A violência no Teatro
Martin Esslin
A conexão entre violência e drama é bastante óbvia. Um dos grandes clichês é que drama é conflito e de um certo modo, portanto, a violência está inserida no drama. Não digo que concordo inteiramente com essa definição. Há muitas peças boas que são puramente líricas e não contêm muito conflito. Mas há, certamente, grande quantidade de violência no drama, e não é, como em outras artes, exterior, mas algo que é inerente à sua própria forma.
O dramaturgo alemão Gerhart Hauptmann achava que toda tragédia era baseada no sacrifício humano. Não há evidência disso, mas há um pouco de verdade aí, no sentido de que drama, de certo modo, apresenta quadros do sofrimento humano para um público que se delicia com ele. Nesse sentido, o drama é um sacrifício humano. Podemos aplicar isso não só à tragédia, como pensava Hauptmann, mas também à comédia, porque na comédia o público ri da desgraça dos outros; na tragédia, chora-se por sua causa.
Tipos de violência
Tentando abordar o tema da violência no drama moderno como distinto do drama em geral, procurarei definir que tipos de violência encontramos no teatro e mostrar sua função no drama moderno. Se se toma como princípio de classificação os recipientes da violência, a forma mais evidente é a violência que ocorre entre os personagens da peça. Isto é, o que um personagem, na peça, faz ao outro, ou igualmente o que faz a si mesmo; por que, como veremos, no moderno drama, uma espécie de auto-violência tem papel particularmente importante. Esse tipo de violência está, por assim dizer, dentro do próprio mundo da peça. Mas não é esta a única forma de violência. Acho até que não é a mais importante.
Pode-se ter também a violência do autor, ou do produtor, da peça para com os personagens. Podemos ter um apelo total à violência do palco para a platéia. E isso acontece muito na maioria do moderno drama de protesto. Em quarto lugar, há o aspecto da violência que o público desenvolve em relação aos personagens no palco. Esse é um fenômeno muito interessante e muito relevante no teatro moderno. Em quinto lugar, há a violência dirigida pelo autor contra a platéia, também uma forma particularmente significativa no moderno drama.
Violência no contexto da peça
Este aspecto da violência é o mais tradicional. Se considerarmos a tragédia grega, há assassinatos na "Oréstia", há o auto-cegamento em "Édipo". No teatro isabelino, há também uma enorme quantidade de violência desse tipo, e o teatro dessa época é particularmente um teatro de combates, de violentos choques - todas as peças históricas culminam com cenas de batalhas. Mesmo se tomarmos a mais selvagem forma de violência encontrada em Webster e Tourneur, a agonia romântica do teatro jacobino, encontraremos verdadeiras orgias de violência dirigidas pelos personagens entre si. Na comédia, isso também acontece - para dar apenas um exemplo entre muitos, nos episódios tais como a zombaria de Malvolio em "Twelfth night".
Sociologia
No teatro moderno, isto é, o moderno teatro que vale a pena do ponto de vista literário, eu pensaria que esse aspecto de violência não é tão importante como costuma ser tradicionalmente no drama. A razão disso é sociológica. Com a televisão, filmes e rádio, a produção de lutas ou batalhas no teatro vivo tornou-se cada vez mais difícil. No teatro isabelino (que me desculpem se isso é um truismo para todos), as lutas, os duelos eram vistos pelo público como o ponto alto da ação. Eles usavam a técnica do emprego de pequenas bexigas cheias de sangue de boi sob a roupa e, no momento em que o herói mata o vilão, essa bexiga era furada e um esguicho de sangue aparecia salpicando todo mundo. Esses efeitos eram tão populares que os atores ingleses percorriam todo o continente, ganhando muito dinheiro, exibindo-se para platéias que não entendiam uma palavra do que diziam.
Superação
Na época da fotografia, isso simplesmente não funciona mais. Sempre me sinto contrafeito ao assistir às lutas no teatro, pois vocês todos sabem que os atores estão se cuidando para um não ferir o outro. Com a superação desse aspecto mais primitivo, o teatro moderno tem necessidade de formas muito mais sutis de violência. E se considerarmos essa categoria de violência-dentro-da-peça, veremos que a violência física tornou-se relativamente uma parte sem importância e a violência psicológica se tornou muito mais significativa.
"A lição"
Tomem, por exemplo, o que considero um exemplo clássico de violência no teatro moderno, "A lição", de Ionesco. Embora a peça culmine com o professor cravando a faca na aluna, a violência está de fato em toda a ação que precede este ato - a real violência está presente na dominação psicológica da aluna pelo professor, que gradualmente suga toda a sua vitalidade, de forma que a morte real da aluna já estaria realizada psicologicamente. Ou seja: a morte em si não constitiu um choque muito grande para a platéia e é realmente um final convencional simbólico, já sugerido através de outros recursos. Assim tem-se de fato uma situação (e isto é muitas vezes o que ocorre no teatro moderno quando a violência aparece dessa forma) em que a violência é uma forma de dominação psicológica ou sujeição.
"Mãe Coragem"
Outro exemplo de uma escola oposta vem de Brecht, se considerarmos a cena do assassinato da menina em "Mãe Coragem". A menina ouviu dizer que os soldados queriam atacar uma cidade próxima. Ela não podia avisar a cidade, que fora cercada, e sabe que todas as crianças vão ser mortas. Ela sobe no telhado de um palheiro. Não pode gritar porque é muda, mas pega um tambor e começa a tocar. Os soldados ameaçam atirar se ela não descer. Ela recusa e continua tocando até que os soldados a matam. Aqui também temos uma situação na qual o ato de violência apenas culmina de uma forma violenta, heróica, brutal de tensão, produzida por meios psicológicos inteiramente diferentes.
"Um bonde chamado desejo"
Certamente há ainda no teatro contemporâneo uma grande quantidade de violência presente, de violência no sentido shakespeariano. É, contudo, se tomarmos como exemplo um autor como Tennessee Williams, uma violência com fortes tons eróticos e sexuais. Tomem a violação no climax de "Um bonde chamado desejo". Violência - é certo - mas não apenas a violência de duas pessoas lutando e o público considerando como lutam bem. O tema é sempre o da dominação sexual e da sujeição. Há uma peça recente que, estou certo, causará um impacto aqui, que vi em Nova York no ano passado: "The brig", de Kenneth Brow.
Protesto
É uma das peças mais violentas que já vi em teatro. Essa peça foi levada pelo grupo The Living Theatre, e que é um protesto contra a maneira como tratam os prisioneiros no Campo de Detenção da Marinha. O Living Theatre se assemelha a uma grande sala. Não existe palco como tal, apenas o fim da sala, separada com rede de arame atrás da qual construíram a réplica exata da cela de detenção com cerca de 18 pessoas e beliches, um espaço estreito. A intervalos, no chão, há riscos brancos. A cada momento em que um prisineiro deseja cruzar a linha branca tem que pedir permissão ao guarda. Se um prisioneiro recebe ordem de apanhar um balde, por exemplo, tem que parar a cada risco branco e pedir permissão para cruzá-lo. Metade da peça parece consistir em os prisioneiros pedindo permissão para cruzar e os guardas gritando "Sim" e "Não". Essa insistente repetição é muito mais violenta e brutal do que o fato de à sua frente diversas pessoas etarem sendo surradas - no que ninguém acredita, ainda que eles o façam muito bem. É um comentário terrível a respeito de nosso tempo que, no teatro vivo, pelo menos, a violência real - para nós que a vimos tanto - não tem realmente nenhum efeito. Por isso tem que ser apoiada por certo tipo de violência psicológica.
