sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

Teatro/CRÍTICA

 

“Max”

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Uma atriz prodigiosa e inesquecível

 

Lionel Fischer

 

Ao perceber que seu companheiro não conseguirá sobreviver por muito tempo ao câncer que o devasta, Ella Gerrick toma a seguinte decisão: tão logo o marido baixar à sepultura assumirá sua identidade e o substituirá no trabalho que ele, apesar de suas precárias condições físicas, ainda continua exercendo – o de operador de guindaste numa fábrica. As razões que a levam a arquitetar o mirabolante plano podem ser resumidas ao temor de se ver reduzida à miséria, sentimento comum a todos os alemães obrigados a conviver com a violência, recessão e inflação galopante na Alemanha pré-nazista.

Uma vez consumada sua metamorfose, Ella Gerrick triunfa sobre a fome, mas em contrapartida sua personalidade vai sendo progressiva e irremediavelmente esfacelada, num processo inexorável como o câncer que vitimara seu marido, com a diferença de que, no seu caso, ao invés da vida a personagem perde sua identidade. É este, em resumo, o enredo de “Max”, de autoria do ator e diretor alemão Manfred Karge. Em cartaz no Teatro Gláucio Gill, a montagem leva a assinatura de Val Folly e tem como única intérprete a atriz paulista Walderez de Barros, que conquistou com esse trabalho o Prêmio Molière de 1990.

Único texto teatral de Manfred Karge, “Max” se estrutura a partir de um duplo absurdo. Em primeiro lugar, torna-se rigorosamente impossível acreditar que uma mulher possa assumir a identidade do marido sem jamais despertar a mínima suspeita, ainda que usando os ternos do finado e copiando seu bigode. Outro fator que provoca assombro é a desenvoltura com que a personagem, que até então se limitara às prendas do lar, opera o tal guindaste, como se essa função pudesse ser exercida sem qualquer preparo prévio.

Mas é possível que o autor tenha pretendido, em última instância, criar uma metáfora da Alemanha atual, que após a queda do muro de Berlim deveria assumir uma única identidade. Pode ser, mas ainda assim os recursos de que se valeu, de tão estapafúrdios e arbitrários, diminuem consideravelmente o impacto de denúncia pretendido.

Responsável por todos os aspectos concernentes à encenação – cenografia, figurinos, iluminação e direção -, Val Folly, recentemente falecido, criou uma cena propositadamente despojada, dando apenas um especial destaque a uma poltrona que, dependendo das circunstâncias, é utilizada como guindaste ou como máquina que a personagem manipula numa outra fábrica.

O caráter grotesco e dramático das marcações é bastante valorizado por uma iluminação que se estrutura em cima de efeitos de luz e sombra, o que reforça a sensação de que a personagem vive imersa num pesadelo do qual parece que jamais irá libertar-se. Outro aspecto positivo da montagem é a precisão dos tempos rítmicos, fundamental quando se trata de um monólogo.

Já detentora de dois outros prêmios Molière – através de “Abajur lilás” e “Madame Blavatsky”, ambas de autoria de seu ex-marido, o dramaturgo Plínio Marcos -, Walderez de Barros pertence ao seleto rol de intérpretes capazes de conferir credibilidade até mesmo a personagens pouco consistentes ou arbitrariamente estruturados, como é o caso desta Ella Gewrrick. Possuidora de uma voz prodigiosa – cuja extensão chega a causar espanto -, de uma expressividade corporal só raramente encontrada no teatro brasileiro e também incapaz de qualquer concessão no sentido de facilitar a tarefa do público no que concerne à apreensão das idéias e sentimentos que procura materializar no palco, a atriz consegue transcender as limitações do texto e valorizar ao máximo a sensível direção de Val Folly. Um trabalho inesquecível, que o público carioca certamente haverá de prestigiar.

MAX – Texto de Manfred Karge. Direção de Val Folly. Com Walderez de Barros. Teatro Gláucio Gill.

 

 

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