nossa inteligência ou vulgarizar nossa sensibilidade. Talvez seja por isso que nos entregamos sem reservas a esta inesquecível aventura, feita de risos e eventuais lágrimas, que este poeta ora nos oferta.

Os atores do Galpão se entregam de corpo e alma às propostas da encenação, valorizando-as com uma sinceridade e competência que reforçam nossa crença que o grupo já pode ser considerado um dos melhores do país. Estão de parabéns os onze intérpretes que o compõem, pela tenacidade e coerência de sua bela trajetória artística e por sua contribuição inestimável a esta imperdível montagem.

A RUA DA AMARGURA – 14 PASSOS LACRIMOSOS SOBRE A VIDA DE JESUS. Texto de Eduardo Garrido. Adaptação de Arildo de Barros. Direção de Gabriel Villela. Com o Grupo Galpão.

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