Agressão verbal
Como sabem, a forma mais comum de agressão é a verbal. Este é o significado de toda a escola de escritores como os chamados Angry Yong Men. O impacto de "Look back in Anger", de Osborne, estava, como todos reconheceram, na eloquência do seu xingamento e na determinação de sua agressão verbal. Há em seu teatro uma violência de protesto, uma determinação de não aceitar a situação, que produz essa espécie de vitupério.
Mudanças
Houve muitas mudanças significativas, conforme notei em meu trabalho na BBC. Somente há cerca de 10 anos atrás, não era permitido usar a palavra "ensanguentado" no rádio. Hoje as peças usam essa palavra em abundância e outras mais fortes. Estou convencido que este é em si um aspecto da violência. É interessante também notar que muitos ouvintes tomam essas palavras como uma terrível agressão a eles. É um truismo psicológico que quanto mais se suprime ou reprime e mais moderada é a sociedade, maior é o desejo dessa espécie de violência reprimida aparecer. Acho que a maneira como essa violência está invadindo o teatro é extremamente significativa para ambas as situações, sociológica e psicológica, neste país.
Masoquismo
Um aspecto anteriormente mencionado - e isto é muito mais verdade no teatro moderno do que no clássico - é a violência que toma a forma de violência do personagem contra si próprio. Uma forma de violência interior, masoquista. Em Brecht, por exemplo, há pelo menos dois exemplos de auto-castração. O mais conhecido é "Mann ist mann", onde se vê a violência psicológica levada ao ponto de absolua perfeição - um homem transformado pela violência em uma personalidade diferente - que é, afinal, a maior das violências, a total erradicação da autonomia de uma pessoa. A outra é "Der Hofmeister". A auto-castração remonta até Baco e ao ritual grego, mas há uma curiosa revivescência disso. E num dos mais violentos dramas modernos, temos a mesma coisa - em "O balcão", de Genet.
Desprezo
A segunda forma de violência anteriormente referida é a que o autor usa contra seus próprios personagens. Ela se encontra sempre que os personagens são tratados com um desprezo realmente selvagem pelo autor. Isso acontece em "A cantora careca", de Ionesco,
em que os personagens se apresentam como bonecos sem vida, sem nenhum atributo humano. Mas pode-se ver isso também num autor que é muito mais profundo que Ionesco, Samuel Beckett. Em "Esperando Godot", por exemplo, a falta de piedade do autor com seus personagens se mostra de tal forma que ele não externa nenhuma simpatia por eles, de maneira que constantemente os impele a situações extremas. Outra forma (que Beckett usa muito bem) é a forma de violência em que o autor mutila seus personagens. Isso se relaciona com o masoquismo a que me referi e é significativo de nossa época.
Há uma peça de Adamov, "La grande e la petite manouvre", em que um homem que sempre demonstra uma certa fraqueza, perde um membro de tal modo que, tendo começado a peça robusto e são, acaba como um estropiado inválido, numa cadeira de rodas. Há aqui uma forma de masoquismo do autor, mas também de agressão contra seus próprios personagens, que ele trata cruelmente.
Máscaras
Outra forma é o uso de máscaras, comum em Brecht tem e que John Arden usou em "The happy haven" (uma peça interessantíssima, imerecidamente sem sucesso). Se você dá máscaras aos personagens, você os desumaniza e os despersonaliza e diz quase que abertamente que "esses personagens não são humanos, são monstros". É este um aspecto da violência que é, de resto, peculiar à nossa época: um dramaturgo voltando-se com tão selvagem agressividade contra suas próprias criaturas.
Provocação
Em terceiro lugar, há a provocação da violência entre os espectadores - isto nas peças destinadas a tumultuar a platéia provocando uma atitude de violência. Chegamos aqui à larga área da propaganda política. Temos visto muitos exemplos disso atualmente. Aplica-se principalmente às peças nazistas sobre judeus. Nunca vi nenhuma delas, apesar de muitas vezes terem sido levadas, mas vi algumas em filme.
Durante a guerra, num pequeno cinema perto do Almirantado, apresentavam-se filmes alemães. O interesse estava no uso calculado de técnicas psico-analíticas a fim de provocar a violência entre os espectadores. Lembro-me de um filme chamado "Jew Suss". O extraordinário é que se podia medir a atmosfera nesse cinema após o filme. Todos ali eram anti-nazi, mas no momento pareciam desejar sair dali para matar o primeiro judeu que encontrassem. Essa espécie de coisa era, e ainda é, certamente, a técnica normal usada em filmes patrióticos de guerra. É a técnica reconhecida na União Soviética. Há muitas peças em que os perversos imperialistas violentam ou matam pelo dinheiro e assim por diante. Isso é importante para o nosso tema, porque é calculado para criar um sentimento de agressão na platéia. Mas todas as máquinas de propaganda empregam essa técnica, que não é monopólio de nenhum país.
Violência contra os personagens
Em quarto lugar, os espectadores são levados à violência contra os personagens no palco. Isso pode parecer estranho, mas é o caso em toda a comédia ou farsa. Você ri por um sentimento de superioridade, você sente prazer com as desgraças dos outros, mesmo numa farsa em que ninguém escorrega numa casca de banana. Aqui, acho que o riso é de fato uma expressão de violência provocada na platéia contra os personagens.
Violência contra a platéia
Finalmente, a violência do autor contra a própria platéia. Voltemos a Ionesco: quando ele escreveu sua primeira peça, "A cantora careca", o fim original da peça descrito por ele é que "alguém gritaria 'vergonha', enquanto o diretor viria e tentaria acalmar os espectadores; mas a platéia continuaria gritando e a í o diretor chamaria a polícia, que chegaria com uma metralhadora, iria ao palco e mataria os espectadores". Quando lhe observaram que seria muito cara essa montagem da peça, ele apresentou outro final - o autor iria ao palco, enquanto o público aplaudia e o agrediria. Finalmente, ficou decidido não haver final, voltando-se ao início da peça, que é de fato como termina atualmente. Isso dá bem uma idéia dos sentimentos que o artista tem muitas vezes em relação ao público.
(O presente artigo, aqui resumido, é fruto de uma palestra do autor no Institute of Contemporary Arts, de Londres, publicado na revista Encore/1964. A íntegra deste artigo está na revista Cadernos de Teatro nº 47/1970, edição já esgotada)
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terça-feira, 31 de março de 2009
segunda-feira, 30 de março de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Avenida Q."
.................................................
