Teatro/CRÍTICA
“Dias felizes”
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Aterradora
metáfora da vida
Lionel
Fischer
Eles formam um casal singularíssimo. Enquanto Willie
passa quase todo o tempo dormindo e só eventualmente emite frases telegráficas,
sua esposa Winnie fala sem parar, manipula prosaicos objetos retirados de uma
valise e encara com certa naturalidade o fato de, inicialmente, estar enterrada
na areia até a cintura e, mais tarde, até o pescoço. É dentro deste contexto
surpreendente que transcorre a ação de “Dias felizes”, do dramaturgo irlandês
Samuel Beckett. Em cartaz no Teatro Villa-Lobos, a montagem leva a assinatura
de Jacqueline Laurence e é estrelada por Fernanda Montenegro e Fernando Torres.
Até mesmo um espectador não familiarizado com a obra
de Beckett logo compreenderá que o que está em causa não é a bizarra
convivência de um casal, mas sim o absurdo da condição humana. Para o autor, a
falência de todos os empreendimentos – filosóficos, políticos e religiosos –
impede uma real comunicação entre as pessoas, que por isto estariam condenadas
à mais completa solidão. Ainda assim, o dramaturgo deixa espaço para um mínimo
de esperança, desde que cada um, a exemplo de Winnie, consiga valorizar
prosaicas ações cotidianas e assim emprestar algum sentido à vida.
Metáfora aterradora da existência, “Dias felizes” é
uma peça cujo alcance está condicionado a dois fatores essenciais: uma direção
que não tente “facilitar” a tarefa do espectador – seja através de cortes no
texto ou impondo-lhe uma dinâmica que atenue sua proposital monotonia – e uma
atriz de vastíssimos recursos interpretativos. Felizmente, tanto a encenação de
Jacqueline Laurence como a atuação de Fernanda Montenegro, otimamente
coadjuvada por Fernando Torres, atendem a ambas as premissas, o que torna
obrigatória uma ida ao Villa-Lobos – ao menos por aqueles que não encaram o
teatro como couvert de inevitáveis pizzas.
Laurence consegue materializar os principais
componentes do texto. Tal êxito se deve à sua correta compreensão do universo
retratado, que não admite fugas teatrais de qualquer espécie e pressupõe muitas
vezes um tempo cênico de proposital e exasperante monotonia. E também à forma
como conduziu o trabalho de Fernanda, que mesmo sendo uma intérprete de exceção
dificilmente chegaria a um resultado tão expressivo se não tivesse contado com
a colaboração de Jacqueline.
Dirigir Fernanda Montenegro não deve ser nada fácil.
Não no sentido de que, em função de sua genialidade, ela assuma ares de quem
nada tem a aprender. Trata-se do oposto: justamente por ser genial, ela deve
nutrir imensa curiosidade por tudo que ainda desconhece ou julga desconhecer.
Mas como um mortal encenador poderia levá-la a ultrapassar os próprios limites?
Eis um mistério que provavelmente levaria Hamlet a mergulhar em profunda
catatonia...
Seja como for, o fato é que o público carioca tem
mais uma vez o privilégio de assistir a uma performance irretocável de
Fernanda. Senhora absoluta de seus aparentemente inesgotáveis recursos, na
presente montagem a atriz leva às últimas conseqüências a expressividade de sua
máscara facial, cabendo igualmente ressaltar o vigor e originalidade com que
articula as palavras, impondo-lhes uma incrível multiplicidade de significados.
Uma atuação soberba desta abençoada pelos caprichosos deuses do teatro, que
divide a cena com um ator que, afastado do palco há algum tempo, a ele retorna
de forma auspiciosa.
A equipe técnica também está de parabéns. É
excelente a tradução de Barbara Heliodora, o mesmo podendo ser dito da
cenografia e figurinos assinados por J.C.Serroni. Quanto à iluminação do mesmo
profissional, creio que uma claridade mais intensa do que a obtida reforçaria
ainda mais o caráter soturno desta obra-prima de Beckett, justamente em função
do imprevisto contraste.
DIAS
FELIZES – Texto de Samuel Beckett. Direção de Jacqueline Laurence. Com Fernanda
Montenegro e Fernando Torres. Teatro Villa-Lobos.
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