As sombras e o mundo contemporâneo
Mariana Schmitz
Um breve histórico
Há controvérsias sobre o local de origem da tradição do Teatro de Sombras, mas certamente foi no Oriente que este fenômeno encontrou o contexto adequado para o seu surgimento e desenvolvimento, tornando-se um evento incorporado às práticas artísticas das sociedades em que aparece e desenvolvendo-se também enquanto tradição cultural.
Na China, uma das mais prováveis origens do Teatro de Sombras, encontramos uma relação íntima do fenômeno das sombras com a Ópera Chinesa. Pode-se perceber também a nítida relação das sombras com o universo mítico ancestral do povo chinês. Ainda na China encontramos exímios manipuladores, dotados de um invejável apuro técnico, capazes de manipular inúmeras silhuetas, totalmente articuladas, ao mesmo tempo.
A Turquia, com o seu original Karagoz, traz na essência da sua tradição de sombras uma intensa manifestação popular, onde aparecem as inovações no uso da palavra, a sátira política e social como temática e o improviso como fonte de criação. Ainda que o Karagoz possa ser configurado como uma forma popular de diversão, ligada às datas comemorativas e festejos da sociedade, ele representa também um desejo sincero de expressar artisticamente a existência do homem no mundo e suas angústias e paixões diante deste mundo.
Na Índia, outra provável origem do fenômeno, encontramos a manifestação do Teatro de Sombras intimamente ligado à vida religiosa do povo, sendo que muitos dos temas utilizados são de origem religiosa, ou são histórias antigas já incorporadas ao universo mítico do povo. Os manipuladores cantam e recitam além de manipular as silhuetas, sempre acompanhados por instrumentos musicais. Nesse contexto, o Teatro de Sombras tem como objetivo despertar no espectador o prazer estético, efeito alcançado também através da presença dos personagens cômicos e do espaço reservado pelo manipulador ao improviso, o que garante uma constante atualização da temática e da relação das sombras com o público.
Na ilha de Java encontramos a tradição dos Dalang, manipuladores que confeccionam e são responsáveis tanto pelas silhuetas quanto pela integridade dos temas abordados na tradição das sombras. Os Dalang devem possuir um repertório vasto de "Lakan", enredos existentes para o Teatro de Sombras, e são vistos não somente como artistas, mas como intermediários entre os homens e os Deuses, sendo assim muito respeitados pela sua experiência e sabedoria. Mais que uma diversão, o Teatro de Sombras javanês é um encontro entre arte e filosofia cuja relação com a cultura local é intrínseca. Sempre representa o triunfo do bem contra o mal e traz também uma parte reservada para as improvisações e o humor.
Atualmente, o Teatro de Sombras oriental tem sido influenciado pelas mudanças técnicas vindas principalmente do Ocidente, como por exemplo a utilização de lâmpadas elétricas ao invés de lamparinas a óleo, a utilização de toca-fitas ao invés da orquestra ao vivo, o foco móvel e múltiplo e a tela também móvel. Estas alterações promoveram outra ordem de mudanças como a formação do manipulador, que hoje não necessita mais de um treinamento tão exigente, uma vez que as silhuetas perderam boa parte das articulações e a maioria dos manipuladores não atua mais individualmente.
Técnica e expressividade
Tecnicamente, difere muito das outras formas de expressão artístico-cênica, utilizando elementos que tornam esta tradição um fenômeno com características únicas. A tríade técnica essencial do Teatro de Sombras é configurada pela existência de um foco luminoso, uma tela e uma silhueta, isto é, um objeto cuja sombra é projetada na tela. A partir desta simples combinação o artista constrói um outro mundo, um mundo repleto de magia. Segundo Lescot,
A imaterialidade da sombra lhe dá um caráter mágico. Seguindo o jogo imposto no recorte pela relação com a fonte luminosa, a vida de uma silhueta pode assumir dimensões muito expressivas. (LESCOT, 1986: 265).
A expressividade da silhueta, bem como a expressividade da linguagem enquanto conjunto é estabelecida de maneira singular, tanto na relação foco/silhueta, quanto na relação manipulador/foco e manipulador/silhueta. O investimento em cada um dos elementos independentemente sugere um tipo diferente de expressividade, estando a critério do manipulador esta escolha. Seja qual for a opção do artista, a linguagem das sombras sempre estará ligada a uma visão do mundo e da existência que supera um simples decalque da realidade. O lirismo e universo onírico estão sempre presentes, pois a sombra enquanto elemento imaterial, conduz a uma visão poética da realidade, uma visão expressa através da metáfora que a própria sombra representa.
A representação está mais intimamente relacionada com a imaginação do que com a racionalidade, o que pode ser interpretado como explicação para a estranheza que esta linguagem causa no Ocidente, onde o mais confortável é interpretar a realidade logicamente. Segundo Montecchio, o problema na relação entre o Teatro de Sombras e o Ocidente foi a transposição ocorrida desta linguagem, do Oriente para o Ocidente, sem que existisse uma releitura da sua essência.
Visto como uma espécie de "vestido muito justo", nunca foi objeto de uma total redefinição tanto no que se refere à forma quanto ao que se refere ao conteúdo. Persistiu como uma espécie de anomalia antropológica-teatral: arte da ilusão pré-cinematográfica, ou brinquedo para as crianças. (MONTECCHIO, 1922).
A partir disso é possível perceber que houve, nesta transposição, uma perda significativa de sentido. Enquanto que no Oriente a essência deste fenômeno já está deteminada culturalmente e a sua forma está intrinsicamente ligada à maneira como os povos Vêem e recriam o mundo, no Ocidente o Teatro de Sombras encontrou-se solitário e anulado no seu sentido mais profundo e poético.
Enquanto que no Oriente ele pouuía valores filosóficos, religiosos e culturais muito claros, no Ocidente o Teatro de Sombras foi convertido num mero divertimento, um espetáculo visualmente interessante porém destituído de significado que ligasse sua essência à sua manifestação concreta. A sua expressão formal foi transportada, já que este conjunto de significados, que lhe conferiam importância dentro das culturas orientais nas quais se manifestava, não pôde acompanhar a transposição. Então, O Ocidente recebe o Teatro de Sombras como uma simples manifestação de imagens projetadas numa tela.
Dessa maneira, o Teatro de Sombras passou a ser visto como um "primo pobre" da fotografia e do então recém-nascido cinema. A partir do rápido desenvolvimento que ambas as técnicas obtiveram, o Teatro de Sombras foi esquecido e relegado a simples diversão infantil.
Atualmente, a situação do Teatro de Sombras, enquanto manifestação artística na sociedade ocidental contemporânea, reflete muito desse processo de descoberta e esquecimento sofrido ao longo dos anos. Desconhecido do grande público e visto por boa parte da classe teatral como mero recurso visual, é utilizado como acessório-enfeite em espetáculos de linguagem e estética distantes do lirismo intrínseco à linguagem das sombras.
Autonomia perdida
Entretanto, apesar do contexto mostrar-se desfavorável ao desenvolvimento dessa prática, alguns grupos isolados na Europa e nas Américas pesquisam este tipo de linguagem seriamente, procurando restituir-lhe a autonomia perdida. Num mundo onde a informação é transmitida numa velocidade sem precedentes, onde as imagens são utilizadas mais como meio de venda e alienação que como meio de alimentar o universo imaginário e filosófico do ser humano, onde poderá encaixar-se o Teatro de Sombras com toda a sua delicadeza formal, o seu lirismo sugestivo, a sua poesia essencial?
O lugar do Teatro de Sombras não é ao lado do cinema, competindo por um espectador ávido, faminto por uma corrida de imagens que lhe absorva totalmente. O Teatro de Sombras deve buscar a sua essência e deve acima de tudo admitir que mesmo acompanhando avanços técnicos e temáticos, ele está ligado a um outro tipo de relação entre ser humano e mundo, uma relação tão esquecida atualmente como ele próprio.
Segundo Roland Schohn, a relação entre espectador e tela no Teatro de Sombras e no cinema, são muito diferentes.
Diferentemente do cinema, que faz de tudo para provocar a adesão completa do espectador à ilusão, o espetáculo de sombras convida o público ao prazer frágil de jogar com a ilusão a partir dos signos de uma presença escondida. Este sutil fluxo e refluxo da ilusão, esta exacerbação de emoção de um mundo inacessível, no exato momento em que a miragem parece sobrepôr-se à realidade dá ao espetáculo de sombras a riqueza e a profundidade do fazer teatral. (SCHOHN, 1986).
Esta diferença, que distancia o espetáculo de sombras do cinema, mas aproxima-o do teatro, leva-nos a um outro tipo de reflexão. O que há no teatro que falta no cinema? Que relação é estabelecida entre público e ator no teatro que não pode ser estabelecida pela furiosa tela do cinema? A relação da presença física do ator. O evento simultâneo que envolve ator e espectador numa partilha conjunta de uma mesma experiência. E esta relação o Teatro de Sombras possui, intrinsicamente ligado à sua essência. Segundo Annie Gilles, apesar da estranheza causada por esta relação, o Teatro de Sombras tem nessa característica, algo a seu favor.
Enfim, apesar da separação que a tela estabelece entre o público e os profissionais do teatro, toda representação do Teatro de Sombras implica sua presença simultânea, uma comunicação entre ator e público, um trabalho teatral. (GILLES, 1986).
O Teatro de Sombras parece, atualmente, encontrar nos solitários e poucos artistas dedicados a ele uma nova chance de ranascimento, uma possibilidade de renovação técnica, formal e filosófica. Existe agora a possibilidade de que a linguagem das sombras finalmente encontre uma razão para a sua manifestação no Ocidente, e de que, enfim, restitua o seu conteúdo artístico, lírico, onírico e mágico novamente.
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Artigo extraído da revista Cadernos de teatro nº 171/2004.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Emily Dickinson
(1830-1886)
"À exceção de Kafka, não lembro de nenhum escritor que tenha expressado o desespero com tanta força e constância quanto Emily Dickinson". (Harold Bloom).
* * *
Emily Elizabeth Dickinson nasceu em Amherst, Massachusetts, em 10 de dezembro de 1830. Começou seus estudos numa escola local e, aos 17 anos, se matriculou no Mount Holyoke Female Seminary, um colégio para moças que abandonou menos de um ano depois, alegando problemas de saúde. Após essa experiência, optou pela reclusão e foi então que começou a escrever. Publicou seu primeiro poema no periódico Springfield Republican.
Em uma das poucas viagens que realizou, a poeta apaixonou-se pelo reverendo Charles Wadsworth, um amor que nunca foi correspondido. Dickinson viveu grande parte de sua vida na casa paterna, em um quase isolamento físico, e enfrentou diversas crises depressivas. As pessoas mais próximas da poeta foram seus irmãos, Lavinia e Austin, e a mulher dele, Susan Gilbert, que além de amigos eram parceiros intelectuais. Emily morreu de nefrite, em 1886, praticamente desconhecida do público. Após seus falecimento, a família encontrou entre seus pertences mais de 1.750 poemas, escritos a partir de 1850.
* * *
A seguir, coloco aqui alguns poemas curtos, todos desprovidos de títulos, traduzidos por Ivo Bender.
* * *
Eu fui um pintassilgo, nada mais;
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.
Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama.
* * *
Se o mar, uma vez rasgado,
Outro, mais além, revelar
E esse, ainda outro, e os três
Forem suposição apenas
De mares periódicos
Dessapossados de praias,
À beira dos mares do vir-a-ser,
Eis aí a Eternidade.
* * *
Há uma certa obliqüidade
Na luz das tardes hibernais,
Que oprime feito o peso
Dos Cânticos, nas catedrais.
Com celeste golpe nos fere
E não lhe achamos a cicatriz,
Apenas uma diferença interna,
Lá, onde jazem os sentidos.
Inalterável, essa luz
É signo de desesperança;
É aflição majestosa
Dos altos ares baixando.
Quando chega, fica atenta a paisagem
E não mais respiram as sombras;
Quando parte, é como a distância
Que no olhar da morte se encontra.
* * *
Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa -
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.
Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.
Mais seguro é galopar cruzando um cemitériio
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.
O "eu", por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
É um assassino escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores, é o menor.
* * *
Ao varrer o sagrado desvão
Denominado Memória,
Escolhe uma vassoura reverente
E faz em silêncio o teu trabalho.
Será um labor de surpresas -
Além da própria idenditade,
Outros interlocutores
São uma possibilidade.
Nesses domínios é nobre a poeira,
Deixe que repouse intocada -
Não tens como removê-la,
Mas ela pode silenciar-te.
* * *
Banir a mim de mim mesma,
Tivera eu esse dom!
Inexpugnável fosse a minha fortaleza,
Ante toda a audácia.
Uma vez, porém, que eu mesma me assalto,
Como terei paz
A não ser sujeitando
A consciência?
E desde que somos monarcas um para o outro,
Como poderei alcançá-lo
A não ser abdicando
De mim mesma?
* * *
Morri pela beleza, mas estava apenas
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.
Perguntou-me, baixinho, o que me matara:
"A Beleza", respondi.
"A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos".
E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.
____________________________
(1830-1886)
"À exceção de Kafka, não lembro de nenhum escritor que tenha expressado o desespero com tanta força e constância quanto Emily Dickinson". (Harold Bloom).