Versão impecável de ótimo musical
Lionel Fischer
"Imagine um lugar onde convivem em harmonia moças e 'monstras' de família, artistas frustrados, ex-celebridades, trabalhadores desempregados, devassas, solteironas amarguradas, orientais ranzinzas, gays com um pé fora do armário, tarados virtuais, ursinhos de pelúcia maléficos, humanos e bonecos igualmente desbocados e irreverentes. Esta é a 'Avenida Q.', musical que surgiu de mansinho em 2003 no circuito Off-Broadway e apenas quatro meses depois estreou no Golden Theater, de onde nunca mais saiu de cartaz, sagrando-se vencedor de três Tony's: Melhor Musical, Melhor Música Original e Melhor Libreto".
Este trecho, extraído do ótimo release que nos foi enviado, possibilita uma idéia precisa do espetáculo, em cartaz no Teatro Clara Nunes. Com direção assinada por Charles Moëller e Claudio Botelho, "Avenida Q." - texto de Jeff Whity, letras e músicas de Robert Lopez e Jeff Marx - chega à cena com elenco formado por Sabrina Korgut (Kate Monstra e Lucy de Vassa), André Dias (Princepton e Rod), Claudia Netto (JapaNeuza), Fred Silveira (Nicky e Trekkie Monstro), Renato Rabelo (Brian), Mauricio Xavier (Gary Coleman), Renata Ricci (Dona Coisa Ruim, Ursinha do Mal e Ricky) e Gustavo Klein (Ursinho do Mal e Recém-chegado). Os atores são acompanhados por uma banda - que não é vista - formada por Zaida Valentim (teclado 1 e regência), Heberth Souza (teclado 2), Thiago Trajano (guitarra, banjo e violão), Márcio Romano (bateria), Omar Cavalheiro (baixo elétrico e acústico) e Alex Freitas (sax, flauta e clarinete).
Centrado na história de Princeton - um jovem recém formado que chega à capital em busca de uma nova vida - o musical nos mostra o encontro dele com vários personagens, todos eles exibindo variadas carências e frustrações. E são justamente estas últimas que conferem pertinência a uma estrutura narrativa bastante simples e quase sempre muito engraçada. Mas o humor, no presente caso, não é trabalhado de maneira leviana e inconsequente, mas de forma crítica, o que confere ao espetáculo uma dimensão muito além do mero entretenimento.
Com relação à montagem, esta exibe, como de hábito, a inquestionável qualidade da griffe Botelho/Moëller: marcações divertidas, imprevistas e criativas, ritmo preciso, atores maravilhosamente ensaiados, super disciplinados e sempre exibindo enorme prazer de estar em um palco contracenando com total entrega. Estamos, sem dúvida, diante de uma montagem que reúne todas as condições para se converter em um dos maiores destaques da atual temporada.
Quanto ao elenco, de tão harmoniso e integrado - inclusive no que concerne à manipulação dos bonecos -, seria injusto conferir algum destaque especial a qualquer dos profissionais que estão em cena. Entretanto, como eventuais "injustiças" fazem parte da natureza humana - e um crítico, apesar das aparências, também pertence à curiosa população de bípedes que habita este planeta -, não resistimos em afirmar o que se segue: Sabrina Korgut, André Dias e Cláudia Netto permanecerão por muito tempo em nossa lembrança, da mesma forma que acreditamos que o público levará muito tempo para esquecer - se é que o fará - performances tão notáveis e encantadoras.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o deslumbrante trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta produção impecável - Claudio Botelho (tradução e adaptação das letras), Rogério Falcão (cenografia), Mareu Nitschke (figurinos), Paulo César Medeiros (iluminação), Marcelo Castro (direção musical) e Rick Lyon, que concebeu e desenhou os 16 bonecos, vindos dos Estados Unidos.
AVENIDA Q. - Texto de Jeff Whity, letras e músicas de Robert Lopez e Jeff Marx. Direção de Claudio Botelho e Charles Moëller. Com Sabrina Korgut, André Dias, Claudia Netto e outros. Teatro Clara Nunes. Quinta e sexta, 21h30. Sábado, 17h e 21h30. Domingo, 20h.
"Avenida Q."
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Versão impecável de ótimo musical
Lionel Fischer
"Imagine um lugar onde convivem em harmonia moças e 'monstras' de família, artistas frustrados, ex-celebridades, trabalhadores desempregados, devassas, solteironas amarguradas, orientais ranzinzas, gays com um pé fora do armário, tarados virtuais, ursinhos de pelúcia maléficos, humanos e bonecos igualmente desbocados e irreverentes. Esta é a 'Avenida Q.', musical que surgiu de mansinho em 2003 no circuito Off-Broadway e apenas quatro meses depois estreou no Golden Theater, de onde nunca mais saiu de cartaz, sagrando-se vencedor de três Tony's: Melhor Musical, Melhor Música Original e Melhor Libreto".
Este trecho, extraído do ótimo release que nos foi enviado, possibilita uma idéia precisa do espetáculo, em cartaz no Teatro Clara Nunes. Com direção assinada por Charles Moëller e Claudio Botelho, "Avenida Q." - texto de Jeff Whity, letras e músicas de Robert Lopez e Jeff Marx - chega à cena com elenco formado por Sabrina Korgut (Kate Monstra e Lucy de Vassa), André Dias (Princepton e Rod), Claudia Netto (JapaNeuza), Fred Silveira (Nicky e Trekkie Monstro), Renato Rabelo (Brian), Mauricio Xavier (Gary Coleman), Renata Ricci (Dona Coisa Ruim, Ursinha do Mal e Ricky) e Gustavo Klein (Ursinho do Mal e Recém-chegado). Os atores são acompanhados por uma banda - que não é vista - formada por Zaida Valentim (teclado 1 e regência), Heberth Souza (teclado 2), Thiago Trajano (guitarra, banjo e violão), Márcio Romano (bateria), Omar Cavalheiro (baixo elétrico e acústico) e Alex Freitas (sax, flauta e clarinete).
Centrado na história de Princeton - um jovem recém formado que chega à capital em busca de uma nova vida - o musical nos mostra o encontro dele com vários personagens, todos eles exibindo variadas carências e frustrações. E são justamente estas últimas que conferem pertinência a uma estrutura narrativa bastante simples e quase sempre muito engraçada. Mas o humor, no presente caso, não é trabalhado de maneira leviana e inconsequente, mas de forma crítica, o que confere ao espetáculo uma dimensão muito além do mero entretenimento.
Com relação à montagem, esta exibe, como de hábito, a inquestionável qualidade da griffe Botelho/Moëller: marcações divertidas, imprevistas e criativas, ritmo preciso, atores maravilhosamente ensaiados, super disciplinados e sempre exibindo enorme prazer de estar em um palco contracenando com total entrega. Estamos, sem dúvida, diante de uma montagem que reúne todas as condições para se converter em um dos maiores destaques da atual temporada.
Quanto ao elenco, de tão harmoniso e integrado - inclusive no que concerne à manipulação dos bonecos -, seria injusto conferir algum destaque especial a qualquer dos profissionais que estão em cena. Entretanto, como eventuais "injustiças" fazem parte da natureza humana - e um crítico, apesar das aparências, também pertence à curiosa população de bípedes que habita este planeta -, não resistimos em afirmar o que se segue: Sabrina Korgut, André Dias e Cláudia Netto permanecerão por muito tempo em nossa lembrança, da mesma forma que acreditamos que o público levará muito tempo para esquecer - se é que o fará - performances tão notáveis e encantadoras.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o deslumbrante trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta produção impecável - Claudio Botelho (tradução e adaptação das letras), Rogério Falcão (cenografia), Mareu Nitschke (figurinos), Paulo César Medeiros (iluminação), Marcelo Castro (direção musical) e Rick Lyon, que concebeu e desenhou os 16 bonecos, vindos dos Estados Unidos.
