Teatro/CRÍTICA
“O futuro dura muito tempo”
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Comovente,
inquietante e perturbador espetáculo
Lionel
Fischer
Novembro de 1980. Um domingo. O homem de 62 anos
massageia delicadamente o pescoço, ombros e costas da mulher. Um velho hábito.
Subitamente, ele começa a estrangulá-la. Ela não esboça o menor gesto de
defesa. Louis Althusser, um dos mais importantes filósofos contemporâneos,
autor de uma obra que conferiu um novo enfoque ao pensamento marxista,
assassinou sua esposa Helène sem nenhuma razão aparente. Considerado
mentalmente incapaz de compreender o ato que perpetrara, foi recolhido a um
hospício, onde passaria o resto de seus dias e escreveria o livro “O futuro
dura muito tempo”, principal referência do espetáculo homônimo em cartaz no
Teatro Glaucio Gill, com direção de Márcio Vianna e elenco formado por Rubens
Corrêa e Vanda Lacerda.
Agosto de 1993. Uma sexta-feira. Oitenta
espectadores – número máximo que comporta o atual Glaucio Gill – contemplam,
magnetizados, o início de um dos mais comoventes, brilhantes e perturbadores
espetáculos já exibidos no Rio de Janeiro em qualquer época. Espalhados por
estantes e no próprio palco, corpos destituídos de cabeça e pernas conferem ao
palco uma atmosfera de opressão e delírio. No centro, em uma espécie de tanque
de areia, Rubens Corrêa age com a obstinação de um arqueólogo na iminência de
descobrir algo muito importante. Corpos e livros são desenterrados. Pessoas e
idéias que marcaram a vida do filósofo são por ele trazidas à tona. Fragmentos,
sem dúvida, de uma trajetória pessoal e intelectual permeada de angústias e
depressões. Até que o corpo de Helène emerge dos escombros.
A partir daí, através de diálogos e ações que
explicitam não só a relação do casal, mas também ajudam a conferir contornos
mais definidos à delirante personalidade de Althusser, a platéia é levada a
empreender uma inesquecível jornada – feita de luz e sombra, plena de
arrogância e lirismo, impregnada de desespero e nem por isso isenta de “surtos”
de felicidade e esperança, fenômeno constantemente verificável em todos aqueles
que, ainda que habituados aos dolorosos abismos da loucura, eventualmente
conseguem vislumbrar a esperança de escapar ao irremediável caos.
Um dos principais méritos da deslumbrante encenação
de Márcio Vianna reside no fato de que a beleza, a criatividade, o apuro e
rigor formais estão indissociavelmente atrelados à expressão de conteúdos
vitais ao homem contemporâneo. Não se trata, portanto, de uma montagem “apenas”
bem construída, mas sim de uma experiência que nos atinge com a contundência de
uma imprevista bofetada.
As nossas bem solidificadas defesas desmoronam ante
a sinceridade de um ser que, contrariando as normas mais elementares da
prudência e do bom senso, expõe sem reservas todos os meandros de sua alma
atormentada. E como ele aborda questões que dizem respeito a todos nós, é como
se cada um dos espectadores estivesse em cena fazendo a exumação de seus
próprios cadáveres.
O elenco de “O futuro dura muito tempo” reúne
novamente dois intérpretes que já dividiram o palco inúmeras vezes. Vanda
Lacerda consegue expressar toda a fragilidade de Helène, sua ternura e desejo de
compreender e ajudar o atormentado marido. Quanto a Rubens Corrêa, sua atuação é
sem dúvida uma das melhores de sua brilhante carreira. É realmente
impressionante a capacidade do ator de, mediante um olhar ou simples gesto,
transmitir significados que superam qualquer texto articulado.
E é comovente sua entrega total ao personagem,
corajosa a ponto de com ele, muitas vezes, propositadamente confundir-se. Mas
Rubens não é, ao contrário do que muitos afirmam, um “especialista em
personagens loucos”. Ele apenas não nega a parcela de loucura que todo artista
genuíno traz dentro de si, utilizando-a como veículo para chegar a determinados
abismos e de lá regressar iluminado por inauditas revelações.
Mas estas “revelações” têm que ser compartilhadas
com a cenógrafa e figurinista Teca Fichinski e, sobretudo, com o iluminador
Paulo César Medeiros. O trabalho deste último, por sinal, é vital para o
sucesso da montagem: alternando cores quentes e frias, efeitos de luz e sombra,
Medeiros cria uma atmosfera reveladora e asfixiante, que ora envereda para a
angústia, ora indica a possibilidade de uma trajetória menos sombria. Trata-se,
sem qualquer margem de erro, da mais significativa iluminação da atual
temporada.
O
FUTURO DURA MUITO TEMPO – Baseado em textos de Louis Althusser. Direção de
Márcio Vianna. Com Rubens Corrêa e Vanda Lacerda.
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