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Emily Elizabeth Dickinson nasceu em Amherst, Massachusetts, em 10 de dezembro de 1830. Começou seus estudos numa escola local e, aos 17 anos, se matriculou no Mount Holyoke Female Seminary, um colégio para moças que abandonou menos de um ano depois, alegando problemas de saúde. Após essa experiência, optou pela reclusão e foi então que começou a escrever. Publicou seu primeiro poema no periódico Springfield Republican.
Em uma das poucas viagens que realizou, a poeta apaixonou-se pelo reverendo Charles Wadsworth, um amor que nunca foi correspondido. Dickinson viveu grande parte de sua vida na casa paterna, em um quase isolamento físico, e enfrentou diversas crises depressivas. As pessoas mais próximas da poeta foram seus irmãos, Lavinia e Austin, e a mulher dele, Susan Gilbert, que além de amigos eram parceiros intelectuais. Emily morreu de nefrite, em 1886, praticamente desconhecida do público. Após seus falecimento, a família encontrou entre seus pertences mais de 1.750 poemas, escritos a partir de 1850.
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A seguir, coloco aqui alguns poemas curtos, todos desprovidos de títulos, traduzidos por Ivo Bender.
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Eu fui um pintassilgo, nada mais;
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.
Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama.
* * *
Se o mar, uma vez rasgado,
Outro, mais além, revelar
E esse, ainda outro, e os três
Forem suposição apenas
De mares periódicos
Dessapossados de praias,
À beira dos mares do vir-a-ser,
Eis aí a Eternidade.
* * *
Há uma certa obliqüidade
Na luz das tardes hibernais,
Que oprime feito o peso
Dos Cânticos, nas catedrais.
Com celeste golpe nos fere
E não lhe achamos a cicatriz,
Apenas uma diferença interna,
Lá, onde jazem os sentidos.
Inalterável, essa luz
É signo de desesperança;
É aflição majestosa
Dos altos ares baixando.
Quando chega, fica atenta a paisagem
E não mais respiram as sombras;
Quando parte, é como a distância
Que no olhar da morte se encontra.
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Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa -
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.
Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.
Mais seguro é galopar cruzando um cemitériio
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.
O "eu", por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
É um assassino escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores, é o menor.
* * *
Ao varrer o sagrado desvão
Denominado Memória,
Escolhe uma vassoura reverente
E faz em silêncio o teu trabalho.
Será um labor de surpresas -
Além da própria idenditade,
Outros interlocutores
São uma possibilidade.
Nesses domínios é nobre a poeira,
Deixe que repouse intocada -
Não tens como removê-la,
Mas ela pode silenciar-te.
* * *
Banir a mim de mim mesma,
Tivera eu esse dom!
Inexpugnável fosse a minha fortaleza,
Ante toda a audácia.
Uma vez, porém, que eu mesma me assalto,
Como terei paz
A não ser sujeitando
A consciência?
E desde que somos monarcas um para o outro,
Como poderei alcançá-lo
A não ser abdicando
De mim mesma?
* * *
Morri pela beleza, mas estava apenas
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.
Perguntou-me, baixinho, o que me matara:
"A Beleza", respondi.
"A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos".
E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.
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terça-feira, 27 de julho de 2010
Robert Brustein
O norte-americano Robert Brustein, nascido em 1927 (não sei se ainda está vivo), é um dos mais importantes críticos e professores de seu país, autor de inúmeros ensaios e livros, sendo o mais conhecido O Teatro de Protesto, do qual extraímos vários segmentos para colocar neste blog. Mas agora vou citar alguns trechos do prefácio do referido volume, assinado pelo autor, que acho que vale a pena serem conhecidos. (Lionel Fischer).
* * *
"Se o teatro de comunhão atinge o clímax com um sentimento de desintegração espiritual, o Teatro de Protesto começa com esse mesmo sentimento".
"Nietzche continua sendo a influência filosófica mais fecundante do Teatro de Protesto, o intelecto pelo qual quase todos os dramaturgos modernos devem aferir a própria envergadura. Quando Nietzche declarou a morte de Deus, estava igualmente anunciando a morte de todos os valores tradicionais. O homem só poderia criar novos valores tornando-se ele próprio Deus: a única alternativa para o niilismo estava na revolta e no protesto".
"O moderno dramaturgo é, essencialmente, um rebelde metáfísico, não um revolucionário prático; sejam quais forem suas convicções políticas, sua arte é a expressão de uma condição, de um estado espiritual. Na verdade, é um militante do ideal, um individualista anárquico, mais preocupado com o impossível do que com o possível; e seu descontentamento amplia-se às próprias raízes da existência. A própria obra de arte converte-se num gesto subversivo - uma reconstrução mais imaginativa de um mundo caótico e desordenado".
"O Teatro de Protesto não é um teatro popular, nem os seus dramaturgos estão muito interessandos em instruir as classes médias".
"Mesmo quando o dramaturgo rebelde não está em exílio geográfico, sente-se como um estrangeiro, uma vez que perdeu seu sentimento de pertencer a uma coletividade".
"É o conflito entre idéia e ação - entre concepção e execução - que forma a dialética central do drama moderno".
"A revolta messiânica ocorre quando o dramaturgo se insurge contra Deus e tenta ocupar o Seu lugar: o sacerdote contempla sua imagem no espelho. A revolta social ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as convenções, a moral e os valores do organismo social: o sacerdote volta o espelho para a sua platéia. A revolta existencial ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as condições de sua existência: o sacerdote volta o espelho para o vazio".
"Como malfeitor, o herói messiânico deseja matar Deus e destruir a antiga ordem; como benfeitor, deseja edificar uma ordem sua. À semelhança de Prometeu, desafia os céus por amor do homem...mas, tal como Moisés, Cristo, Buda, Brama e Confúcio, tenta formar novas leis, representando o papel de um salvador, com os meios de salvação ao seu alcance. E, como a maior parte dos salvadores, sofre o destino do bode expiatório às mãos da multidão: a traição cometida contra o herói messiânico fornece o clímax dramático do teatro messiânico, que, sucintamente, é uma dramatização da busca romântica da fé".
"O rebelde social raramente sugere qualquer alternativa nítida para as coisas que gostaria de destruir".
"Os dramaturgos burgueses mediam seu êxito pela capacidade de arrancar lágrimas da platéia, uma faculdade que os seus dramas, segundo Coleridge, tinham em comum com a cebola".
"Enquanto a revolta messiânica é potente e positiva, a revolta existencial é impotente e desesperada. Os dramaturgos messiânicos fazem seus personagens sobre-humanos: os existenciais os tornam sub-humanos. Os primeiros exageram o âmbito da liberdade humana; os segundos, da escravidão humana".
O norte-americano Robert Brustein, nascido em 1927 (não sei se ainda está vivo), é um dos mais importantes críticos e professores de seu país, autor de inúmeros ensaios e livros, sendo o mais conhecido O Teatro de Protesto, do qual extraímos vários segmentos para colocar neste blog. Mas agora vou citar alguns trechos do prefácio do referido volume, assinado pelo autor, que acho que vale a pena serem conhecidos. (Lionel Fischer).
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"Se o teatro de comunhão atinge o clímax com um sentimento de desintegração espiritual, o Teatro de Protesto começa com esse mesmo sentimento".
"Nietzche continua sendo a influência filosófica mais fecundante do Teatro de Protesto, o intelecto pelo qual quase todos os dramaturgos modernos devem aferir a própria envergadura. Quando Nietzche declarou a morte de Deus, estava igualmente anunciando a morte de todos os valores tradicionais. O homem só poderia criar novos valores tornando-se ele próprio Deus: a única alternativa para o niilismo estava na revolta e no protesto".
"O moderno dramaturgo é, essencialmente, um rebelde metáfísico, não um revolucionário prático; sejam quais forem suas convicções políticas, sua arte é a expressão de uma condição, de um estado espiritual. Na verdade, é um militante do ideal, um individualista anárquico, mais preocupado com o impossível do que com o possível; e seu descontentamento amplia-se às próprias raízes da existência. A própria obra de arte converte-se num gesto subversivo - uma reconstrução mais imaginativa de um mundo caótico e desordenado".
"O Teatro de Protesto não é um teatro popular, nem os seus dramaturgos estão muito interessandos em instruir as classes médias".
"Mesmo quando o dramaturgo rebelde não está em exílio geográfico, sente-se como um estrangeiro, uma vez que perdeu seu sentimento de pertencer a uma coletividade".
"É o conflito entre idéia e ação - entre concepção e execução - que forma a dialética central do drama moderno".
"A revolta messiânica ocorre quando o dramaturgo se insurge contra Deus e tenta ocupar o Seu lugar: o sacerdote contempla sua imagem no espelho. A revolta social ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as convenções, a moral e os valores do organismo social: o sacerdote volta o espelho para a sua platéia. A revolta existencial ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as condições de sua existência: o sacerdote volta o espelho para o vazio".
"Como malfeitor, o herói messiânico deseja matar Deus e destruir a antiga ordem; como benfeitor, deseja edificar uma ordem sua. À semelhança de Prometeu, desafia os céus por amor do homem...mas, tal como Moisés, Cristo, Buda, Brama e Confúcio, tenta formar novas leis, representando o papel de um salvador, com os meios de salvação ao seu alcance. E, como a maior parte dos salvadores, sofre o destino do bode expiatório às mãos da multidão: a traição cometida contra o herói messiânico fornece o clímax dramático do teatro messiânico, que, sucintamente, é uma dramatização da busca romântica da fé".
"O rebelde social raramente sugere qualquer alternativa nítida para as coisas que gostaria de destruir".
"Os dramaturgos burgueses mediam seu êxito pela capacidade de arrancar lágrimas da platéia, uma faculdade que os seus dramas, segundo Coleridge, tinham em comum com a cebola".
"Enquanto a revolta messiânica é potente e positiva, a revolta existencial é impotente e desesperada. Os dramaturgos messiânicos fazem seus personagens sobre-humanos: os existenciais os tornam sub-humanos. Os primeiros exageram o âmbito da liberdade humana; os segundos, da escravidão humana".
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Náufragos"
.......................
A dor de existir
Lionel Fischer
Como todos sabemos, aqueles que habitam este curioso planeta podem ser enquandrados, a grosso modo, em duas categorias: aqueles que seguem o mesmo, reto e imutável trilho ditado pela moral, pelas convenções e premissas que interessam àqueles que detêm o poder, ou uns poucos que se arriscam a transpor essas cerceadoras fronteiras, embora desconhecendo por completo as paragens que estão à sua espera. Estes últimos normalmente são catalogados como loucos. Mas de fato o seriam? Ou será que podemos encará-los como pessoas que, nessa espécie de terra-de-ninguém, ainda assim insistem em caminhar, mesmo que eventualmente se perdendo, mas certamente buscando traçar uma pista?
No presente caso, estamos diante de dois homens que se recusaram a fazer dos passos convencionais o roteiro obrigatório dos seus. Portanto, nada mais lógico que tenham sido excluídos de nossa salutar sociedade e submetidos a bárbaras torturas, prosaicamente denominadas "procedimentos médicos", em instituições psiquiátricas. Mas um dia ambos escapam da pavorosa prisão e saem pelas ruas, como no passado o fizeram por infinitas paragens Dom Quixote e Sancho Pança, não necessariamente para enfrentar moinhos de vento, mas para se confrontar com eles mesmos e com o mundo que os cerca.
Eis, em resumo, o enredo de "Náufragos", do dramaturgo italiano Massimo Bavastro, que encerra na próxima sexta-feira sua temporada no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Com tradução de Nicola Lama e direção de Alessandra Vannucci, a montagem tem elenco formado por Arthur Schreinert (Dom Quixote) e Marcelo Aquino (Sancho Pança) - por razões que não cabe aqui detalhar, Arthur Schreinert substituiu Nicolo Lama no espetáculo que assistimos.
E este, por sinal, certamente deve causar espanto e gerar incertezas no espectador. Sim, pois aqui não se trata de uma tentativa de materializar na cena reencarnações dos dois célebres personagens criados por Cervantes, e assim avaliar como agiriam no mundo atual. Muito pelo contrário. E se estamos diante de duas almas indefesas, sujeitas à humilhação constante, que eventualmente dançam uma dança lenta e irreal e cantam músicas que pouca gente conhece, o que interessa são os seus murmúrios que se insinuam pelos cantos, pelas escadarias de cobre, pelas consciências adormecidas e intactas. Como as nossas, de uma maneira geral.
Em última instância, quem são esses andrajosos que parecem realizar trágicas orgias sobre a campa das próprias sepulturas? Certamente eles representam a muitos de nós, cuja insatisfação nos levou muitas vezes a indagar: de que serve, com a lama até o pescoço, manter limpas as unhas nas pontas dos dedos? E talvez por isso - ao menos no meu caso - me identifiquei tanto com os personagens, e creio que muitos espectadores também o fizeram. Agora, como lidar com a dor de existir, aí trata-se de uma questão pessoal, mas sem dúvida inadiável.
Valendo-se de marcações ousadas e imprevistas, surpreendentes alterações rítmicas e de um universo gestual impregnado de beleza e tragicidade, a encenadora Alessandra Vannuci nos oferece um espetáculo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público - ou ao menos pela parcela de público que não encara o teatro como couvert de inevitáveis pizzas. E isto também se deve à ótima atuação dos intérpretes, que exibem não apenas vastos recursos expressivos, mas também notável capacidade de se entregar apaixonadamente aos complexos personagens aos quais dão vida.