AVENIDA Q. - Texto de Jeff Whity, letras e músicas de Robert Lopez e Jeff Marx. Direção de Claudio Botelho e Charles Moëller. Com Sabrina Korgut, André Dias, Claudia Netto e outros. Teatro Clara Nunes. Quinta e sexta, 21h30. Sábado, 17h e 21h30. Domingo, 20h.
Ritual de passagem
Eliana Helsinger
Não sei quando foi escrita "Avenida Q.", mas o que importa é que as questões abordadas são, do meu ponto de vista, cruciais para compreendermos como esse ritual de passagem da adolescência para o mundo adulto, neste século XXI, tem sido tão doloroso para os nossos jovens. Ao mesmo tempo em que ser jovem nunca foi tão glamuroso em termos de imagem (corpos sarados), foi deletado aquilo que ele mais precisa para se tornar um adulto: como mostra muito bem a peça, os jovens não sabem o rumo que querem dar às suas vidas. Eles saem do HIGH SCHOOL sem nenhuma garantia de que um curso universitário vai permitir que tenham um trabalho onde possam, efetivamente, ter uma carreira bem sucedida.
Desiludidos, desempregados e, pior, sem terem conseguido responder às questões fundamentais que lhes dariam os alicerces para escutar seus desejos singulares e então traçar o rumo singular e intransferível para suas vidas, eles repetem em coro: A VIDA É UMA MERDA!. Sem respostas sobre o que é o amor, o sexo e a escolha sexual - hétero, homo ou bi, sendo esta escolha impregnada de preconceitos -, eles vivem numa "sociedade do espetáculo" aonde só existem duas palavras: WINNER or LOOSER. Em nossa clínica diária, atendemos a muitos jovens de 20 anos melancólicos e que só possuem uma "certeza": sou um fracassado, fracassei em tudo.
No entanto, no final da peça os personagens dizem, da forma mais otimista, "tudo vai passar". Isso me remeteu a uma frase de Isadora Duncan em sua biografia: "Por que demora tanto a passar essa inquietação desesperada que sinto?".
Em resumo: além de ter adorado o espetáculo tanto em termos formais como de conteúdo, acho-o ainda mais pertinente à medida que pode servir como um alerta para que as escolas, os pais e a mídia cultivem menos a beleza e a grana, e dêem aos jovens ferramentas para que esse ritual de passagem da adolescência para a vida adulta, tão necessário e bacana, possa ser feito como deve ser feito: para valer e o mais possível isento de dor.
(Eliana Helsinger é psicanalista)
Eliana Helsinger
Não sei quando foi escrita "Avenida Q.", mas o que importa é que as questões abordadas são, do meu ponto de vista, cruciais para compreendermos como esse ritual de passagem da adolescência para o mundo adulto, neste século XXI, tem sido tão doloroso para os nossos jovens. Ao mesmo tempo em que ser jovem nunca foi tão glamuroso em termos de imagem (corpos sarados), foi deletado aquilo que ele mais precisa para se tornar um adulto: como mostra muito bem a peça, os jovens não sabem o rumo que querem dar às suas vidas. Eles saem do HIGH SCHOOL sem nenhuma garantia de que um curso universitário vai permitir que tenham um trabalho onde possam, efetivamente, ter uma carreira bem sucedida.
Desiludidos, desempregados e, pior, sem terem conseguido responder às questões fundamentais que lhes dariam os alicerces para escutar seus desejos singulares e então traçar o rumo singular e intransferível para suas vidas, eles repetem em coro: A VIDA É UMA MERDA!. Sem respostas sobre o que é o amor, o sexo e a escolha sexual - hétero, homo ou bi, sendo esta escolha impregnada de preconceitos -, eles vivem numa "sociedade do espetáculo" aonde só existem duas palavras: WINNER or LOOSER. Em nossa clínica diária, atendemos a muitos jovens de 20 anos melancólicos e que só possuem uma "certeza": sou um fracassado, fracassei em tudo.
No entanto, no final da peça os personagens dizem, da forma mais otimista, "tudo vai passar". Isso me remeteu a uma frase de Isadora Duncan em sua biografia: "Por que demora tanto a passar essa inquietação desesperada que sinto?".
Em resumo: além de ter adorado o espetáculo tanto em termos formais como de conteúdo, acho-o ainda mais pertinente à medida que pode servir como um alerta para que as escolas, os pais e a mídia cultivem menos a beleza e a grana, e dêem aos jovens ferramentas para que esse ritual de passagem da adolescência para a vida adulta, tão necessário e bacana, possa ser feito como deve ser feito: para valer e o mais possível isento de dor.
(Eliana Helsinger é psicanalista)
sexta-feira, 27 de março de 2009
O Teatro de Bali
Antonin Artaud
O espetáculo de teatro de Bali, mistura de dança, canto e pantomima - e um pouco de teatro como o entendemos aqui - restitui, conforme processos de eficácia comprovada e sem dúvida milenares, ao seu destino primitivo o teatro, que ele nos apresenta como uma combinação de todos esses elementos amalgamados sob o ângulo da alucinação e do medo.
É notável que a primeira das pequenas peças que compõem esse espetáculo, que nos apresenta as censuras de um pai à filha rebelde contra as tradições, começa por uma entrada de fantasmas, ou, se quiserem, os personagens, homens e mulheres, que vão servir ao desenvolvimento do tema dramático mais familiar, aparecem no começo, em seu estado espectral de todo personagem de teatro, antes de permitir que as situações dessa espécie de esquete simbólico evoluam. Aqui, de resto, as situações são apenas pretexto. O drama não evolui entre sentimentos, mas entre estados de espírito, esses mesmos ossificados e reduzidos a gestos - esquemas.
Pureza
Em resumo, os balineses realizam, com o máximo rigor, a idéia do teatro puro, onde tudo, concepção e realização, só vale, só existe pelo seu grau de objetivação em cena. Eles demonstram vitoriosamente a preponderância absoluta do diretor, cujo poder se estende até a origem intelectual dos movimentos, dos gestos, e que elimina as palavras.
Temas
Os temas são vagos, abstratos, extremamente gerais. O que lhe dá vida é a super-abundância complicada de todos os artifícios cênicos, que se impõem ao nosso espírito como a idéia de uma metafísica tirada de uma nova utilização do gesto e da voz.
Curiosidade
O que há realmente de curioso em todos esses gestos, nessas atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nessas modulações sincopadas de garganta, nessas frases musicais, nessas vozes de élitros, nesses ruídos de ramos, esses sons de caixas ocas, esse ranger de autômatos, essas danças de manequins animados, é que, através do dédalo de seus gestos, de atitudes e gritos lançados ao ar, através dessas evoluções e curvas que utilizam todo o espaço cênico, se depreende o sentido de uma nova linguagem física na base de sinais e não de palavras.
Hieroglifos
Esses atores, com suas roupas geométricas parecem hieroglifos animados. E não há até na forma de suas roupas que, deslocando o eixo do corpo humano, cria, ao lado das idumentárias desses guerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, espécie de vestidos simbólicos, de segundas roupagens que não inspirem, essas roupas, uma idéia intelectual, e não se liguem, por todos os entrecruzamentos de suas linhas a todos os entrecruzamentos das perspectivas do ar.
Sentido
Esses sinais espirituais têm um sentido preciso, que só nos atinge intuitivamente, mas com bastante violência para tornar inútil qualquer tradução numa linguagem lógica e discursiva. E para os amadores do realismo a qualquer preço, que se fatigariam dessas alusões perpétuas a atitudes secretas e desvairadas do pensamento, resta o jogo eminentemente realista do double (duplo), que se sobressalta com as aparições do além. Esses tremores, esses ganidos pueris, esse salto que bate o chão cadenciadamente segundo o própri9o automatismo do inconsciente desencadeado, esse outro duplo que, em dado momento, se oculta atrás de sua própria realidade, eis uma descrição do medo que vale para todas as latitudes e mostra o sobre-humano; os orientais podem nos ensinar muito em matéria de realidade.
Eficácia
Os balineses, que têm gestos e uma variedade de mímicas para todas as circunstâncias da vida, dão novamente à concepção teatral o seu preço superior, e nos demonstram a eficácia e o valor supremamente ativo de um certo número de convenções bem aprendidas e magistralmente aplicadas. Uma das razões de nosso prazer diante desse espetáculo reside justamente na utilização, pelos atores, de uma quantidade exata de gestos seguros, de mímicas exatas, e sobretudo no enroupamento espiritual, no estudo profundo e nuançado que presidiu a elaboração desses jogos de expressão, desses sinais eficazes, sinais cuja eficácia - é o que pensamos - não se esgotou apesar de serem milenares.
Arquitetura
Esse girar mecânico dos olhos, esses movimentos de lábios, essa dosagem das crispações musculares, em seus efeitos metodicamente calculados e que desconhecem qualquer recurso de improvisação espontânea, essas cabeças movidas horizontalmente e que parecem girar de uma espádua a outra como se fossem encaixadas em glissadores, tudo isso, que responde a necessidades psicológicas imediatas, corresponde além disso a uma espécie de arquitetura espiritual, feita de gestos e mímicas, mas também do poder evocador de um sistema, da qualidade musical de um movimento físico, do acordo paralelo e admiravelmente integrado num tom. É possível que isso choque o nosso sentido de espontaneidade, mas não digam que essa matemática é criadora de secura nem de uniformidade.
Sensação
A maravilha é que uma sensação de riqueza, de fantasia, de generosa prodigalidade se desprende desse espetáculo. E as correspondências as mais imperiosas brotam perpetuamente da vista ao ouvido, do intelecto à sensibilidade, do gesto de um personagem à evocação dos movimentos de uma planta através do grito de um instrumento. Os suspiros dos instrumentos de sopro prolongam as vibrações das cordas vocais com um sentido de identidade que não se sabe se é a própria voz que se prolonga ou o sentido que desde as origens absorveu a voz.
Jogo
Um jogo de juntas, o ângulo musical que o braço faz com o ante-braço, um pé que cai, um joelho que se arqueia, dedos que parecem se separar das mãos, tudo isso é para nós como um perpétuo jogo de espelho em que os membros humanos parecem emitir ecos, músicas, em que as notas da orquestra evocam a idéia de um intenso viveiro. Em nosso teatro, jamais se vislumbrou essa metafísica do gesto, que nunca soube usar a música para fins dramáticos tão imediatos, tão concretos, nosso teatro puramente verbal e que ignora tudo aquilo que é o teatro, isto é, o que está no ar do tablado, que se mede e se cerca de ar, que tem uma densidade no espaço: movimentos, formas, cores, vibrações, atitudes e gritos poderiam, em vista do que não se mede e que vem do poder de sugestão do espírito, pedir ao teatro de Bali uma lição de espiritualidade.
Idéia
Esse teatro puramente popular e não sagrado, nos dá uma idéia extraordinária do nível intelectual de um povo que toma como motivo de suas festas cívicas as lutas de uma alma presa das larvas e dos fantasmas do além. Por que é bem, em resumo, o combate puramente interior de que se trata nessa última parte do grau de suntosidade teatral que os balineses foram capazes de nos dar. O sentido das necessidades plásticas da cena, que aí aparece, só tem correspondência em seu conhecimento do medo físico e de seus recursos para desencadeá-lo. E há, no aspecto verdadeiramente terrificante de seu diabo (provavelmente tibetano), uma similitude marcante com o aspecto de certo fantoche de nossa reminiscência, com as mãos cheias de gelatina branca, as unhas de folhagem verde, e que era o mais belo enfeite de uma das primeiras peças representadas pelo teatro de Alfred Jarry.
(Artigo escrito em 1931 e publicado na revista Spectacles. Este texto de Antonin Artaud está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 47, 1970, edição já esgotada)
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Antonin Artaud
O espetáculo de teatro de Bali, mistura de dança, canto e pantomima - e um pouco de teatro como o entendemos aqui - restitui, conforme processos de eficácia comprovada e sem dúvida milenares, ao seu destino primitivo o teatro, que ele nos apresenta como uma combinação de todos esses elementos amalgamados sob o ângulo da alucinação e do medo.
É notável que a primeira das pequenas peças que compõem esse espetáculo, que nos apresenta as censuras de um pai à filha rebelde contra as tradições, começa por uma entrada de fantasmas, ou, se quiserem, os personagens, homens e mulheres, que vão servir ao desenvolvimento do tema dramático mais familiar, aparecem no começo, em seu estado espectral de todo personagem de teatro, antes de permitir que as situações dessa espécie de esquete simbólico evoluam. Aqui, de resto, as situações são apenas pretexto. O drama não evolui entre sentimentos, mas entre estados de espírito, esses mesmos ossificados e reduzidos a gestos - esquemas.
Pureza
Em resumo, os balineses realizam, com o máximo rigor, a idéia do teatro puro, onde tudo, concepção e realização, só vale, só existe pelo seu grau de objetivação em cena. Eles demonstram vitoriosamente a preponderância absoluta do diretor, cujo poder se estende até a origem intelectual dos movimentos, dos gestos, e que elimina as palavras.
Temas
Os temas são vagos, abstratos, extremamente gerais. O que lhe dá vida é a super-abundância complicada de todos os artifícios cênicos, que se impõem ao nosso espírito como a idéia de uma metafísica tirada de uma nova utilização do gesto e da voz.
Curiosidade
O que há realmente de curioso em todos esses gestos, nessas atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nessas modulações sincopadas de garganta, nessas frases musicais, nessas vozes de élitros, nesses ruídos de ramos, esses sons de caixas ocas, esse ranger de autômatos, essas danças de manequins animados, é que, através do dédalo de seus gestos, de atitudes e gritos lançados ao ar, através dessas evoluções e curvas que utilizam todo o espaço cênico, se depreende o sentido de uma nova linguagem física na base de sinais e não de palavras.
Hieroglifos
Esses atores, com suas roupas geométricas parecem hieroglifos animados. E não há até na forma de suas roupas que, deslocando o eixo do corpo humano, cria, ao lado das idumentárias desses guerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, espécie de vestidos simbólicos, de segundas roupagens que não inspirem, essas roupas, uma idéia intelectual, e não se liguem, por todos os entrecruzamentos de suas linhas a todos os entrecruzamentos das perspectivas do ar.
Sentido
Esses sinais espirituais têm um sentido preciso, que só nos atinge intuitivamente, mas com bastante violência para tornar inútil qualquer tradução numa linguagem lógica e discursiva. E para os amadores do realismo a qualquer preço, que se fatigariam dessas alusões perpétuas a atitudes secretas e desvairadas do pensamento, resta o jogo eminentemente realista do double (duplo), que se sobressalta com as aparições do além. Esses tremores, esses ganidos pueris, esse salto que bate o chão cadenciadamente segundo o própri9o automatismo do inconsciente desencadeado, esse outro duplo que, em dado momento, se oculta atrás de sua própria realidade, eis uma descrição do medo que vale para todas as latitudes e mostra o sobre-humano; os orientais podem nos ensinar muito em matéria de realidade.
Eficácia
Os balineses, que têm gestos e uma variedade de mímicas para todas as circunstâncias da vida, dão novamente à concepção teatral o seu preço superior, e nos demonstram a eficácia e o valor supremamente ativo de um certo número de convenções bem aprendidas e magistralmente aplicadas. Uma das razões de nosso prazer diante desse espetáculo reside justamente na utilização, pelos atores, de uma quantidade exata de gestos seguros, de mímicas exatas, e sobretudo no enroupamento espiritual, no estudo profundo e nuançado que presidiu a elaboração desses jogos de expressão, desses sinais eficazes, sinais cuja eficácia - é o que pensamos - não se esgotou apesar de serem milenares.
Arquitetura
Esse girar mecânico dos olhos, esses movimentos de lábios, essa dosagem das crispações musculares, em seus efeitos metodicamente calculados e que desconhecem qualquer recurso de improvisação espontânea, essas cabeças movidas horizontalmente e que parecem girar de uma espádua a outra como se fossem encaixadas em glissadores, tudo isso, que responde a necessidades psicológicas imediatas, corresponde além disso a uma espécie de arquitetura espiritual, feita de gestos e mímicas, mas também do poder evocador de um sistema, da qualidade musical de um movimento físico, do acordo paralelo e admiravelmente integrado num tom. É possível que isso choque o nosso sentido de espontaneidade, mas não digam que essa matemática é criadora de secura nem de uniformidade.
Sensação
A maravilha é que uma sensação de riqueza, de fantasia, de generosa prodigalidade se desprende desse espetáculo. E as correspondências as mais imperiosas brotam perpetuamente da vista ao ouvido, do intelecto à sensibilidade, do gesto de um personagem à evocação dos movimentos de uma planta através do grito de um instrumento. Os suspiros dos instrumentos de sopro prolongam as vibrações das cordas vocais com um sentido de identidade que não se sabe se é a própria voz que se prolonga ou o sentido que desde as origens absorveu a voz.
Jogo
Um jogo de juntas, o ângulo musical que o braço faz com o ante-braço, um pé que cai, um joelho que se arqueia, dedos que parecem se separar das mãos, tudo isso é para nós como um perpétuo jogo de espelho em que os membros humanos parecem emitir ecos, músicas, em que as notas da orquestra evocam a idéia de um intenso viveiro. Em nosso teatro, jamais se vislumbrou essa metafísica do gesto, que nunca soube usar a música para fins dramáticos tão imediatos, tão concretos, nosso teatro puramente verbal e que ignora tudo aquilo que é o teatro, isto é, o que está no ar do tablado, que se mede e se cerca de ar, que tem uma densidade no espaço: movimentos, formas, cores, vibrações, atitudes e gritos poderiam, em vista do que não se mede e que vem do poder de sugestão do espírito, pedir ao teatro de Bali uma lição de espiritualidade.
Idéia
Esse teatro puramente popular e não sagrado, nos dá uma idéia extraordinária do nível intelectual de um povo que toma como motivo de suas festas cívicas as lutas de uma alma presa das larvas e dos fantasmas do além. Por que é bem, em resumo, o combate puramente interior de que se trata nessa última parte do grau de suntosidade teatral que os balineses foram capazes de nos dar. O sentido das necessidades plásticas da cena, que aí aparece, só tem correspondência em seu conhecimento do medo físico e de seus recursos para desencadeá-lo. E há, no aspecto verdadeiramente terrificante de seu diabo (provavelmente tibetano), uma similitude marcante com o aspecto de certo fantoche de nossa reminiscência, com as mãos cheias de gelatina branca, as unhas de folhagem verde, e que era o mais belo enfeite de uma das primeiras peças representadas pelo teatro de Alfred Jarry.
(Artigo escrito em 1931 e publicado na revista Spectacles. Este texto de Antonin Artaud está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 47, 1970, edição já esgotada)
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quinta-feira, 26 de março de 2009
Teatro no Século de Ouro Espanhol
Os séculos XVI e XVII foram os chamados Séculos de Ouro da literatura espanhola. O período mais brilhante é o que compreende os últimos 30 anos do século XVI e os primeiros 30 do século XVII. Foi esta a época das gerações de Cervantes, Lope de Vega e Quevedo.
Do ponto de vista do teatro, foi a grande época clássica da Espanha, aquela em que o teatro nacional atravessou um período cuja importância é comparável à do da Grécia Antiga, da Inglaterra elizabetana e da França clássica.
Na Espanha, como nos outros países europeus, o teatro formou-se nas igrejas. Os primeiros espetáculos eram cerimônias e textos litúrgicos, sendo os cônegos, diáconos e subdiáconos os primeiros atores. A introdução cada vez maior de elementos profanos nas representações religiosas - frases e atos satíricos - teve como resultado a proibição de qualquer representação teatral dentro das igrejas. Passou, então, do interior para o exterior dos templos e dali para os palácios dos príncipes e para os mosteiros.
Alterações
Durante todo o século XVI, o dramar eligioso continuou a ser cultivado sob a forma de Autos Sacramentais, mas já contando com notáveis alterações e com a introdução de elementos completamente alheios à Igreja. Ao lado desse teatro religioso, coexistiam algumas formas de teatro profano, como a égloba pastoril, farsas cômicas, peças alegóricas e até textos imitados do teatro italiano. Aliás, a influência italiana na formação teatral da Espanha foi muito grande, assim como foi na França e na Inglaterra. As situações mais características da comédia italiana, como as cenas noturnas, com a inevitável confusão de personagens no escuro, foram habituais nas comédias de Capa e Espada.
