Teatro/CRÍTICA
“Sonata Kreutzer”
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Desconcertante
sinceridade de um assassino
Lionel
Fischer
Escrita em 1883 por Leon Tolstói (1828-1910), a
novela “Sonata Kreutzer” chegou a ser proibida pela censura do Tzar. As razões
de tal atitude jamais ficaram claras, mas é óbvio que deve ter incomodado um
discurso que pregava a eliminação da paixão e do sexo como única alternativa
para a humanidade atingir sua finalidade: a bondade e união entre todos.
Adaptada para o palco por Fernanda Schnoor
e Eduardo Wotizik, também diretor do espetáculo, “Sonata Kreutzer” está
em cartaz no Teatro Sesc Copacabana, protagonizada por Luís Melo.
No original, a ação se passa num trem. Aqui, tudo
ocorre numa praça. O único personagem narra os acontecimentos que o levaram a
matar a esposa, uma vez convencido de que ela o traía. Mas o fascínio de seu
relato não está atrelado à descrição de fatos, mas às causas que o geraram. Em
sua desconcertante sinceridade, ele jamais busca respostas capazes de
justificar seu gesto e assim amenizar sua possível culpa. Ao contrário: ainda
que absolvido pela Justiça, promove uma implacável devassa em sua alma,
adotando idêntico procedimento em relação à mulher. E tudo isso sem desprezar
os valores predominantes em sua época, que a seu ver também contribuíram para a
tragédia.
Neste texto belíssimo, de intensa poesia e
dramaticidade, Tolstói não apenas analisa uma personalidade atormentada, mas
sobretudo coloca em discussão a finalidade da existência humana. Entretanto,
sua argumentação não deixa de ser polêmica: afinal, como imaginar viável uma
sociedade cuja felicidade estaria condicionada à sumária eliminação das
paixões? E será que na ausência delas escaparíamos ao inferno (sugerido pelo
autor) de relações afetivas invariavelmente castradoras e apenas mantidas com
objetivos de procriação?
Dando prosseguimento à sua busca de uma estética
teatral cada vez mais despojada e capaz (ao menos teoricamente) de valorizar o
essencial da representação – a palavra, o ator e o público – Wotzik cria uma
dinâmica que prioriza o texto e a performance do intérprete. O único objeto
utilizado pela cenógrafa Teca Fichinski é um pequeno banco. Mas a opção do
encenador revela-se acertada, já que o que realmente importa é o pungente
depoimento do personagem, a amarga crueza e lucidez de suas confissões.
O trabalho de Wotzik, portanto, deve ser analisado
em função da atuação de Luís Melo. E como esta é simplesmente magnífica, é evidente
que ao encenador deve ser creditada uma importante parcela no inquestionável
êxito desta montagem irretocável, que certamente o público haverá de prestigiar
de forma incondicional.
Em minha opinião, Luís Melo é o ator brasileiro mais
completo da atualidade. Por isso não estranho alguns prodígios que realiza no
atual espetáculo, tais como: preencher com maestria silêncios desconcertantes;
fazer de suas mãos crispadas a perfeita materialização de múltiplas angústias;
chegar ao requinte de converter o próprio suor num elemento expressivo, como se
seu dilaceramento lhe escapasse até mesmo pelos poros. E se somarmos a tudo
isso uma voz maravilhosa, uma capacidade de entrega absoluta e uma inteligência
capaz de valorizar todos os conteúdos implícitos, chega-se então a uma
evidência: Luís Melo é de fato um ator abençoado pelos caprichosos deuses do
teatro.
Com relação ao restante da equipe técnica, são
corretos o figurino de Fichinski e a iluminação de Emiliano Ribeiro, cabendo
destacar a eficiente atuação da preparadora corporal Rossela Terranova e a
ótima adaptação desta obra-prima de Tolstói.
SONATA
KREUTZER – Texto de Leon Tolstói. Adaptação de Fernanda Schnoor e Eduardo
Wotzik. Direção de Wotzik. Com Luís Melo. Teatro Sesc Copacabana.
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