Na equipe técnica, destacamos com total entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Marcelo Aquino (figurinos), Paolo Vivaldi (trilha sonora), Fred Tolipan (iluminação) e Nicola Lama (tradução).
NÁUFRAGOS - Texto de Massimo Bavastro. Direção de Alessandra Vannucci. Com Marcelo Aquino e Arthur Schreinert. Teatro Maria Clara Machado. Sexta-feira, 21h.
"Náufragos"
.......................
A dor de existir
Lionel Fischer
Como todos sabemos, aqueles que habitam este curioso planeta podem ser enquandrados, a grosso modo, em duas categorias: aqueles que seguem o mesmo, reto e imutável trilho ditado pela moral, pelas convenções e premissas que interessam àqueles que detêm o poder, ou uns poucos que se arriscam a transpor essas cerceadoras fronteiras, embora desconhecendo por completo as paragens que estão à sua espera. Estes últimos normalmente são catalogados como loucos. Mas de fato o seriam? Ou será que podemos encará-los como pessoas que, nessa espécie de terra-de-ninguém, ainda assim insistem em caminhar, mesmo que eventualmente se perdendo, mas certamente buscando traçar uma pista?
No presente caso, estamos diante de dois homens que se recusaram a fazer dos passos convencionais o roteiro obrigatório dos seus. Portanto, nada mais lógico que tenham sido excluídos de nossa salutar sociedade e submetidos a bárbaras torturas, prosaicamente denominadas "procedimentos médicos", em instituições psiquiátricas. Mas um dia ambos escapam da pavorosa prisão e saem pelas ruas, como no passado o fizeram por infinitas paragens Dom Quixote e Sancho Pança, não necessariamente para enfrentar moinhos de vento, mas para se confrontar com eles mesmos e com o mundo que os cerca.
Eis, em resumo, o enredo de "Náufragos", do dramaturgo italiano Massimo Bavastro, que encerra na próxima sexta-feira sua temporada no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Com tradução de Nicola Lama e direção de Alessandra Vannucci, a montagem tem elenco formado por Arthur Schreinert (Dom Quixote) e Marcelo Aquino (Sancho Pança) - por razões que não cabe aqui detalhar, Arthur Schreinert substituiu Nicolo Lama no espetáculo que assistimos.
E este, por sinal, certamente deve causar espanto e gerar incertezas no espectador. Sim, pois aqui não se trata de uma tentativa de materializar na cena reencarnações dos dois célebres personagens criados por Cervantes, e assim avaliar como agiriam no mundo atual. Muito pelo contrário. E se estamos diante de duas almas indefesas, sujeitas à humilhação constante, que eventualmente dançam uma dança lenta e irreal e cantam músicas que pouca gente conhece, o que interessa são os seus murmúrios que se insinuam pelos cantos, pelas escadarias de cobre, pelas consciências adormecidas e intactas. Como as nossas, de uma maneira geral.
Em última instância, quem são esses andrajosos que parecem realizar trágicas orgias sobre a campa das próprias sepulturas? Certamente eles representam a muitos de nós, cuja insatisfação nos levou muitas vezes a indagar: de que serve, com a lama até o pescoço, manter limpas as unhas nas pontas dos dedos? E talvez por isso - ao menos no meu caso - me identifiquei tanto com os personagens, e creio que muitos espectadores também o fizeram. Agora, como lidar com a dor de existir, aí trata-se de uma questão pessoal, mas sem dúvida inadiável.
Valendo-se de marcações ousadas e imprevistas, surpreendentes alterações rítmicas e de um universo gestual impregnado de beleza e tragicidade, a encenadora Alessandra Vannuci nos oferece um espetáculo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público - ou ao menos pela parcela de público que não encara o teatro como couvert de inevitáveis pizzas. E isto também se deve à ótima atuação dos intérpretes, que exibem não apenas vastos recursos expressivos, mas também notável capacidade de se entregar apaixonadamente aos complexos personagens aos quais dão vida.
Na equipe técnica, destacamos com total entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Marcelo Aquino (figurinos), Paolo Vivaldi (trilha sonora), Fred Tolipan (iluminação) e Nicola Lama (tradução).
NÁUFRAGOS - Texto de Massimo Bavastro. Direção de Alessandra Vannucci. Com Marcelo Aquino e Arthur Schreinert. Teatro Maria Clara Machado. Sexta-feira, 21h.
quinta-feira, 22 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Caminhando entre contos, palavras e amores"
.......................................................
Sensível e diversificada caminhada
Lionel Fischer
"Aonde está o limite entre sonho e ilusão? Tolice e bondade? Amor e paixão? Desejo e responsabilidade? Onde, e como, reconhecer a passagem do limite que leva as pessoas a chegarem ao desespero, ao preconceito, ao prazer de sofrer pelo outro, e até mesmo ao suicídio?". Extraído do programa distribuído ao público, estas foram as premissas que levaram a diretora russa (radicada no Brasil) Elena Konstantinovna a criar o espetáculo "Caminhando entre contos, palavras e amores", em cartaz na Sala Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim.
A partir de dois contos de Anton Tchecov ("Do diário de uma jovem" e "Personalidade enigmática"), um de Nikolai Leskov ("Um tolo") e finalmente "Acontecimento", de Vsevolodov M. Garshin, otimamente traduzidos por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, a montagem chega à cena com elenco formado por Flavia Tolledo e Gabriel Garcia (Cia. de Teatro Literário), acompanhados do violinista Alexei Henriques, que faz a ligação entre os contos e eventualmente sublinha determinados climas emocionais.
De forma bastante resumida, os quatro contos abordam as ansiedades de uma jovem em relação ao sexo oposto ("Do diário de uma jovem"), a frivolidade da alma feminina ("Personalidade enigmática"), a trajetória de um jovem por todos considerado um imbecil ("Um tolo") e uma dilacerada história de amor entre um jovem burguês e uma prostituta ("Acontecimento"). E sem entrar em maiores detalhes, cumpre registrar não apenas a excelência das obras escolhidas, mas sua total sintonia com as premissas que originaram o presente espetáculo.
Com relação à montagem, Elena Konstantinovna (ao que parece também responsável pela adaptação dos contos) impõe à cena uma dinâmica que mescla, com total propriedade, narração e interpretação, não raro praticamente simultâneas. Tal recurso, ainda que já bastante utilizado, cria uma dificuldade adicional para os intérpretes, pois a todo momento eles têm que "entrar" e "sair" de seus personagens. Mas ambos conseguem atingir um resultado que prende a atenção da platéia desde o primeiro momento.
Gabriel Garcia se entrega com paixão aos personagens que interpreta, conseguindo materializá-los em suas diversas singularidades. Apenas sugeriria ao ator que, em dados momentos, utilizasse um menor volume vocal, pois às vezes este se afigura como excessivo. Quanto a Flavia Tolledo, possuidora de belíssima voz e forte presença cênica, a atriz convence tanto nas passagens engraçadas como naquelas em que o trágico predomina - neste particular, sua interpretação da prostituta é simplesmente impecável, extraindo da personagem tudo que ela pode oferecer. Ao violino, Alexei Henriques contribui de forma decisiva na criação das variadas atmosferas que permeiam a montagem.
No complemento da ficha técnica, são corretos os trabalhos de Barbara Barbosa (cenografia), Vera Zotova e Elena Konstantinovna (figurinos) e Luis Carlos Gomes (iluminação), cabendo destacar a ótima preparação vocal do elenco feita pela encenadora.
CAMINHANDO ENTRE CONTOS, PALAVRAS E AMORES - Textos de Tchecov, Leskove e Garshin. Direção de Elena Konstantinovna. Com Gabriel Garcia e Flavia Tolledo. Porão da Laura Alvim. Terças e quartas, 20h30.
"Caminhando entre contos, palavras e amores"
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Sensível e diversificada caminhada
Lionel Fischer
"Aonde está o limite entre sonho e ilusão? Tolice e bondade? Amor e paixão? Desejo e responsabilidade? Onde, e como, reconhecer a passagem do limite que leva as pessoas a chegarem ao desespero, ao preconceito, ao prazer de sofrer pelo outro, e até mesmo ao suicídio?". Extraído do programa distribuído ao público, estas foram as premissas que levaram a diretora russa (radicada no Brasil) Elena Konstantinovna a criar o espetáculo "Caminhando entre contos, palavras e amores", em cartaz na Sala Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim.
A partir de dois contos de Anton Tchecov ("Do diário de uma jovem" e "Personalidade enigmática"), um de Nikolai Leskov ("Um tolo") e finalmente "Acontecimento", de Vsevolodov M. Garshin, otimamente traduzidos por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, a montagem chega à cena com elenco formado por Flavia Tolledo e Gabriel Garcia (Cia. de Teatro Literário), acompanhados do violinista Alexei Henriques, que faz a ligação entre os contos e eventualmente sublinha determinados climas emocionais.
De forma bastante resumida, os quatro contos abordam as ansiedades de uma jovem em relação ao sexo oposto ("Do diário de uma jovem"), a frivolidade da alma feminina ("Personalidade enigmática"), a trajetória de um jovem por todos considerado um imbecil ("Um tolo") e uma dilacerada história de amor entre um jovem burguês e uma prostituta ("Acontecimento"). E sem entrar em maiores detalhes, cumpre registrar não apenas a excelência das obras escolhidas, mas sua total sintonia com as premissas que originaram o presente espetáculo.
Com relação à montagem, Elena Konstantinovna (ao que parece também responsável pela adaptação dos contos) impõe à cena uma dinâmica que mescla, com total propriedade, narração e interpretação, não raro praticamente simultâneas. Tal recurso, ainda que já bastante utilizado, cria uma dificuldade adicional para os intérpretes, pois a todo momento eles têm que "entrar" e "sair" de seus personagens. Mas ambos conseguem atingir um resultado que prende a atenção da platéia desde o primeiro momento.
Gabriel Garcia se entrega com paixão aos personagens que interpreta, conseguindo materializá-los em suas diversas singularidades. Apenas sugeriria ao ator que, em dados momentos, utilizasse um menor volume vocal, pois às vezes este se afigura como excessivo. Quanto a Flavia Tolledo, possuidora de belíssima voz e forte presença cênica, a atriz convence tanto nas passagens engraçadas como naquelas em que o trágico predomina - neste particular, sua interpretação da prostituta é simplesmente impecável, extraindo da personagem tudo que ela pode oferecer. Ao violino, Alexei Henriques contribui de forma decisiva na criação das variadas atmosferas que permeiam a montagem.
No complemento da ficha técnica, são corretos os trabalhos de Barbara Barbosa (cenografia), Vera Zotova e Elena Konstantinovna (figurinos) e Luis Carlos Gomes (iluminação), cabendo destacar a ótima preparação vocal do elenco feita pela encenadora.
CAMINHANDO ENTRE CONTOS, PALAVRAS E AMORES - Textos de Tchecov, Leskove e Garshin. Direção de Elena Konstantinovna. Com Gabriel Garcia e Flavia Tolledo. Porão da Laura Alvim. Terças e quartas, 20h30.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Festa selvagem na Era do jazz"
............................................
Decadência e permissividade
Lionel Fischer
Tendo por base o poema "The wild party", do norte-americano Joseph M. March, já levado à cena na Broadway na forma de um musical, Paulo Afonso de Lima fez uma adaptação da obra e também assina a dramaturgia e direção do espetáculo, que mantém uma estrutura musical e pode ser visto no Teatro Ipanema, interpretado por Ronaldo Dal'Bianco (Burrs), Simone Rosa (Queenie), Diego Fonseca (Black), Paola Lopes (Kate), Lele Mendonza (Dolores), Reynaldo Machado (Don), Daniela Schmitz (Madeleine), Daruína Oliveira (Mae), Mariana Milani (Nadine), Emerson Espíndola (Jackie), Adriana Bandeira (Sally), Cristiano Morais (Oscar), Franco Kuster (Phill), Alfredo Garcês (Goldberg) e Lu Baratz (Mestre de Cerimônias).
Ambientada em Nova Iorque, em 1928, a peça gira em torno de uma festa a qual comparecem vários e diversificados personagens. O objetivo da tal festa não fica muito claro, o que equivale a dizer que não cheguei a compreender exatamente os objetivos do autor. Posso, no máximo, supor que pretendeu criar um quadro de decadência e permissividade, já que no ano seguinte os Estados Unidos entrariam em total colapso financeiro - guardadas as devidas proporções, estaríamos diante de uma espécie de "Baile da Ilha Fiscal", final de uma época, o que poderia justificar o fato de todos os personagens (ou quase todos) se permitirem todos os excessos e se desfazerem de suas máscaras, já que mantê-las seria inútil.
O que acabo de dizer se resume, apenas, a algumas conjecturas, sujeitas, portanto, a todos os enganos. Mas seja como for, o fato é que, embora potencialmente interessante, a idéia acaba aos poucos perdendo sua possível contundência, pois o texto se alonga em demasia, é muitas vezes repetitivo e só muito raramente algum personagem diz algo que nos provoque uma emoção genuína ou uma reflexão mais pertinente.
