Teatro/CRÍTICA
“Sermão da quarta-feira de cinzas”
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Brilhante
pregação na praça
Lionel
Fischer
Tendo como principal proposta exortar cristãos e
não-cristãos a reconhecerem a insignificância do ser humano, “Sermão da
quarta-feira de cinzas”, do padre Antônio Vieira (1608-1697), está em cartaz no
Espaço Cultural Sérgio Porto. A direção é de Moacir Chaves, cabendo a Pedro
Paulo Rangel dar vida ao missionário jesuíta português.
Autor de cerca de duzentos arrebatados e eloqüentes
sermões, melhor tradução do rebuscado estilo barroco do século XVII, Antônio
Vieira utilizava muitas vezes a catequese como um pretexto para abordar temas
mundanos, como política e colonização. No presente caso, porém, o que está em
causa é uma aguda reflexão sobre a atitude humana diante da vida e, sobretudo,
com relação à morte.
Na adaptação de Chaves, Vieira surge como um pregador
que percorre as praças levando sua mensagem. A contemporaneidade do projeto se
explicita nos confetes e serpentinas que enfeitam o cenário e sugerem que a
ação se passa numa quarta-feira de cinzas. Afora isso, há uma passagem em que o
personagem se relaciona com o público como se protagonizasse um programa de
auditório, além da projeção de filmes que reforçam, às vezes ironicamente, o
conteúdo das idéias apresentadas.
O objetivo básico do encenador é possibilitar à
platéia um contraponto a tantas e não raro inúteis pregações contemporâneas
que, sob os mais variados pretextos, jamais ou quase nunca permitem um exame
mais acurado acerca da essência da condição humana. Em vez de teatralizar em
excesso o texto, Chaves conduz a montagem como uma conversa, cujo tema,
progressivamente aprofundado, é também retomado várias vezes com sutis mudanças
de ritmo e de estado de espírito do protagonista. É como se Vieira tentasse
vários caminhos em função da receptividade do “auditório”, valendo-se de
múltiplas imagens e de sua poderosa capacidade de argumentação.
Mas o grande mérito de Moacir Chaves foi o de ter
convencido Pedro Paulo Rangel a fazer o espetáculo. Um dos maiores comediantes
do país, Pepê é também um ator dramático fantástico, capaz de fazer qualquer
papel de forma brilhante. E “Sermão...” possibilita ao intérprete mesclar humor
e dramaticidade, daí resultando um trabalho inesquecível.
Um observador pouco atento poderá ser induzido ao
erro de acreditar que não seriam assim tão grandes as dificuldades enfrentadas
pelo ator para dar vida ao personagem. Afinal, ele parece falar bem mais do que
interpretar o texto. Ocorre, porém, que é justamente no acerto exato do tom que
consiste o principal mérito de Pepê. Em vez de partir para uma linha
arrebatada, exacerbando um possível furor catequético, o ator prioriza a
clareza expositiva, a ela agregando uma malícia que facilita a imediata
cumplicidade – é como se Pepê piscasse o olho para a platéia e a todo momento
dissesse: “Vocês sabem do que eu estou falando”.
Presença absolutamente fascinante em cena, Pepê é um
desses atores que amesquinham adjetivos. Dicção perfeita, apuradíssima noção de
ritmo, expressivo e convincente em todos os momentos, o intérprete demonstra
mais uma vez o enorme talento que possui. E também sua elegância e
generosidade, pois ao receber os aplausos na noite de estréia fez absoluta
questão de reparti-los com a atriz Kelzy Ecard, que diz apenas uma frase e atua
como contra-regra.
O cenário de Fernando Mello da Costa reproduz de
forma correta uma pracinha de pedras portuguesas. O figurino, também de sua
autoria, aproxima apropriadamente as duas épocas – Vieira usa relógio e uma
roupa atual, sobre a qual uma capa sugere que o personagem “também” pertence ao
século XVII. A trilha sonora de Tato Taborda segue o mesmo processo de
aproximação: pouco antes de o espetáculo começar, marchinhas carnavalescas se
fazem ouvir, mais tarde substituídas por cantos litúrgicos. A iluminação de Aurélio
de Simoni enfatiza com sensibilidade os climas propostos pelo texto e direção.
SERMÃO
DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS – Texto do padre Antônio Vieira. Direção de Moacir
Chaves. Com Pedro Paulo Rangel e Kelzy Ecard. Espaço Cultural Sérgio Porto.
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