Corrales
Este primitivo teatro, à medida que se popularizou, foi deixando os palácios aristocráticos e os mosteiros, como já havia deixado o interior das igrejas, para se localizar nas praças públicas e finalmente nos pátios das casas. Aos poucos foram sendo construídos locais fechados lateralmente, denominados "corrales". Os "corrales", no início, não tinham teto, e as janelas das casas vizinhas, quando altas, eram aproveitadas como "torrinhas", e quando baixas, como "aposentos" (correspondente aos nossos camarotes). O pátio (a nossa platéia), era o lugar mais barato e ali o povo assistia aos espetáculos, de pé. Só os homens podiam entrar no pátio, e, constituindo o elemento mais barulhento da assistência, eram chamados de "mosqueteiros". As mulheres ocupavam uma galeria alta, "la cazuela", no fundo do teatro, em frente do palco. Este se erguia um pouco acima do nível do chão e nele costumavam sentar-se alguns homens, de costas para os atores. Os cenários eram os mais simples possíveis, e as mudanças de lugar anunciadas pelos próprios atores ou "cômicos". Na Espanha, desde o século XVI, era permitido às mulheres trabalhar como atrizes, coisa que na Inglaterra só ocorreu depois da Restauração, e na Alemanha a partir do século XVIII.
Os espetáculos
As representações teatrais davam-se aos domingos e duas ou três vezes por semana. Logo antes da Quaresma - período em que os "corrales" permaneciam fechados - havia espetáculos diariamente. Começavam às 2 horas da tarde, no inverno, e às 3, no verão. Primeiro, havia uma espécie de prólogo, em verso, onde eram explicadas as cenas que iriam ser apresentadas e onde se faziam alusões aos acontecimentos do momento. Seguia-se a "comédia", propriamente dita, que constava de três atos ou jornadas. Nos intervalos, representavam-se alguns "entremeses", que eram pecinhas curtas e engraçadas, ao mesmo tempo em que se cantavam e dançavam músicas da época. Muitas vezes os atores eram os próprios autores, como ocasionalmente o foram Juan de Enzina, Gil Vicente, Lope de Rueda, Pedro Navarro e outros.
LOPE DE VEGA (1562-1636).
Foi o autor mais fecundo e mais representativo do Século de Ouro da Espanha. Com ele, sofreu o drama tradicional radicais mudanças, deixando de respeitar as unidades de tempo, lugar e ação, e sendo criado novo estilo poético. Lope de Vega produziu mais de duas mil peças e em sua obra estão representados todos os gêneros dramáticos conhecidos até então: O religioso com os "Autos Sacramentais", as peças abordando temas do Velho e do Novo Testamento, vidas de santos e lendas piedosas; a comédia alegórica, baseada na mitologia oriental, grega e romana; as peças inspiradas em livros de cavalaria, em lendas e costumes de outras nações; toda a história da Espanha, com suas lendas e recordações mais ou menos conhecidas; e, finalmente, enorme número de comédias de costumes, comédias aristocráticas, de Capa e Espada e populares.
Exemplo de seu teatro religioso é o Auto Sacramental "El viaje del alma", e também "Lo fingido y verdadeiro" e "La buena guarda", inspiradas em lendas piedosas. Suas comédias heróicas mais conhecidas são: "El alcalde de Zalamea", "El caballero de Olmedo", "El castigo sin venganza", "Fuente Ovejuna" e "El mejor alcalde del rey". Entre as comédias de costumes, podemos citar: "El acero de Madrid", "La dama boba", "El perro del hortelano" e "La moz del cântaro". Foi durante a vida de Lope de Vega que se edificaram os dois "corrales" mais antigos de Madrid, assim como os principais de Valença, Sevilha, Barcelona, Granada e outras capitais.
Alguns gêneros dramáticos inferiores se desenvolveram durante sua vida, como a "Loa", espécie de introdução ao drama que iria se seguir; "El Entremés", já citado, peça curta que encerrava geralmente o espetáculo, ou que era representada num dos intervalos e que veio com Cervantes a adquirir forma definitiva: "El baile" e "La jácara", poesia cantada que deu origem à "Tonadilha" do século XVIII.
Como continuadores de Lope de Vega, temos:
TIRSO DE MOLINA (1581-1648).
Seu verdadeiro nome era Fray Gabriel Téllez. Por sua fecundidade e pelo valor total de sua
obra é o que mais se aproxima a Lope. Tirso de Molina foi o criador de uma das mais célebres personagens da literatura universal: Don Juan.
DON JUAN RUYZ DE ALARCON (1580-1639).
Embora menos fecundo que os dois anteriores, deu às suas comédias tal perfeição de forma e tal sentido moral, que ficou conhecido como o "clássico de um teatro romântico".
DON GUILLEN DE CASTRO (1569-1631).
Autor das célebres "Mocedades del Cid", as quais, adaptadas por Corneille, constituiriam a primeira tragédia do teatro clássico francês.
DON PEDRO CALDERÓN DE LA BARCA (1600-1681).
Em suas mãos, os Autos Sacramentais tomaram novo impulso, quase chegando a constituir um novo gênero dramático. Utilizando figuras alegóricas, tornou representáveis conceitos teológicos, pensamentos filosóficos e dogmas cristãos. Os Autos mais característicos de sua obra foram: "El gran teatro del mundo", "Los encantos de la culpa", "La cena de Baltazar" e "La vida es sueño". Calderón também refez algumas peças de Lope, como "El médico de su honra", "El alcalde de Zamalea" e "El maestro de danza". Escreveu algumas "Zarzuelas", gênero novo que surgiu pelo predomínio da música dramática nas representações teatrais, e foi autor de "entremeses" e "bailes".
Decadência
Com a morte de Calderón, começou a decadência do teatro espanhol, como consequência da decadência política e militar do país. Dilui-se a inspiração nacional e as obras surgidas são apenas imitações de peças de Lope, Tirso e Calderón. Além disso, a perseguição dos moralistas contra os abusos que se cometiam nas representações ocasionaram o fechamento paulatino de teatros importantes em Sevilha, Valença, Pamplona e Córdoba, com a destruição dos edifícios e a proibição de qualquer tentativa de reconstrui-los. As pessoas começaram a abandonar os espetáculos, as companhias decresciam, cessando, por conseguinte, todo e qualquer estímulo ao autor teatral. A Guerra da Sucessão transformou-se em guerra civil e durou 13 anos, acabando de arruinar a nação.
Finalmente, as novas doutrinas literárias francesas foram postas ao alcance de todos, em boas traduções, nos jornais, nas obras didáticas e satíricas. Essa expansão trouxe novas formas de dramaturgia.
Chega, deste modo, o Século de Ouro ao fim de suas experiências teatrais, tendo criado definitivamente a verdadeira tradição clássica espanhola.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 38 (1967), edição já esgotada.
Os séculos XVI e XVII foram os chamados Séculos de Ouro da literatura espanhola. O período mais brilhante é o que compreende os últimos 30 anos do século XVI e os primeiros 30 do século XVII. Foi esta a época das gerações de Cervantes, Lope de Vega e Quevedo.
Do ponto de vista do teatro, foi a grande época clássica da Espanha, aquela em que o teatro nacional atravessou um período cuja importância é comparável à do da Grécia Antiga, da Inglaterra elizabetana e da França clássica.