Quanto ao espetáculo, Paulo Afonso de Lima impõe à cena uma dinâmica criativa e vigorosa, cabendo destacar as passagens em que os personagens se imobilizam, criando quadros-vivos, como a sugerir fotos de um álbum de retratos. No que concerne às coreografias, cumpre destacar o ótimo trabalho realizado por Adriana Bandeira, executado com eficiência pelo elenco.
Já as músicas, só algumas poderiam se destacadas, sendo que muitas soam um tanto parecidas. E no que se refere ao canto, os atores exibem performances um tanto desiguais, o mesmo ocorrendo no que diz respeito às interpretações - e aqui isto é perfeitamente compreensível em função do grande número de profissionais em cena. Mas que fique bem claro que a maioria exibe bom potencial, que certamente poderá ser melhor avaliado em uma peça que permita atuações não tão fragmentadas.
No complemento da ficha técnica, Cibele Vidal e Paulo Afonso de Lima respondem por uma excelente cenografia, que atende a todas as exigências da montagem, cabendo ainda destacar os ótimos figurinos criados por Mary Martini e a expressiva iluminação de Ericeira Júnior, sendo corretos os arranjos musicais de Rafael Pereira.
FESTA SELVAGEM NA ERA DO JAZZ - Texto de Joseph March. Adaptação, dramaturgia e direção de Paulo Afonso de Lima. Com grande elenco. Teatro Ipanema. Sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h30.
"Festa selvagem na Era do jazz"
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Decadência e permissividade
Lionel Fischer
Tendo por base o poema "The wild party", do norte-americano Joseph M. March, já levado à cena na Broadway na forma de um musical, Paulo Afonso de Lima fez uma adaptação da obra e também assina a dramaturgia e direção do espetáculo, que mantém uma estrutura musical e pode ser visto no Teatro Ipanema, interpretado por Ronaldo Dal'Bianco (Burrs), Simone Rosa (Queenie), Diego Fonseca (Black), Paola Lopes (Kate), Lele Mendonza (Dolores), Reynaldo Machado (Don), Daniela Schmitz (Madeleine), Daruína Oliveira (Mae), Mariana Milani (Nadine), Emerson Espíndola (Jackie), Adriana Bandeira (Sally), Cristiano Morais (Oscar), Franco Kuster (Phill), Alfredo Garcês (Goldberg) e Lu Baratz (Mestre de Cerimônias).
Ambientada em Nova Iorque, em 1928, a peça gira em torno de uma festa a qual comparecem vários e diversificados personagens. O objetivo da tal festa não fica muito claro, o que equivale a dizer que não cheguei a compreender exatamente os objetivos do autor. Posso, no máximo, supor que pretendeu criar um quadro de decadência e permissividade, já que no ano seguinte os Estados Unidos entrariam em total colapso financeiro - guardadas as devidas proporções, estaríamos diante de uma espécie de "Baile da Ilha Fiscal", final de uma época, o que poderia justificar o fato de todos os personagens (ou quase todos) se permitirem todos os excessos e se desfazerem de suas máscaras, já que mantê-las seria inútil.
O que acabo de dizer se resume, apenas, a algumas conjecturas, sujeitas, portanto, a todos os enganos. Mas seja como for, o fato é que, embora potencialmente interessante, a idéia acaba aos poucos perdendo sua possível contundência, pois o texto se alonga em demasia, é muitas vezes repetitivo e só muito raramente algum personagem diz algo que nos provoque uma emoção genuína ou uma reflexão mais pertinente.
Quanto ao espetáculo, Paulo Afonso de Lima impõe à cena uma dinâmica criativa e vigorosa, cabendo destacar as passagens em que os personagens se imobilizam, criando quadros-vivos, como a sugerir fotos de um álbum de retratos. No que concerne às coreografias, cumpre destacar o ótimo trabalho realizado por Adriana Bandeira, executado com eficiência pelo elenco.
Já as músicas, só algumas poderiam se destacadas, sendo que muitas soam um tanto parecidas. E no que se refere ao canto, os atores exibem performances um tanto desiguais, o mesmo ocorrendo no que diz respeito às interpretações - e aqui isto é perfeitamente compreensível em função do grande número de profissionais em cena. Mas que fique bem claro que a maioria exibe bom potencial, que certamente poderá ser melhor avaliado em uma peça que permita atuações não tão fragmentadas.
No complemento da ficha técnica, Cibele Vidal e Paulo Afonso de Lima respondem por uma excelente cenografia, que atende a todas as exigências da montagem, cabendo ainda destacar os ótimos figurinos criados por Mary Martini e a expressiva iluminação de Ericeira Júnior, sendo corretos os arranjos musicais de Rafael Pereira.
FESTA SELVAGEM NA ERA DO JAZZ - Texto de Joseph March. Adaptação, dramaturgia e direção de Paulo Afonso de Lima. Com grande elenco. Teatro Ipanema. Sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h30.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Ilusão e Realidade
Martin Esslin
O drama - o teatro - é uma ação mimética, uma imitação do mundo real em termos lúdicos, em termos de faz-de-conta. O drama que vemos no teatro e igualmente na Tv ou no cinema é uma ilusão elaboradamente manufaturada. Entretanto, se o compararmos com outras artes que também produzem ilusão, o drama - um texto dramático transformado em espetáculo - contém um percentual muito mais alto de realidade.
Tomemos a pintura. Ela produz a ilusão de uma paisagem, de uma casa - a semelhança de um ser humano no caso de um retrato - e os únicos elementos reais que contém são as tintas e a tela. Uma peça também produz uma ilusão, digamos, de um Hamlet no castelo de Elsinore. Porém aqui Hamlet, o jovem que vemos no palco - morto desde há muito como figura histórica, na realidade talvez sem jamais ter existido, e sendo, por isso mesmo, mera ficção criada pela imaginação do autor - é retratado por um jovem, um ator que na realidade é um homem moço.
E ele se senta em uma cadeira que realmente é uma cadeira. A cadeira supostamente está colocada em algum canto de um castelo dinamarquês há muitos séculos atrás, mas nem por isso deixa de ser uma cadeira. O drama representado, portanto, em contraste com todas as outras artes que criam ilusão, contém, por assim dizer, maior proporção de realidade.
Tem havido apresentações de Hamlet até mesmo no verdadeiro castelo de Elsinore e, nessas ocasiões, a cadeira em que Hamlet se sentava era efetivamente uma cadeira colocada em algum canto do verdadeiro castelo de Elsinore. E vejam o que acontece se transportamos o âmbito do drama para fora do teatro e entramos na televisão ou no cinema: seqüências inteiras da ação dramática poderão ser representadas e gravadas na locação real da peça.
Essa me parece ser uma das principais características do drama e um de seus elementos mais fascinantes: a de que uma peça, no momento em que é representada, constitui uma fusão do totalmente imaginário - o produto da imaginação de um escritor fixado de uma vez por todas e, estritamente nesse sentido, já letra morta - com elementos da realidade viva dos atores, suas roupas, a mobília que os cerca, os objetos que manuseiam, tais como espadas, garfos ou facas.
Cada apresentação de uma peça escrita há séculos pode, assim, ser vista como uma ressurreição: as palavras e ações mortas são reincarnadas pela presença viva dos atores. Não é de espantar que o jargão do mundo do teatro fale da apresentação de uma velha peça como um revival.
No estudo puramente acadêmico do drama, a atenção tende muito naturalmente a focalizar-se no elemento mais acessível para a análise: o texto, a peça como literatura. A qualidade dos outros elementos, o espetáculo, a iluminação, o magnetismo dos atores, é muito mais fugaz e era, antes da invenção da documentação mecânica, praticamente perdida em sua totalidade.
No entanto, esses são os elementos que desempenham papel decisivo na atração do público ao teatro (ou ao cinema ou à apresentação televisada), e se realmente analisássemos o impacto da experiência teatral no público, seria constatado, estou certo, constituírem esses elementos a base do prazer que a platéia tira da experiência teatral.
No teatro com atores vivos, é esse aspecto da fusão de um elemento fico (o texto) com um elemento fluido (os atores) que torna cada apresentação de cada espetáculo uma obra de arte inteiramente distinta - mesmo no caso de carreira longa de uma mesma peça com o mesmo elenco, o mesmo cenário, a mesma luz etc.
No teatro clássico chinês, no qual os textos normalmente apresentados são todos muito bem conhecidos da platéia, e também extraordinariamente longos, só trechos dos textos completos são apresentados, porque as platéias, que aceitam o texto como ponto pacífico, comparecem principalmente para ver de que modo os principais atores os irão representar. Do mesmo modo, o nosso próprio drama clássico, e o de Shakespeare acima de qualquer outro, transformou-se em um gabarito segundo o qual avaliamos nossos atores: vamos ver Hamlet pela enésima vez porque estamos interessados em saber como o Hamlet de Scofield difere do de Gieguld, do de Barton, do de O'Toole etc.
Na última década a função do diretor como fator ponderável na parte variável da experiência teatral acrescentou um novo elemento às atrações oferecidas pela ida ao teatro para rever um texto altamente consagrado, fazendo com que hoje em dia saiamos de casa para ver o Hamlet, Rei Lear ou o Macbeth de Peter Hall, de Peter Brook, de Giorgio Strehler ou de Roger Planchon.
Nem tudo no teatro, portanto, é ilusão. Não estamos realmente vendo Macbeth engajado em uma batalha do lado de fora de seu castelo em Dunsinane, mas estamos no teatro para ver Sir John Gieguld ou Richard Burton, e efetivamente vemos tais atores, os homens em si, ouvindo sua voz, o que nos dá um prazer particular.
Além do mais, quando os vemos combater com Macduff, admiramos a habilidade dos dois atores, sabemos que Macbeth não vai ser realmente morto, porém realmente vemos dois seres humanos batendo-se em duelo. Quando a fama dos atores ingleses do tempo de Shakespeare já se havia espalhado pela Europa, companhias ambulantes inglesas excursionavam por vários países, particularmente a Alemanha.
As platéias não compreendiam o texto, porém pasmavam ante a habilidade com a qual aqueles atores lutavam e dançavam, pagando o dinheiro de suas entradas principalmente para apreciar seus efeitos acrobáticos e sua graça na dança. A peça mais popular era O judeu de Malta, de Christopher Marlowe, no qual o grande vilão caía em um caldeirão cheio de azeite fervendo com extraordinária destreza acrobática.
Sob esse aspecto, o teatro se aproxima bastante de uma outra área na qual o instinto lúdico do homem se manifesta - o esporte. O teatro pode ser encarado como um espetáculo esportivo, que dá prazer ao espectador tanto quanto a quem o pratica. E quando se vê o trabalho de um ator realmente extraordinário como Lawrence Olivier, qualquer um é capaz de perceber que o seu evidente prazer nos aspectos físicos da representação é um componente tão importante do impacto que causa no espectador quanto sua forma de conceber e executar a arte da representação.
É no ator que os elementos da realidade e da ilusão se encontram: será que vamos ao teatro para ver Othelo interpretado por Olivier, ou que vamos para ver Olivier interpretar Othelo? Existe uma tensão criativa entre o personagem fictício imaginado pelo dramaturgo e o homem que empresta a essa ficção nascida da imaginação do autor sua sólida realidade física, mais - e esse é um "mais" importantíssimo - um acréscimo de imaginação, um acréscimo de invenção poética de gesto, ação, entonação, precisão de ritmo.
Já foi dito, e com absoluta correção, que existe uma poesia no teatro, tanto quanto uma poesia do teatro. Poesia no teatro é a linguagem poética criada pelo dramaturgo; porém muito da poesia do teatro nasce de um olhar, uma entrada, uma pausa. E estes são, na maioria dos casos, criação dos atores ou dos diretores.
___________________________
Fragmento do artigo inserido no livro Uma anatomia do drama, Zahar Editores, 1976, tradução de Barbara Heliodora.
Martin Esslin
O drama - o teatro - é uma ação mimética, uma imitação do mundo real em termos lúdicos, em termos de faz-de-conta. O drama que vemos no teatro e igualmente na Tv ou no cinema é uma ilusão elaboradamente manufaturada. Entretanto, se o compararmos com outras artes que também produzem ilusão, o drama - um texto dramático transformado em espetáculo - contém um percentual muito mais alto de realidade.
Tomemos a pintura. Ela produz a ilusão de uma paisagem, de uma casa - a semelhança de um ser humano no caso de um retrato - e os únicos elementos reais que contém são as tintas e a tela. Uma peça também produz uma ilusão, digamos, de um Hamlet no castelo de Elsinore. Porém aqui Hamlet, o jovem que vemos no palco - morto desde há muito como figura histórica, na realidade talvez sem jamais ter existido, e sendo, por isso mesmo, mera ficção criada pela imaginação do autor - é retratado por um jovem, um ator que na realidade é um homem moço.
E ele se senta em uma cadeira que realmente é uma cadeira. A cadeira supostamente está colocada em algum canto de um castelo dinamarquês há muitos séculos atrás, mas nem por isso deixa de ser uma cadeira. O drama representado, portanto, em contraste com todas as outras artes que criam ilusão, contém, por assim dizer, maior proporção de realidade.
