sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

“A Vida é sonho”

...............................................

Ritual feito de encantamento

 

Lionel Fischer

 

Impressionado com as profecias que diziam que seu filho se tornaria um tirano quando assumisse o poder, o rei Basílio manda encerrar Segismundo numa torre, logo após seu nascimento, onde permanece até completar 20 anos. Mas um dia, quem sabe temendo a proximidade da morte, o monarca resolve libertar o filho por 24 horas, exigindo que todos o tratem como se fosse o verdadeiro rei – com este estratagema, Basílio imagina poder checar a veracidade das profecias, que estariam confirmadas caso Segismundo agisse como se temia que fizesse. E é o que acontece, o que determina sua volta à clausura.

É este, em resumo, o enredo de “A vida é sonho”, de Calderón de La Barca, em cartaz no Teatro Glória. Gabriel Villela assina a direção da montagem, que tem numeroso elenco encabeçado por Celso André Monteiro, Wagner de Miranda e Silvio Kaviski.

Ambientada numa Polônia medieval fictícia, a peça tem como temas básicos a fugacidade da vida e o caráter ilusório das aparências. O autor também trabalha a complexa relação entre sonho e realidade, não raro sugerindo ser praticamente impossível dissociá-los. Diante disto, qualquer encenação de “A vida é sonho” encara um desafio nada desprezível, que consiste em conferir veracidade a uma atmosfera que a todo momento oscila entre pólos opostos.

Com uma sensibilidade nitidamente voltada para o onírico, Gabriel Villela encontra no texto rico manancial para dar vazão a sua permanente busca de conferir transcendência à realidade. E embora nesta montagem explore menos o caráter religioso do texto – o contrário do que fez em 1991, quando encenou a peça com Regina Duarte, em São Paulo – ainda assim é visível um clima ritualístico, reforçado tanto pela presença da ótima cantora Nábia Villela – que entoa cânticos ciganos iugoslavos e numa certa medida comenta a cena e determina seus rumos – como pelo refinamento dos gestos e proposital lentidão com que são executados, ao menos em grande parte do espetáculo.

Explorando com a habitual competência sua expressiva cenografia – tudo se passa no interior de um curral, clara alusão aos “currales” espanhóis do século XVII, onde se davam as apresentações teatrais profanas – e os belíssimos figurinos que criou, confeccionados com retalhos e panos coloridos de sáris indianos, Villela mais uma vez proporciona momentos de intensa beleza e encantamento. E também exercita um lado novo em seu trabalho, que é a exploração do humor como elemento do jogo teatral – no presente caso, isto se dá através da conhecida brincadeira infantil da “estátua”.

As únicas ressalvas que podem ser feitas a este belo espetáculo ficam por conta de duas marcações insatisfatórias – a luta de espadas e a posterior utilização delas como arcos de violino -, assim como o entoar de “Luar do sertão”, que fica inteiramente deslocado no contexto.

Quanto ao elenco, Celso André Monteiro (Basílio) e Wagner de Miranda (Clotaldo) – este último o único que tem contato com o príncipe enclausurado – tem atuações seguras, mas quase sempre ditadas por um mesmo ritmo, o que as torna um tanto previsíveis. O mesmo não ocorre com Silvio Kaviski (Segismundo), Maurício Souza Lima (Astolfo), Fabiano Medeiros (Rosaura) e Maurício Grecco (Clarim), que impõem a seus personagens uma permanente vivacidade, além de exibirem inegável capacidade de materializar múltiplos climas emocionais.

João Petry (Estrela) é mais convincente em seu jogo corporal, não conseguindo o mesmo resultado ao tentar falar com o pretendido sotaque lusitano. Sérgio Abreu (Luz) e Rogério Faria (Sombra) dão vida a alegorias criadas pelo diretor para reforçar a idéia de constante dualidade, tendo ambos atuações corretas em papéis de poucas possibilidades, sobretudo o primeiro.

A VIDA É SONHO – Texto de Calderón de La Barca. Direção de Gabriel Villela. Com Silvio Kaviski, Celso André Monteiro e outros. Teatro Glóia.

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário