sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“O futuro dura muito tempo”

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Comovente, inquietante e perturbador espetáculo

 

Lionel Fischer

 

Novembro de 1980. Um domingo. O homem de 62 anos massageia delicadamente o pescoço, ombros e costas da mulher. Um velho hábito. Subitamente, ele começa a estrangulá-la. Ela não esboça o menor gesto de defesa. Louis Althusser, um dos mais importantes filósofos contemporâneos, autor de uma obra que conferiu um novo enfoque ao pensamento marxista, assassinou sua esposa Helène sem nenhuma razão aparente. Considerado mentalmente incapaz de compreender o ato que perpetrara, foi recolhido a um hospício, onde passaria o resto de seus dias e escreveria o livro “O futuro dura muito tempo”, principal referência do espetáculo homônimo em cartaz no Teatro Glaucio Gill, com direção de Márcio Vianna e elenco formado por Rubens Corrêa e Vanda Lacerda.

Agosto de 1993. Uma sexta-feira. Oitenta espectadores – número máximo que comporta o atual Glaucio Gill – contemplam, magnetizados, o início de um dos mais comoventes, brilhantes e perturbadores espetáculos já exibidos no Rio de Janeiro em qualquer época. Espalhados por estantes e no próprio palco, corpos destituídos de cabeça e pernas conferem ao palco uma atmosfera de opressão e delírio. No centro, em uma espécie de tanque de areia, Rubens Corrêa age com a obstinação de um arqueólogo na iminência de descobrir algo muito importante. Corpos e livros são desenterrados. Pessoas e idéias que marcaram a vida do filósofo são por ele trazidas à tona. Fragmentos, sem dúvida, de uma trajetória pessoal e intelectual permeada de angústias e depressões. Até que o corpo de Helène emerge dos escombros.

A partir daí, através de diálogos e ações que explicitam não só a relação do casal, mas também ajudam a conferir contornos mais definidos à delirante personalidade de Althusser, a platéia é levada a empreender uma inesquecível jornada – feita de luz e sombra, plena de arrogância e lirismo, impregnada de desespero e nem por isso isenta de “surtos” de felicidade e esperança, fenômeno constantemente verificável em todos aqueles que, ainda que habituados aos dolorosos abismos da loucura, eventualmente conseguem vislumbrar a esperança de escapar ao irremediável caos.

Um dos principais méritos da deslumbrante encenação de Márcio Vianna reside no fato de que a beleza, a criatividade, o apuro e rigor formais estão indissociavelmente atrelados à expressão de conteúdos vitais ao homem contemporâneo. Não se trata, portanto, de uma montagem “apenas” bem construída, mas sim de uma experiência que nos atinge com a contundência de uma imprevista bofetada.

As nossas bem solidificadas defesas desmoronam ante a sinceridade de um ser que, contrariando as normas mais elementares da prudência e do bom senso, expõe sem reservas todos os meandros de sua alma atormentada. E como ele aborda questões que dizem respeito a todos nós, é como se cada um dos espectadores estivesse em cena fazendo a exumação de seus próprios cadáveres.

O elenco de “O futuro dura muito tempo” reúne novamente dois intérpretes que já dividiram o palco inúmeras vezes. Vanda Lacerda consegue expressar toda a fragilidade de Helène, sua ternura e desejo de compreender e ajudar o atormentado marido. Quanto a Rubens Corrêa, sua atuação é sem dúvida uma das melhores de sua brilhante carreira. É realmente impressionante a capacidade do ator de, mediante um olhar ou simples gesto, transmitir significados que superam qualquer texto articulado.

E é comovente sua entrega total ao personagem, corajosa a ponto de com ele, muitas vezes, propositadamente confundir-se. Mas Rubens não é, ao contrário do que muitos afirmam, um “especialista em personagens loucos”. Ele apenas não nega a parcela de loucura que todo artista genuíno traz dentro de si, utilizando-a como veículo para chegar a determinados abismos e de lá regressar iluminado por inauditas revelações.

Mas estas “revelações” têm que ser compartilhadas com a cenógrafa e figurinista Teca Fichinski e, sobretudo, com o iluminador Paulo César Medeiros. O trabalho deste último, por sinal, é vital para o sucesso da montagem: alternando cores quentes e frias, efeitos de luz e sombra, Medeiros cria uma atmosfera reveladora e asfixiante, que ora envereda para a angústia, ora indica a possibilidade de uma trajetória menos sombria. Trata-se, sem qualquer margem de erro, da mais significativa iluminação da atual temporada.

O FUTURO DURA MUITO TEMPO – Baseado em textos de Louis Althusser. Direção de Márcio Vianna. Com Rubens Corrêa e Vanda Lacerda.

 

 

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