Tem havido apresentações de Hamlet até mesmo no verdadeiro castelo de Elsinore e, nessas ocasiões, a cadeira em que Hamlet se sentava era efetivamente uma cadeira colocada em algum canto do verdadeiro castelo de Elsinore. E vejam o que acontece se transportamos o âmbito do drama para fora do teatro e entramos na televisão ou no cinema: seqüências inteiras da ação dramática poderão ser representadas e gravadas na locação real da peça.
Essa me parece ser uma das principais características do drama e um de seus elementos mais fascinantes: a de que uma peça, no momento em que é representada, constitui uma fusão do totalmente imaginário - o produto da imaginação de um escritor fixado de uma vez por todas e, estritamente nesse sentido, já letra morta - com elementos da realidade viva dos atores, suas roupas, a mobília que os cerca, os objetos que manuseiam, tais como espadas, garfos ou facas.
Cada apresentação de uma peça escrita há séculos pode, assim, ser vista como uma ressurreição: as palavras e ações mortas são reincarnadas pela presença viva dos atores. Não é de espantar que o jargão do mundo do teatro fale da apresentação de uma velha peça como um revival.
No estudo puramente acadêmico do drama, a atenção tende muito naturalmente a focalizar-se no elemento mais acessível para a análise: o texto, a peça como literatura. A qualidade dos outros elementos, o espetáculo, a iluminação, o magnetismo dos atores, é muito mais fugaz e era, antes da invenção da documentação mecânica, praticamente perdida em sua totalidade.
No entanto, esses são os elementos que desempenham papel decisivo na atração do público ao teatro (ou ao cinema ou à apresentação televisada), e se realmente analisássemos o impacto da experiência teatral no público, seria constatado, estou certo, constituírem esses elementos a base do prazer que a platéia tira da experiência teatral.
No teatro com atores vivos, é esse aspecto da fusão de um elemento fico (o texto) com um elemento fluido (os atores) que torna cada apresentação de cada espetáculo uma obra de arte inteiramente distinta - mesmo no caso de carreira longa de uma mesma peça com o mesmo elenco, o mesmo cenário, a mesma luz etc.
No teatro clássico chinês, no qual os textos normalmente apresentados são todos muito bem conhecidos da platéia, e também extraordinariamente longos, só trechos dos textos completos são apresentados, porque as platéias, que aceitam o texto como ponto pacífico, comparecem principalmente para ver de que modo os principais atores os irão representar. Do mesmo modo, o nosso próprio drama clássico, e o de Shakespeare acima de qualquer outro, transformou-se em um gabarito segundo o qual avaliamos nossos atores: vamos ver Hamlet pela enésima vez porque estamos interessados em saber como o Hamlet de Scofield difere do de Gieguld, do de Barton, do de O'Toole etc.
Na última década a função do diretor como fator ponderável na parte variável da experiência teatral acrescentou um novo elemento às atrações oferecidas pela ida ao teatro para rever um texto altamente consagrado, fazendo com que hoje em dia saiamos de casa para ver o Hamlet, Rei Lear ou o Macbeth de Peter Hall, de Peter Brook, de Giorgio Strehler ou de Roger Planchon.
Nem tudo no teatro, portanto, é ilusão. Não estamos realmente vendo Macbeth engajado em uma batalha do lado de fora de seu castelo em Dunsinane, mas estamos no teatro para ver Sir John Gieguld ou Richard Burton, e efetivamente vemos tais atores, os homens em si, ouvindo sua voz, o que nos dá um prazer particular.
Além do mais, quando os vemos combater com Macduff, admiramos a habilidade dos dois atores, sabemos que Macbeth não vai ser realmente morto, porém realmente vemos dois seres humanos batendo-se em duelo. Quando a fama dos atores ingleses do tempo de Shakespeare já se havia espalhado pela Europa, companhias ambulantes inglesas excursionavam por vários países, particularmente a Alemanha.
As platéias não compreendiam o texto, porém pasmavam ante a habilidade com a qual aqueles atores lutavam e dançavam, pagando o dinheiro de suas entradas principalmente para apreciar seus efeitos acrobáticos e sua graça na dança. A peça mais popular era O judeu de Malta, de Christopher Marlowe, no qual o grande vilão caía em um caldeirão cheio de azeite fervendo com extraordinária destreza acrobática.
Sob esse aspecto, o teatro se aproxima bastante de uma outra área na qual o instinto lúdico do homem se manifesta - o esporte. O teatro pode ser encarado como um espetáculo esportivo, que dá prazer ao espectador tanto quanto a quem o pratica. E quando se vê o trabalho de um ator realmente extraordinário como Lawrence Olivier, qualquer um é capaz de perceber que o seu evidente prazer nos aspectos físicos da representação é um componente tão importante do impacto que causa no espectador quanto sua forma de conceber e executar a arte da representação.
É no ator que os elementos da realidade e da ilusão se encontram: será que vamos ao teatro para ver Othelo interpretado por Olivier, ou que vamos para ver Olivier interpretar Othelo? Existe uma tensão criativa entre o personagem fictício imaginado pelo dramaturgo e o homem que empresta a essa ficção nascida da imaginação do autor sua sólida realidade física, mais - e esse é um "mais" importantíssimo - um acréscimo de imaginação, um acréscimo de invenção poética de gesto, ação, entonação, precisão de ritmo.
Já foi dito, e com absoluta correção, que existe uma poesia no teatro, tanto quanto uma poesia do teatro. Poesia no teatro é a linguagem poética criada pelo dramaturgo; porém muito da poesia do teatro nasce de um olhar, uma entrada, uma pausa. E estes são, na maioria dos casos, criação dos atores ou dos diretores.
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Fragmento do artigo inserido no livro Uma anatomia do drama, Zahar Editores, 1976, tradução de Barbara Heliodora.
quinta-feira, 15 de julho de 2010
Uma lembrança leva a outra, a outra...
Lionel Fischer
Outro dia uma aluna me pediu para citar as três coisas de que mais gostava na vida - excetuando filhos, amigos, amigas, teatro, música etc. E, curiosamente, respondi sem um segundo de hesitação: criança, cachorro e velho - de ambos os sexos, naturalmente. E realmente nunca fui "mordido" por nenhuma dessas paixões. Enfim...achei que a jovem aluna se daria por satisfeita com a minha resposta, mas jovens alunas nunca se dão por satisfeitas (graças a Deus!) e ela quis saber minha relação com os idosos. Então lhe contei a seguinte história:
Corria o ano de 1989 e eu trabalhava no Globo como repórter, crítico teatral e também fazia resenhas literárias. Um dia propus ao editor da época, cujo nome não me lembro, fazer uma matéria de comportamento sobre idosos que são colocados em asilos - e aqui não importa detalhar as razões de tal confinamento.
Então, numa tarde domingo - Dia de Visitas - fui num asilo na Tijuca, e para minha surpresa só encontrei os velhinhos e as velinhas, todos arrumadinhos à espera de visitas que não se consumariam. Enquanto os entrevistava, de vez em quando um ia até a porta e espiava o longo corredor arborizado que conduzia ao portão de entrada, na vã expectativa de ver surgir o rosto amado de um filho, uma filha, um parente, um amigo, ou fosse quem fosse. Passados alguns minutos, o velhinho (ou velhinha) retornava para seu lugar, o olhar perdido, completamente órfão de afetos que certamente merecia.
Diante de um quadro que cada vez mais assumia, para mim, contornos trágicos, deixei de lado a entrevista - que acabou sendo publicada - e comecei a contar histórias, a propor que cantássemos, enfim, comecei a agir quase que como um moderno animador de festas infantis - só faltou o som. E no fundo, estava mesmo diante de crianças, que pouco a pouco foram aderindo às minhas propostas com enternecedor entusiasmo.
Quando chegou a hora de ir embora, e para meu pasmo absoluto, todos me pediram que voltasse, alegando que haviam passado horas maravilhosas comigo. Diante disto, perguntei à dona do estabelecimento se efetivamente poderia voltar; não como repórter, mas como...enfim, como alguém que ainda tinha plena consciência do que significa compaixão.
E assim foi feito. Durante um ano, uma vez por mês, chegava lá aos domingos (agora levando som) e fazíamos uma farra: dançávamos, cantávamos, todos contavam suas histórias - fragmentadas, naturalmente, pois a memória não é muito amiga do tempo. Findo esse ano, não voltei mais lá. Durante esse período, alguns velhinhos se foram, outros entraram em seus lugares e a vida seguia - ou deixava de seguir - seu curso.
Findo o breve relato, a obsessiva aluna me fez não uma, mas duas perguntas, que, curiosamente, nada tinham a ver com o teatro: ela queria saber por que a esmagadora maioria de canções de amor são tristes e qual a minha canção de amor favorita. Quanto à primeira pergunta, respondi o óbvio: quem está amando...está amando, e por estar amando não vai querer perder um segundo deste amor componto - admito que essa resposta pode gerar controvérsias. Mas, enfim, foi a que dei.
Quanto à segunda pergunta, não hesitei um segundo: sempre foi e sempre será "Ne me quitte pas", de Jacques Brel, por ele cantada de forma insuperável. A dita aluna não a conhecia e...(MISERICÓRDIA!!!) me pediu para cantá-la. Então, após um momento de hesitação, o fiz discretamente, nas imediações do Tablado, num tom de voz parente próximo do sussurro. Ela achou linda a música, mas como não entendeu uma palavra, me pediu para traduzir a letra. Aí eu declinei delicadamente o convite, adiando-o para uma outra oportunidade.
Curiosamente, passei hoje o dia todo com essa música na cabeça, por razões que desconheço - fosse mais íntimo de meu inconsciente, certamente as conheceria...
Mas certamente muitos de vocês conhecem essa deslumbrante canção, em que um homem faz arrebatadoras declarações de amor a uma mulher e, ao mesmo tempo, ao final de cada estrofe, implora a ela (quatro vezes!!!) para que não o abandone. Quando escutei essa música pela primeira vez, era tão jovem que nem me lembro se já tinha tido uma namorada - mas naquele momento odiei aquela anônima que permanece insensível aos dilacerados apelos que lhe faz o homem. Com o tempo, naturalmente, abençoei essa desalmada, posto que não fosse sua rejeição, a canção não teria sido criada...
E é seu último trecho que mais me toca, pois nele o cara não tem o menor pudor de se entregar completamente, de suplicar, de fazer qualquer concessão que lhe seja exigida, desde que não seja abandonado. Escusado dizer que é total minha identificação com o sujeito, pois também não relutaria um segundo sequer em fazer o mesmo, desde que tomado por idêntica paixão. E caso fosse mesmo rejeitado, faria o luto necessário e seguiria em frente, como sempre fiz - mas não pensem, por obséquio, que as mulheres vivem me mandando embora, porque não é este exatamente o caso.
Enfim...e para não mais alugar vossos belos olhos: reproduzo a seguir o trecho final da música, traduzindo-a para aqueles que AINDA não dominam o idioma de Voltaire.
"Ne me quitte pas (não me abandona)
Je ne veux plus pleurer (eu não quero mais chorar)
Je ne veux plus parler (eu não quero mais falar)
Je me cacherai là (eu me esconderei ali)
À te regarder (a te olhar)
Danser e sourrire (dançar e sorrir)
Et à t'écouter (e a te escutar)
Chanter e puis rire (cantar e depois rir)
Laisse-moi devenir (deixa eu me tornar)
L'ombre de tom ombre (a sombra da tua sombra)
L'ombre de ta main (a sombra da tua mão)
L'ombre de ton chien (a sombra do teu cão)
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas..."
Mas a celerada...quittou o cara...e nós é que lucramos!!!
Beijos em todos!!!
Lionel Fischer
Outro dia uma aluna me pediu para citar as três coisas de que mais gostava na vida - excetuando filhos, amigos, amigas, teatro, música etc. E, curiosamente, respondi sem um segundo de hesitação: criança, cachorro e velho - de ambos os sexos, naturalmente. E realmente nunca fui "mordido" por nenhuma dessas paixões. Enfim...achei que a jovem aluna se daria por satisfeita com a minha resposta, mas jovens alunas nunca se dão por satisfeitas (graças a Deus!) e ela quis saber minha relação com os idosos. Então lhe contei a seguinte história:
Corria o ano de 1989 e eu trabalhava no Globo como repórter, crítico teatral e também fazia resenhas literárias. Um dia propus ao editor da época, cujo nome não me lembro, fazer uma matéria de comportamento sobre idosos que são colocados em asilos - e aqui não importa detalhar as razões de tal confinamento.
Então, numa tarde domingo - Dia de Visitas - fui num asilo na Tijuca, e para minha surpresa só encontrei os velhinhos e as velinhas, todos arrumadinhos à espera de visitas que não se consumariam. Enquanto os entrevistava, de vez em quando um ia até a porta e espiava o longo corredor arborizado que conduzia ao portão de entrada, na vã expectativa de ver surgir o rosto amado de um filho, uma filha, um parente, um amigo, ou fosse quem fosse. Passados alguns minutos, o velhinho (ou velhinha) retornava para seu lugar, o olhar perdido, completamente órfão de afetos que certamente merecia.
Diante de um quadro que cada vez mais assumia, para mim, contornos trágicos, deixei de lado a entrevista - que acabou sendo publicada - e comecei a contar histórias, a propor que cantássemos, enfim, comecei a agir quase que como um moderno animador de festas infantis - só faltou o som. E no fundo, estava mesmo diante de crianças, que pouco a pouco foram aderindo às minhas propostas com enternecedor entusiasmo.
Quando chegou a hora de ir embora, e para meu pasmo absoluto, todos me pediram que voltasse, alegando que haviam passado horas maravilhosas comigo. Diante disto, perguntei à dona do estabelecimento se efetivamente poderia voltar; não como repórter, mas como...enfim, como alguém que ainda tinha plena consciência do que significa compaixão.
E assim foi feito. Durante um ano, uma vez por mês, chegava lá aos domingos (agora levando som) e fazíamos uma farra: dançávamos, cantávamos, todos contavam suas histórias - fragmentadas, naturalmente, pois a memória não é muito amiga do tempo. Findo esse ano, não voltei mais lá. Durante esse período, alguns velhinhos se foram, outros entraram em seus lugares e a vida seguia - ou deixava de seguir - seu curso.
Findo o breve relato, a obsessiva aluna me fez não uma, mas duas perguntas, que, curiosamente, nada tinham a ver com o teatro: ela queria saber por que a esmagadora maioria de canções de amor são tristes e qual a minha canção de amor favorita. Quanto à primeira pergunta, respondi o óbvio: quem está amando...está amando, e por estar amando não vai querer perder um segundo deste amor componto - admito que essa resposta pode gerar controvérsias. Mas, enfim, foi a que dei.
Quanto à segunda pergunta, não hesitei um segundo: sempre foi e sempre será "Ne me quitte pas", de Jacques Brel, por ele cantada de forma insuperável. A dita aluna não a conhecia e...(MISERICÓRDIA!!!) me pediu para cantá-la. Então, após um momento de hesitação, o fiz discretamente, nas imediações do Tablado, num tom de voz parente próximo do sussurro. Ela achou linda a música, mas como não entendeu uma palavra, me pediu para traduzir a letra. Aí eu declinei delicadamente o convite, adiando-o para uma outra oportunidade.
Curiosamente, passei hoje o dia todo com essa música na cabeça, por razões que desconheço - fosse mais íntimo de meu inconsciente, certamente as conheceria...
Mas certamente muitos de vocês conhecem essa deslumbrante canção, em que um homem faz arrebatadoras declarações de amor a uma mulher e, ao mesmo tempo, ao final de cada estrofe, implora a ela (quatro vezes!!!) para que não o abandone. Quando escutei essa música pela primeira vez, era tão jovem que nem me lembro se já tinha tido uma namorada - mas naquele momento odiei aquela anônima que permanece insensível aos dilacerados apelos que lhe faz o homem. Com o tempo, naturalmente, abençoei essa desalmada, posto que não fosse sua rejeição, a canção não teria sido criada...
E é seu último trecho que mais me toca, pois nele o cara não tem o menor pudor de se entregar completamente, de suplicar, de fazer qualquer concessão que lhe seja exigida, desde que não seja abandonado. Escusado dizer que é total minha identificação com o sujeito, pois também não relutaria um segundo sequer em fazer o mesmo, desde que tomado por idêntica paixão. E caso fosse mesmo rejeitado, faria o luto necessário e seguiria em frente, como sempre fiz - mas não pensem, por obséquio, que as mulheres vivem me mandando embora, porque não é este exatamente o caso.
Enfim...e para não mais alugar vossos belos olhos: reproduzo a seguir o trecho final da música, traduzindo-a para aqueles que AINDA não dominam o idioma de Voltaire.
"Ne me quitte pas (não me abandona)
Je ne veux plus pleurer (eu não quero mais chorar)
Je ne veux plus parler (eu não quero mais falar)
Je me cacherai là (eu me esconderei ali)
À te regarder (a te olhar)
Danser e sourrire (dançar e sorrir)
Et à t'écouter (e a te escutar)
Chanter e puis rire (cantar e depois rir)
Laisse-moi devenir (deixa eu me tornar)
L'ombre de tom ombre (a sombra da tua sombra)
L'ombre de ta main (a sombra da tua mão)
L'ombre de ton chien (a sombra do teu cão)
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas..."
Mas a celerada...quittou o cara...e nós é que lucramos!!!
Beijos em todos!!!
Jean Genet ou
O combate com o Teatro
Bernard Dort
Fala-se muito em Genet e muito pouco em sua obra. Quando se comenta a obra é para voltar à personagem Genet, para exaltar a lenda do "asilado, ladrão, mendigo, prisioneiro, pederasta...e artista". Em resumo, não se cessa de canonizar "São Genet". Cada crítico se julga obrigado a refazer, por conta própria e segundo sua medida, o itinerário traçado definitivamente por Sartre. É impossível sair do torniquete: a obra de Genet remete à personagem Genet e esta personagem só existe pela obra. Logo, qualquer crítica parece irrisória e vã: Sartre, afinal, não disse tudo o que havia para dizer sobre o artista Genet como herói de nossa época e antítese do revolucionário Bukharino? E o próprio Genet, em seu Diário de um ladrão, não deu o último retoque a seu auto-retrato?
Uma de suas preocupações essenciais foi certamente a de criar a própria imagem. Seus romances são biografias imaginárias, como também espelhos enganadores a realçar sua imagem. Mas Genet não parou aí. Desde o Diário de um ladrão já nos tinha mostrado o avesso destes espelhos. Talvez seja precisamente o livro de Sartre que lhe tenha permitido sair do torniquete no qual, agora, se fecham seus críticos. Ele próprio reconhece: "Levei algum tempo para me refazer. Fiquei quase incapaz de continuar a escrever...O livro de Sartre criou um vazio que permitiu uma certa deteriorização psicológica. Esta deteriorização permitiu a mediação que me conduziu ao meu teatro".
A mutação teatral
Com exceção de Alta Vigilância, ainda bem próximo de seus romances, e de As Criadas, todo o teatro de Genet é, na verdade, posterior a São Genet, Comediante e Mártir. Desde então Genet deixou de escrever ou, pelo menos, de publicar romances. Assim, sua atividade como dramaturgo coincide, quanto à essência, com uma mutação. O escritor Genet desligou-se, graças à mediação sartriana, da personagem Genet. Embora conservando a mesma temática sua obra mudou de estrutura, de função. E, talvez, de significado. É precisamente o que, à força de supervalorizar a personagem, a crítica deixou de assinalar: nas obras de Claude Bonnefoy e de Jean-Marie Magnan, a parte concedida ao teatro é pequena. E as peças só são lembradas em relação ao universo romanesco. Ora, é compreendendo a distância que separa as peças dos romances de Genet que poderemos entender o seu teatro. Não aproximando este daqueles.
Impõe-se uma primeira verificação: o universo de Genet se alargou. Nos romances ele se restringira ao meio fechado da prisão ou das salas dos fundos dos cafés de Pigalle, onde os homossexuais de Nossa Senhora das Flores exibem seus trejeitos. No palco, cresce vertiginosamente: a princípio, restrito à cela de uma prisão (Alta Vigilância), depois ao quarto da patroa onde as criadas representam sua servidão e sua falsa revolta, ele se estendeu a todo o espaço de uma cidade, do bordel ao quartel-general dos revolucionários, passando por um simulacro do Palais Royal (em O Balcão), em seguida, a um continente fictício: a África de Os Negros. Enfim, a um país real: a Argélia, em luta pela independência, que vem ainda prolongar o "balcão" do reino dos mortos. E, à concentração no tempo, , que era regra, por exemplo, de Pompas Fúnebres, esta longa meditação de Genet, de volta ao necrotério, sobre a morte de João D, sucede o desenrolar da crônica e dos acontecimentos (da colonização à independência) de Os Biombos.
Será necessário nos apressarmos em concluir que, como escrevia Claude Bonnegoy, "Genet se socializava?". Sem dúvida, , "já em As Criadas a relação patrão-empregada envolvia e perturbava a relação amorosa que unia as empregadas à patroa. O Balcão, Os Negros, Os Biombos, são críticas dos preconceitos da justiça, dos poderes, da opressão, do colonialismo. Mas são críticas indiretas, pois Genet dá tudo em bloco e mostra as situações em sua complexidade. Cabe ao espectador concluir". Fazendo do dramaturgo Genet um escritor engajado, corria-se o risco de nada compreender de seu teatro. E, além disso, o risco de justificar alguns dos ataques imbecis de que ele é alvo.
Neste particular, Genet é incisivo, ao afirmar que não escreveu as peças para atacar ou defender quem quer que seja: "Uma coisa deve ser escrita: não se trata de arrazoado sobre a condição das criadas. Suponho que exista um sindicato das empregadas domésticas - isto não é da minha conta. Que minhas peças ajudem os negros, isso não me preocupa. Aliás, não creio nisso. Acredito que a ação, a luta direta contra o colonialismo faz mais pelos negros que uma peça de teatro". Mais que isto, toda peça teatral deste tipo lhe é suspeita. Ela corre o risco de se voltar contra a causa que procura defender. Pois "eis que uma consciência conciliadora não cessa de sugerir aos espectadores: o problema de uma certa desordem - ou mal - sendo solucionado no palco, indica que, na realidade, está abolido. Porque, de acordo com as convenções dramáticas de nossa época, a representação teatral não pode ser senão a representação de um fato. Passemos, pois, a outra coisa e deixemos o nosso coração se encher de orgulho a partir do momento em que tomamos o partido do herói que tentou - e obteve - a solução".
Trata-se, portanto, de fazer uma coisa diferente e não de pretender resolver, pelo teatro, as dificuldades do mundo: "Ora, nenhum problema exposto deveria ser resolvido no imaginário, sobretudo porque a solução dramática corre para uma ordem social acabada. Pelo contrário, que o mal exploda em cena, nos mostre nus, se possível nos deixe perplexos e contando apenas com nossos próprios recursos".
Didatismo ou mágica?
Pode-se, todavia, contornar esta recusa categórica e ver no dramaturgo Genet, se não um escritor engajado, pelo menos um escritor realista - o que é bem diferente. Verificando que numa peça como O Balcão "inúmeros temas tradicionais de Genet, o duplo, o espelho, a sexualidade e, sobretudo, a superioridade do sonho, 'puro e estéril' e no limite da morte, sobre a realidade eficaz mas 'impura e maculada de compromisso' foram relegados ao nível de acidentes de segundo plano", Lucien Goldmann afirma que a obra "tem, no seu conjunto, uma estrutura realista e didática (no sentido brechtiano da palavra)".
Para ele, o "assunto da peça, perfeitamenmte claro, quase didático, é, na realidade, constituído pelas transformações essenciais da sociedade industrial na primeira metade do século". O Balcão seria, assim, uma vasta parábola realista na qual Genet teria (consciente ou inconscientemente) "transposto para o plano literário os grandes transtornos políticos e sociais do século XX e sobretudo para a sociedade ocidental, o aborto da imensa esperança revolucionária que caracterizou as primeiras décadas do século". Lucien Goldmann vê a melhor prova disto no que considera a ação central da peça: "a ascensão do Chefe de Polícia e da Proprietária da casa de ilusões (encarnações particulares daquilo que um sociólogo teria designado mais amplamente como a tecnocracia, encarnações que, entretanto, são acidentais, pois as duas personagens representam os dois aspectos essenciais da mesma organização da empresa e o poder do Estado) - a um prestígio anteriormente reservado à Rainha, ao Juiz e ao General".
Tal interpretação é, certamente, muito engenhosa. Não deixa entretanto de levantar graves objeções. De início, silencia sobre certas personagens de O Balcão: por exemplo, a do Mendigo (do oitavo quadro) e do Escravo (do nono quadro), que eram representados em Paris pelo mesmo ator. Ora, essa dupla pesonagem, que só na aparência tem um papel secundário, preenche uma função essencial: único, com o Enviado do Palácio, a não ser se metamorfosear e a não aceder à glória morta das "imagens" da casa de ilusões, representa, sem dúvida, o poeta, talvez o próprio Genet. Em seguida, esta interpretação reduz a obra a um esquema sócio-histórico por demais vasto e impreciso para que se possa afirmar, como fez Goldmann, que temos com O Balcão a "primeira grande peça brechtiana da literatura francesa", um exemplo de "teatro épico e didático" cujo objetivo seria contar, "através de um plano típico, um devir essencial".
O próprio Goldmann o reconhece de passagem: é unicamente no que tange às "suas transformações na superestrutura" que O Balcão descreve as grandes transformações históricas. Enfim, em vez de realismo épico brechtiano, é apenas de uma grande constatação naturalista, em grande escala, de que se deveria falar. Pois, diferentemente de Brecht, Genet não procura mostrar as causas de tais transformações: contenta-se em apontar os efeitos - e efeitos aparentemente irreversíveis. Enfim, a tentativa de decifração goldmaniana despreza um elemento fundamental da estrutura dramática da obra de Genet: seu caráter de cerimônia e o uso constante do teatro dentro do teatro. Talvez Goldmann pudesse responder a esta objeção afirmando que o referido jogo teatral é justamente o sinal da reificação da sociedade industrial moderna. Confessemos: tal analogia fica bastante vaga e seria válida, sem dúvida, para qualquer sociedade.
______________________________
Fragmento extraído do livro "O teatro e sua realidade", Editora Perspectiva, 1977, tradução de Fernando Peixoto. A leitura total deste artigo - "Genet ou o combate com o Teatro" - permite uma compreensão ampla e profunda da obra do genial dramaturgo francês. Com isso estou sugerindo, muito sutilmente, que adquiram o livro, pois o mesmo também exibe brilhantes ensaios de Dort sobre uma variada gama de temas de suma importância para quem estuda teatro.
O combate com o Teatro
Bernard Dort
Fala-se muito em Genet e muito pouco em sua obra. Quando se comenta a obra é para voltar à personagem Genet, para exaltar a lenda do "asilado, ladrão, mendigo, prisioneiro, pederasta...e artista". Em resumo, não se cessa de canonizar "São Genet". Cada crítico se julga obrigado a refazer, por conta própria e segundo sua medida, o itinerário traçado definitivamente por Sartre. É impossível sair do torniquete: a obra de Genet remete à personagem Genet e esta personagem só existe pela obra. Logo, qualquer crítica parece irrisória e vã: Sartre, afinal, não disse tudo o que havia para dizer sobre o artista Genet como herói de nossa época e antítese do revolucionário Bukharino? E o próprio Genet, em seu Diário de um ladrão, não deu o último retoque a seu auto-retrato?
Uma de suas preocupações essenciais foi certamente a de criar a própria imagem. Seus romances são biografias imaginárias, como também espelhos enganadores a realçar sua imagem. Mas Genet não parou aí. Desde o Diário de um ladrão já nos tinha mostrado o avesso destes espelhos. Talvez seja precisamente o livro de Sartre que lhe tenha permitido sair do torniquete no qual, agora, se fecham seus críticos. Ele próprio reconhece: "Levei algum tempo para me refazer. Fiquei quase incapaz de continuar a escrever...O livro de Sartre criou um vazio que permitiu uma certa deteriorização psicológica. Esta deteriorização permitiu a mediação que me conduziu ao meu teatro".
A mutação teatral
Com exceção de Alta Vigilância, ainda bem próximo de seus romances, e de As Criadas, todo o teatro de Genet é, na verdade, posterior a São Genet, Comediante e Mártir. Desde então Genet deixou de escrever ou, pelo menos, de publicar romances. Assim, sua atividade como dramaturgo coincide, quanto à essência, com uma mutação. O escritor Genet desligou-se, graças à mediação sartriana, da personagem Genet. Embora conservando a mesma temática sua obra mudou de estrutura, de função. E, talvez, de significado. É precisamente o que, à força de supervalorizar a personagem, a crítica deixou de assinalar: nas obras de Claude Bonnefoy e de Jean-Marie Magnan, a parte concedida ao teatro é pequena. E as peças só são lembradas em relação ao universo romanesco. Ora, é compreendendo a distância que separa as peças dos romances de Genet que poderemos entender o seu teatro. Não aproximando este daqueles.
Impõe-se uma primeira verificação: o universo de Genet se alargou. Nos romances ele se restringira ao meio fechado da prisão ou das salas dos fundos dos cafés de Pigalle, onde os homossexuais de Nossa Senhora das Flores exibem seus trejeitos. No palco, cresce vertiginosamente: a princípio, restrito à cela de uma prisão (Alta Vigilância), depois ao quarto da patroa onde as criadas representam sua servidão e sua falsa revolta, ele se estendeu a todo o espaço de uma cidade, do bordel ao quartel-general dos revolucionários, passando por um simulacro do Palais Royal (em O Balcão), em seguida, a um continente fictício: a África de Os Negros. Enfim, a um país real: a Argélia, em luta pela independência, que vem ainda prolongar o "balcão" do reino dos mortos. E, à concentração no tempo, , que era regra, por exemplo, de Pompas Fúnebres, esta longa meditação de Genet, de volta ao necrotério, sobre a morte de João D, sucede o desenrolar da crônica e dos acontecimentos (da colonização à independência) de Os Biombos.
Será necessário nos apressarmos em concluir que, como escrevia Claude Bonnegoy, "Genet se socializava?". Sem dúvida, , "já em As Criadas a relação patrão-empregada envolvia e perturbava a relação amorosa que unia as empregadas à patroa. O Balcão, Os Negros, Os Biombos, são críticas dos preconceitos da justiça, dos poderes, da opressão, do colonialismo. Mas são críticas indiretas, pois Genet dá tudo em bloco e mostra as situações em sua complexidade. Cabe ao espectador concluir". Fazendo do dramaturgo Genet um escritor engajado, corria-se o risco de nada compreender de seu teatro. E, além disso, o risco de justificar alguns dos ataques imbecis de que ele é alvo.
Neste particular, Genet é incisivo, ao afirmar que não escreveu as peças para atacar ou defender quem quer que seja: "Uma coisa deve ser escrita: não se trata de arrazoado sobre a condição das criadas. Suponho que exista um sindicato das empregadas domésticas - isto não é da minha conta. Que minhas peças ajudem os negros, isso não me preocupa. Aliás, não creio nisso. Acredito que a ação, a luta direta contra o colonialismo faz mais pelos negros que uma peça de teatro". Mais que isto, toda peça teatral deste tipo lhe é suspeita. Ela corre o risco de se voltar contra a causa que procura defender. Pois "eis que uma consciência conciliadora não cessa de sugerir aos espectadores: o problema de uma certa desordem - ou mal - sendo solucionado no palco, indica que, na realidade, está abolido. Porque, de acordo com as convenções dramáticas de nossa época, a representação teatral não pode ser senão a representação de um fato. Passemos, pois, a outra coisa e deixemos o nosso coração se encher de orgulho a partir do momento em que tomamos o partido do herói que tentou - e obteve - a solução".
Trata-se, portanto, de fazer uma coisa diferente e não de pretender resolver, pelo teatro, as dificuldades do mundo: "Ora, nenhum problema exposto deveria ser resolvido no imaginário, sobretudo porque a solução dramática corre para uma ordem social acabada. Pelo contrário, que o mal exploda em cena, nos mostre nus, se possível nos deixe perplexos e contando apenas com nossos próprios recursos".
Didatismo ou mágica?
Pode-se, todavia, contornar esta recusa categórica e ver no dramaturgo Genet, se não um escritor engajado, pelo menos um escritor realista - o que é bem diferente. Verificando que numa peça como O Balcão "inúmeros temas tradicionais de Genet, o duplo, o espelho, a sexualidade e, sobretudo, a superioridade do sonho, 'puro e estéril' e no limite da morte, sobre a realidade eficaz mas 'impura e maculada de compromisso' foram relegados ao nível de acidentes de segundo plano", Lucien Goldmann afirma que a obra "tem, no seu conjunto, uma estrutura realista e didática (no sentido brechtiano da palavra)".
Para ele, o "assunto da peça, perfeitamenmte claro, quase didático, é, na realidade, constituído pelas transformações essenciais da sociedade industrial na primeira metade do século". O Balcão seria, assim, uma vasta parábola realista na qual Genet teria (consciente ou inconscientemente) "transposto para o plano literário os grandes transtornos políticos e sociais do século XX e sobretudo para a sociedade ocidental, o aborto da imensa esperança revolucionária que caracterizou as primeiras décadas do século". Lucien Goldmann vê a melhor prova disto no que considera a ação central da peça: "a ascensão do Chefe de Polícia e da Proprietária da casa de ilusões (encarnações particulares daquilo que um sociólogo teria designado mais amplamente como a tecnocracia, encarnações que, entretanto, são acidentais, pois as duas personagens representam os dois aspectos essenciais da mesma organização da empresa e o poder do Estado) - a um prestígio anteriormente reservado à Rainha, ao Juiz e ao General".
Tal interpretação é, certamente, muito engenhosa. Não deixa entretanto de levantar graves objeções. De início, silencia sobre certas personagens de O Balcão: por exemplo, a do Mendigo (do oitavo quadro) e do Escravo (do nono quadro), que eram representados em Paris pelo mesmo ator. Ora, essa dupla pesonagem, que só na aparência tem um papel secundário, preenche uma função essencial: único, com o Enviado do Palácio, a não ser se metamorfosear e a não aceder à glória morta das "imagens" da casa de ilusões, representa, sem dúvida, o poeta, talvez o próprio Genet. Em seguida, esta interpretação reduz a obra a um esquema sócio-histórico por demais vasto e impreciso para que se possa afirmar, como fez Goldmann, que temos com O Balcão a "primeira grande peça brechtiana da literatura francesa", um exemplo de "teatro épico e didático" cujo objetivo seria contar, "através de um plano típico, um devir essencial".
O próprio Goldmann o reconhece de passagem: é unicamente no que tange às "suas transformações na superestrutura" que O Balcão descreve as grandes transformações históricas. Enfim, em vez de realismo épico brechtiano, é apenas de uma grande constatação naturalista, em grande escala, de que se deveria falar. Pois, diferentemente de Brecht, Genet não procura mostrar as causas de tais transformações: contenta-se em apontar os efeitos - e efeitos aparentemente irreversíveis. Enfim, a tentativa de decifração goldmaniana despreza um elemento fundamental da estrutura dramática da obra de Genet: seu caráter de cerimônia e o uso constante do teatro dentro do teatro. Talvez Goldmann pudesse responder a esta objeção afirmando que o referido jogo teatral é justamente o sinal da reificação da sociedade industrial moderna. Confessemos: tal analogia fica bastante vaga e seria válida, sem dúvida, para qualquer sociedade.
______________________________
Fragmento extraído do livro "O teatro e sua realidade", Editora Perspectiva, 1977, tradução de Fernando Peixoto. A leitura total deste artigo - "Genet ou o combate com o Teatro" - permite uma compreensão ampla e profunda da obra do genial dramaturgo francês. Com isso estou sugerindo, muito sutilmente, que adquiram o livro, pois o mesmo também exibe brilhantes ensaios de Dort sobre uma variada gama de temas de suma importância para quem estuda teatro.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Merci"
"Merci"
.................................................
A complexa arte de agradecer
Lionel Fischer
"Merci é uma peça sobre o mundo, o nosso mundo, em que se crê que a vida é uma batalha que precisa ser vencida. 'O vencedor é...', 'Der gewinnwe ist...', 'The winnwe is...'. Em todas as línguas, como uma praga universal. Já o reconhecimento, na questão artística, é uma forma de controle sobre o autor. Uma maneira de domesticá-lo, através da catalogação. A partir dele, não é de bom tom fazer algo diferente daquilo que já foi reconhecido. O texto aborda também, como ponto central, o cerceamento, perpetrado por uma pedagogia violenta e utilitária, da criatividade que toda criança traz em si, daquilo que Pennac chama de luz interior".
Este fragmento, que consta do programa do espetáculo, leva a assinatura do diretor Moacir Chaves. E aqui está citado porque sintetiza de forma irretocável as premissas fundamentais que levaram o autor Daniel Pennac a escrever o monólogo "Merci", um texto ao mesmo tempo irônico e amargo, em cartaz no Oi Futuro, com interpretação a cargo de Ana Barroso.
Em termos de enredo, "Merci" é bastante simples. Tendo sido premiada pelo conjunto de sua obra, uma pintora tece várias conjecturas sobre como fazer o "agradecimento" no momento da entrega do prêmio. No entanto, revelá-las equivaleria a privar o público de uma série de pensamentos que, mesclando humor e perplexidade, em última instância evidenciam o caráter essencialmente conservador e bajulatório que envolve toda premiação.
Mais adiante, porém, a platéia é informada da amarga infância da protagonista, durante a qual foi vítima do cerceamento criativo e da violência pedagógica de seu professor, a que se referiu Moacir Chaves. E é então que essas duas, digamos, partes do texto, ganham unidade, e enfim compreendemos as razões que levam a personagem a ter enorme dificuldade na hora de "agradecer". E a conclusão que chega, que também me abstenho de revelar, é perfeitamente coerente com a postura de um artista verdadeiramente autêntico e fiel àquilo em que acredita.
Com relação ao espetáculo, Moacir Chaves cria uma dinâmica cênica bastante simples, priorizando sabiamente o trabalho da atriz - mas que não se confunda, por favor, simplicidade com banalidade, já que todas as marcas contribuem de forma decisiva para materializar os diversificados conteúdos. E Moacir ratifica aqui, como em geral o faz, sua notável capacidade de extrair ótimos desempenhos dos atores que dirige.
No presente caso, trata-se de Ana Barroso, sua amiga e parceira de muitos trabalhos. E a presente performance, salvo monumental engano de minha parte, talvez seja a melhor já exibida pela atriz. Possuidora de ótima voz, grande carisma e uma inteligência cênica admirável, Ana Barroso consegue valorizar em igual medida tanto as passagens mais engraçadas quanto aquelas em que a amargura predomina. Sem dúvida, uma atuação que se insere entre as melhores da atual temporada.
Na equipe técnica, Sérgio Marimba cria uma cenografia cujo destaque é uma enorme "escultura" de velhas cadeiras e bancos escolares empilhados, causando uma dupla sensação: por um lado, o acúmulo de obras; por outro, a eterna possibilidade de que tudo pode desmoronar a qualquer momento, pois todo verdadeiro artista, ainda que consagrado, está sempre à beira de ser sumariamente rejeitado caso sua próxima criação não atenda às expectativas daqueles que o colocaram em tão alto patamar. Destacamos ainda, e com o mesmo entusiasmo, a expressividade da iluminação de Aurélio de Simoni e da trilha sonora de Tato Taborda, com Inês Salgado assinando o correto figurino e Ana Barroso e Angela Pecego respondendo pela ótima tradução.
MERCI - Texto de Daniel Penac. Direção de Moacir Chaves. Com Ana Barroso. Teatro Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Dois é bom"
............................................
Improviso em cena na Lapa
Lionel Fischer
Sempre fui e sempre serei apaixonado por Improvisação. E são tantas as razões desta paixão que, caso resolvesse enumerá-las todas aqui, fugiria por completo ao presente objetivo, que é o de fazer a crítica do espetáculo "Dois é bom". Seja como for, não custa nada mencionar que fui aluno de improvisação de Maria Clara Machado, no Tablado, durante seis anos (dos 15 aos 21 anos), dei um curso na Funarte sobre o tema, em 2006, ("Improvisação teatral: você sabe realmente o que é isso?") e, de 15 anos para cá, voltei a dar aulas de improvisação no Tablado.
Isto posto, vamos ao que de fato importa. "Dois é bom", em cartaz na Sede da Cia. dos Atores, é uma montagem que acontece de forma sempre improvisada, tendo como mola propulsora uma palavra dita por alguém na platéia - ou seja: ninguém jamais assistirá ao mesmo espetáculo. Na sessão de ontem, a palavra escolhida por um espectador foi "arroz". Então, os atores Ana Paula Novellino e Claudio Amado começaram a improvisar.
Mas, ao contrário do que ocorre normalmente, aqui a palavra "arroz" serve apenas para criar um contexto inicial, que vai sendo desenvolvido e modificado à medida que a improvisação avança, sendo criadas novas situações e, obviamente, novos personagens. Embora não seja uma proposta inédita, ela apresenta muitos desafios, já que não se trata de uma improvisação curta, como normalmente acontece, mas de uma narrativa que dura 60 minutos.
Autores do projeto, Ana Paula Novellino e Claudio Amado (acompanhados pelo músico Tayo Omura) exibem imaginação, humor e bom entrosamento, explorando de forma eficiente os impulsos momentâneos que levam à criação de cenas e personagens. Como única ressalva, mencionaria uma certa lentidão no ritmo do espetáculo, que poderia - e deveria - apresentar maiores variações neste particular, mesmo levando-se em conta que tudo está sendo criado no momento. Seja como for, trata-se de uma montagem corajosa e que, imagino, poderá ganhar maior agilidade com o correr da temporada.
DOIS É BOM - Concepção e atuação de Ana Paula Novellino e Claudio Amado. Sede da Cia. dos Atores. Quarta-feira, 20h. A montagem fica em cartaz até 25 de agosto.
"Dois é bom"
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Improviso em cena na Lapa
Lionel Fischer
Sempre fui e sempre serei apaixonado por Improvisação. E são tantas as razões desta paixão que, caso resolvesse enumerá-las todas aqui, fugiria por completo ao presente objetivo, que é o de fazer a crítica do espetáculo "Dois é bom". Seja como for, não custa nada mencionar que fui aluno de improvisação de Maria Clara Machado, no Tablado, durante seis anos (dos 15 aos 21 anos), dei um curso na Funarte sobre o tema, em 2006, ("Improvisação teatral: você sabe realmente o que é isso?") e, de 15 anos para cá, voltei a dar aulas de improvisação no Tablado.
Isto posto, vamos ao que de fato importa. "Dois é bom", em cartaz na Sede da Cia. dos Atores, é uma montagem que acontece de forma sempre improvisada, tendo como mola propulsora uma palavra dita por alguém na platéia - ou seja: ninguém jamais assistirá ao mesmo espetáculo. Na sessão de ontem, a palavra escolhida por um espectador foi "arroz". Então, os atores Ana Paula Novellino e Claudio Amado começaram a improvisar.
Mas, ao contrário do que ocorre normalmente, aqui a palavra "arroz" serve apenas para criar um contexto inicial, que vai sendo desenvolvido e modificado à medida que a improvisação avança, sendo criadas novas situações e, obviamente, novos personagens. Embora não seja uma proposta inédita, ela apresenta muitos desafios, já que não se trata de uma improvisação curta, como normalmente acontece, mas de uma narrativa que dura 60 minutos.
Autores do projeto, Ana Paula Novellino e Claudio Amado (acompanhados pelo músico Tayo Omura) exibem imaginação, humor e bom entrosamento, explorando de forma eficiente os impulsos momentâneos que levam à criação de cenas e personagens. Como única ressalva, mencionaria uma certa lentidão no ritmo do espetáculo, que poderia - e deveria - apresentar maiores variações neste particular, mesmo levando-se em conta que tudo está sendo criado no momento. Seja como for, trata-se de uma montagem corajosa e que, imagino, poderá ganhar maior agilidade com o correr da temporada.
DOIS É BOM - Concepção e atuação de Ana Paula Novellino e Claudio Amado. Sede da Cia. dos Atores. Quarta-feira, 20h. A montagem fica em cartaz até 25 de agosto.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Eu te amo mesmo assim"
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Musical imperdível na Gávea
Lionel Fischer
"Aqui jaz Nasão, cantor de suaves amores, que pereceu por causa do próprio engenho". (Epitáfio de Ovídio). Mas quem foi Ovídio e o que ele tem a ver com o presente espetáculo, anunciado como um musical sobre o amor e que exibe canções de Cartola, Chico Buarque, Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, João Falcão, Roberto Carlos e Vinicius de Moraes, dentre outros ícones da MPB? Bem, vamos por partes. Comecemos com Ovídio.
Poeta latino, Públio Ovídio Naso nasceu em 20 de março de 43 a.C. em Sulmo, atual Sulmona, em Abruzos (Itália) e morreu em 7 d.C em Tomos, hoje Kustendje (Constança), na Romênia, para onde foi exilado oito anos antes de falecer, por razões até hoje não muito claras. Contrariando a vontade de seu pai, que queria vê-lo seguindo uma carreira administrativa, Ovídio optou pela poesia, legando à humanidade obras geniais, com especial destaque para "Metamorfoses", "Heróides" e "Os Fastos", dentre outras, e uma que justamente origina o presente espetáculo, "A arte de amar", na época considerada imoral. E por quê considerada imoral? Porque se resumia a um verdadeiro tratado sobre sedução e o jogo amoroso.
Estamos, portanto, diante de um projeto que, mesclando as sábias e bem humoradas palavras deste poeta maior com canções que, em muitos casos, são também sábias e bem humoradas, pode ser apreciado no Teatro das Artes. Com elenco formado por Laila Garin e Osvaldo Mil, "Eu te amo mesmo assim" chega à cena com direção de João Sanches, supervisão de João Falcão e adaptação de Jô Abdu - também participam do espetáculo os músicos Tássio Ramos, Ricco Viana, Rick de La Torre e Toninho Van Ahn.
Dividida em três segmentos, no primeiro a montagem nos mostra o que fazer para conquistar o coração amado; no segundo, como preservar uma relação; e finalmente, caso esta relação termine, como devemos agir para esquecer um grande amor. Diante disto, algumas conclusões se impõem. A primeira delas diz respeito à ótima adaptação de Jô Abdu, que fez pouquíssimas alterações no original. A segunda é o perfeito casamento entre o texto e a ótima seleção musical, ao que me parece feita em parceria por João Falcão, Jô Abdu e João Sanches. E este último quesito merece especial destaque, pois promove eventuais e imprevistas quebras no tom do espetáculo - em dados momentos, por exemplo, quando o texto discorre "seriamente" sobre uma questão amorosa, entra uma música cafonérrima, mas em total sintonia com as emoções em causa. Realmente, um achado maravilhoso.
Quanto ao espetáculo, João Sanches impõe à cena uma dinâmica ao mesmo tempo sóbria e divertida, valendo-se de marcações que traduzem de forma exemplar os conteúdos em jogo. Mas isso só se torna possível graças à ótima atuação dos atores/cantores. Tanto nas passagens em que o texto predomina, quanto naquelas em que o canto é o foco, Laila Garin e Osvaldo Mil formam uma dupla de desempenho irretocável. Trabalham tanto o humor quanto os momentos mais sofridos com a mesma eficiência. E além disso, exibem ótima contracena e uma cumplicidade que só se materializa quando os intérpretes confiam plenamente um no outro e na proposta que protagonizam. Possivelmente ainda não muito conhecidos do grande público carioca, tenho absoluta certeza de que, através deste espetáculo, logo atingirão o lugar de destaque que merecem.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta empreitada teatral imperdível - Alexandre Elias (direção musical), Duda Maia (direção de movimento), Kika Lopes (figurinos) e João Sanches (iluminação). Cabe ainda destacar o projeto de sonorização de Branco Ferreira, pois, ao contrário do que muitas vezes ocorre em nossos musicais, aqui a excelente banda toca em um volume que não cobre a voz dos intérpretes.
EU TE AMO MESMO ASSIM - Texto de Ovídio. Adaptação de Jô Abdu. Supervisão de João Falcão. Direção de João Sanches. Com Laila Garin e Osvaldo Mil. Teatro das Artes. Terça e quarta, 21h. Quinta, 17h.
"Eu te amo mesmo assim"
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Musical imperdível na Gávea
Lionel Fischer
"Aqui jaz Nasão, cantor de suaves amores, que pereceu por causa do próprio engenho". (Epitáfio de Ovídio). Mas quem foi Ovídio e o que ele tem a ver com o presente espetáculo, anunciado como um musical sobre o amor e que exibe canções de Cartola, Chico Buarque, Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, João Falcão, Roberto Carlos e Vinicius de Moraes, dentre outros ícones da MPB? Bem, vamos por partes. Comecemos com Ovídio.
Poeta latino, Públio Ovídio Naso nasceu em 20 de março de 43 a.C. em Sulmo, atual Sulmona, em Abruzos (Itália) e morreu em 7 d.C em Tomos, hoje Kustendje (Constança), na Romênia, para onde foi exilado oito anos antes de falecer, por razões até hoje não muito claras. Contrariando a vontade de seu pai, que queria vê-lo seguindo uma carreira administrativa, Ovídio optou pela poesia, legando à humanidade obras geniais, com especial destaque para "Metamorfoses", "Heróides" e "Os Fastos", dentre outras, e uma que justamente origina o presente espetáculo, "A arte de amar", na época considerada imoral. E por quê considerada imoral? Porque se resumia a um verdadeiro tratado sobre sedução e o jogo amoroso.
Estamos, portanto, diante de um projeto que, mesclando as sábias e bem humoradas palavras deste poeta maior com canções que, em muitos casos, são também sábias e bem humoradas, pode ser apreciado no Teatro das Artes. Com elenco formado por Laila Garin e Osvaldo Mil, "Eu te amo mesmo assim" chega à cena com direção de João Sanches, supervisão de João Falcão e adaptação de Jô Abdu - também participam do espetáculo os músicos Tássio Ramos, Ricco Viana, Rick de La Torre e Toninho Van Ahn.
Dividida em três segmentos, no primeiro a montagem nos mostra o que fazer para conquistar o coração amado; no segundo, como preservar uma relação; e finalmente, caso esta relação termine, como devemos agir para esquecer um grande amor. Diante disto, algumas conclusões se impõem. A primeira delas diz respeito à ótima adaptação de Jô Abdu, que fez pouquíssimas alterações no original. A segunda é o perfeito casamento entre o texto e a ótima seleção musical, ao que me parece feita em parceria por João Falcão, Jô Abdu e João Sanches. E este último quesito merece especial destaque, pois promove eventuais e imprevistas quebras no tom do espetáculo - em dados momentos, por exemplo, quando o texto discorre "seriamente" sobre uma questão amorosa, entra uma música cafonérrima, mas em total sintonia com as emoções em causa. Realmente, um achado maravilhoso.
Quanto ao espetáculo, João Sanches impõe à cena uma dinâmica ao mesmo tempo sóbria e divertida, valendo-se de marcações que traduzem de forma exemplar os conteúdos em jogo. Mas isso só se torna possível graças à ótima atuação dos atores/cantores. Tanto nas passagens em que o texto predomina, quanto naquelas em que o canto é o foco, Laila Garin e Osvaldo Mil formam uma dupla de desempenho irretocável. Trabalham tanto o humor quanto os momentos mais sofridos com a mesma eficiência. E além disso, exibem ótima contracena e uma cumplicidade que só se materializa quando os intérpretes confiam plenamente um no outro e na proposta que protagonizam. Possivelmente ainda não muito conhecidos do grande público carioca, tenho absoluta certeza de que, através deste espetáculo, logo atingirão o lugar de destaque que merecem.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta empreitada teatral imperdível - Alexandre Elias (direção musical), Duda Maia (direção de movimento), Kika Lopes (figurinos) e João Sanches (iluminação). Cabe ainda destacar o projeto de sonorização de Branco Ferreira, pois, ao contrário do que muitas vezes ocorre em nossos musicais, aqui a excelente banda toca em um volume que não cobre a voz dos intérpretes.
EU TE AMO MESMO ASSIM - Texto de Ovídio. Adaptação de Jô Abdu. Supervisão de João Falcão. Direção de João Sanches. Com Laila Garin e Osvaldo Mil. Teatro das Artes. Terça e quarta, 21h. Quinta, 17h.
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