sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Dias felizes”

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Aterradora metáfora da vida

 

Lionel Fischer

 

Eles formam um casal singularíssimo. Enquanto Willie passa quase todo o tempo dormindo e só eventualmente emite frases telegráficas, sua esposa Winnie fala sem parar, manipula prosaicos objetos retirados de uma valise e encara com certa naturalidade o fato de, inicialmente, estar enterrada na areia até a cintura e, mais tarde, até o pescoço. É dentro deste contexto surpreendente que transcorre a ação de “Dias felizes”, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Em cartaz no Teatro Villa-Lobos, a montagem leva a assinatura de Jacqueline Laurence e é estrelada por Fernanda Montenegro e Fernando Torres.

Até mesmo um espectador não familiarizado com a obra de Beckett logo compreenderá que o que está em causa não é a bizarra convivência de um casal, mas sim o absurdo da condição humana. Para o autor, a falência de todos os empreendimentos – filosóficos, políticos e religiosos – impede uma real comunicação entre as pessoas, que por isto estariam condenadas à mais completa solidão. Ainda assim, o dramaturgo deixa espaço para um mínimo de esperança, desde que cada um, a exemplo de Winnie, consiga valorizar prosaicas ações cotidianas e assim emprestar algum sentido à vida.

Metáfora aterradora da existência, “Dias felizes” é uma peça cujo alcance está condicionado a dois fatores essenciais: uma direção que não tente “facilitar” a tarefa do espectador – seja através de cortes no texto ou impondo-lhe uma dinâmica que atenue sua proposital monotonia – e uma atriz de vastíssimos recursos interpretativos. Felizmente, tanto a encenação de Jacqueline Laurence como a atuação de Fernanda Montenegro, otimamente coadjuvada por Fernando Torres, atendem a ambas as premissas, o que torna obrigatória uma ida ao Villa-Lobos – ao menos por aqueles que não encaram o teatro como couvert de inevitáveis pizzas.

Laurence consegue materializar os principais componentes do texto. Tal êxito se deve à sua correta compreensão do universo retratado, que não admite fugas teatrais de qualquer espécie e pressupõe muitas vezes um tempo cênico de proposital e exasperante monotonia. E também à forma como conduziu o trabalho de Fernanda, que mesmo sendo uma intérprete de exceção dificilmente chegaria a um resultado tão expressivo se não tivesse contado com a colaboração de Jacqueline.

Dirigir Fernanda Montenegro não deve ser nada fácil. Não no sentido de que, em função de sua genialidade, ela assuma ares de quem nada tem a aprender. Trata-se do oposto: justamente por ser genial, ela deve nutrir imensa curiosidade por tudo que ainda desconhece ou julga desconhecer. Mas como um mortal encenador poderia levá-la a ultrapassar os próprios limites? Eis um mistério que provavelmente levaria Hamlet a mergulhar em profunda catatonia...

Seja como for, o fato é que o público carioca tem mais uma vez o privilégio de assistir a uma performance irretocável de Fernanda. Senhora absoluta de seus aparentemente inesgotáveis recursos, na presente montagem a atriz leva às últimas conseqüências a expressividade de sua máscara facial, cabendo igualmente ressaltar o vigor e originalidade com que articula as palavras, impondo-lhes uma incrível multiplicidade de significados. Uma atuação soberba desta abençoada pelos caprichosos deuses do teatro, que divide a cena com um ator que, afastado do palco há algum tempo, a ele retorna de forma auspiciosa.

A equipe técnica também está de parabéns. É excelente a tradução de Barbara Heliodora, o mesmo podendo ser dito da cenografia e figurinos assinados por J.C.Serroni. Quanto à iluminação do mesmo profissional, creio que uma claridade mais intensa do que a obtida reforçaria ainda mais o caráter soturno desta obra-prima de Beckett, justamente em função do imprevisto contraste.

DIAS FELIZES – Texto de Samuel Beckett. Direção de Jacqueline Laurence. Com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Teatro Villa-Lobos.

 

 

 

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