Na Espanha, como nos outros países europeus, o teatro formou-se nas igrejas. Os primeiros espetáculos eram cerimônias e textos litúrgicos, sendo os cônegos, diáconos e subdiáconos os primeiros atores. A introdução cada vez maior de elementos profanos nas representações religiosas - frases e atos satíricos - teve como resultado a proibição de qualquer representação teatral dentro das igrejas. Passou, então, do interior para o exterior dos templos e dali para os palácios dos príncipes e para os mosteiros.
Alterações
Durante todo o século XVI, o dramar eligioso continuou a ser cultivado sob a forma de Autos Sacramentais, mas já contando com notáveis alterações e com a introdução de elementos completamente alheios à Igreja. Ao lado desse teatro religioso, coexistiam algumas formas de teatro profano, como a égloba pastoril, farsas cômicas, peças alegóricas e até textos imitados do teatro italiano. Aliás, a influência italiana na formação teatral da Espanha foi muito grande, assim como foi na França e na Inglaterra. As situações mais características da comédia italiana, como as cenas noturnas, com a inevitável confusão de personagens no escuro, foram habituais nas comédias de Capa e Espada.
Corrales
Este primitivo teatro, à medida que se popularizou, foi deixando os palácios aristocráticos e os mosteiros, como já havia deixado o interior das igrejas, para se localizar nas praças públicas e finalmente nos pátios das casas. Aos poucos foram sendo construídos locais fechados lateralmente, denominados "corrales". Os "corrales", no início, não tinham teto, e as janelas das casas vizinhas, quando altas, eram aproveitadas como "torrinhas", e quando baixas, como "aposentos" (correspondente aos nossos camarotes). O pátio (a nossa platéia), era o lugar mais barato e ali o povo assistia aos espetáculos, de pé. Só os homens podiam entrar no pátio, e, constituindo o elemento mais barulhento da assistência, eram chamados de "mosqueteiros". As mulheres ocupavam uma galeria alta, "la cazuela", no fundo do teatro, em frente do palco. Este se erguia um pouco acima do nível do chão e nele costumavam sentar-se alguns homens, de costas para os atores. Os cenários eram os mais simples possíveis, e as mudanças de lugar anunciadas pelos próprios atores ou "cômicos". Na Espanha, desde o século XVI, era permitido às mulheres trabalhar como atrizes, coisa que na Inglaterra só ocorreu depois da Restauração, e na Alemanha a partir do século XVIII.
Os espetáculos
As representações teatrais davam-se aos domingos e duas ou três vezes por semana. Logo antes da Quaresma - período em que os "corrales" permaneciam fechados - havia espetáculos diariamente. Começavam às 2 horas da tarde, no inverno, e às 3, no verão. Primeiro, havia uma espécie de prólogo, em verso, onde eram explicadas as cenas que iriam ser apresentadas e onde se faziam alusões aos acontecimentos do momento. Seguia-se a "comédia", propriamente dita, que constava de três atos ou jornadas. Nos intervalos, representavam-se alguns "entremeses", que eram pecinhas curtas e engraçadas, ao mesmo tempo em que se cantavam e dançavam músicas da época. Muitas vezes os atores eram os próprios autores, como ocasionalmente o foram Juan de Enzina, Gil Vicente, Lope de Rueda, Pedro Navarro e outros.
LOPE DE VEGA (1562-1636).
Foi o autor mais fecundo e mais representativo do Século de Ouro da Espanha. Com ele, sofreu o drama tradicional radicais mudanças, deixando de respeitar as unidades de tempo, lugar e ação, e sendo criado novo estilo poético. Lope de Vega produziu mais de duas mil peças e em sua obra estão representados todos os gêneros dramáticos conhecidos até então: O religioso com os "Autos Sacramentais", as peças abordando temas do Velho e do Novo Testamento, vidas de santos e lendas piedosas; a comédia alegórica, baseada na mitologia oriental, grega e romana; as peças inspiradas em livros de cavalaria, em lendas e costumes de outras nações; toda a história da Espanha, com suas lendas e recordações mais ou menos conhecidas; e, finalmente, enorme número de comédias de costumes, comédias aristocráticas, de Capa e Espada e populares.
Exemplo de seu teatro religioso é o Auto Sacramental "El viaje del alma", e também "Lo fingido y verdadeiro" e "La buena guarda", inspiradas em lendas piedosas. Suas comédias heróicas mais conhecidas são: "El alcalde de Zalamea", "El caballero de Olmedo", "El castigo sin venganza", "Fuente Ovejuna" e "El mejor alcalde del rey". Entre as comédias de costumes, podemos citar: "El acero de Madrid", "La dama boba", "El perro del hortelano" e "La moz del cântaro". Foi durante a vida de Lope de Vega que se edificaram os dois "corrales" mais antigos de Madrid, assim como os principais de Valença, Sevilha, Barcelona, Granada e outras capitais.
Alguns gêneros dramáticos inferiores se desenvolveram durante sua vida, como a "Loa", espécie de introdução ao drama que iria se seguir; "El Entremés", já citado, peça curta que encerrava geralmente o espetáculo, ou que era representada num dos intervalos e que veio com Cervantes a adquirir forma definitiva: "El baile" e "La jácara", poesia cantada que deu origem à "Tonadilha" do século XVIII.
Como continuadores de Lope de Vega, temos:
TIRSO DE MOLINA (1581-1648).
Seu verdadeiro nome era Fray Gabriel Téllez. Por sua fecundidade e pelo valor total de sua
obra é o que mais se aproxima a Lope. Tirso de Molina foi o criador de uma das mais célebres personagens da literatura universal: Don Juan.
DON JUAN RUYZ DE ALARCON (1580-1639).
Embora menos fecundo que os dois anteriores, deu às suas comédias tal perfeição de forma e tal sentido moral, que ficou conhecido como o "clássico de um teatro romântico".
DON GUILLEN DE CASTRO (1569-1631).
Autor das célebres "Mocedades del Cid", as quais, adaptadas por Corneille, constituiriam a primeira tragédia do teatro clássico francês.
DON PEDRO CALDERÓN DE LA BARCA (1600-1681).
Em suas mãos, os Autos Sacramentais tomaram novo impulso, quase chegando a constituir um novo gênero dramático. Utilizando figuras alegóricas, tornou representáveis conceitos teológicos, pensamentos filosóficos e dogmas cristãos. Os Autos mais característicos de sua obra foram: "El gran teatro del mundo", "Los encantos de la culpa", "La cena de Baltazar" e "La vida es sueño". Calderón também refez algumas peças de Lope, como "El médico de su honra", "El alcalde de Zamalea" e "El maestro de danza". Escreveu algumas "Zarzuelas", gênero novo que surgiu pelo predomínio da música dramática nas representações teatrais, e foi autor de "entremeses" e "bailes".
Decadência
Com a morte de Calderón, começou a decadência do teatro espanhol, como consequência da decadência política e militar do país. Dilui-se a inspiração nacional e as obras surgidas são apenas imitações de peças de Lope, Tirso e Calderón. Além disso, a perseguição dos moralistas contra os abusos que se cometiam nas representações ocasionaram o fechamento paulatino de teatros importantes em Sevilha, Valença, Pamplona e Córdoba, com a destruição dos edifícios e a proibição de qualquer tentativa de reconstrui-los. As pessoas começaram a abandonar os espetáculos, as companhias decresciam, cessando, por conseguinte, todo e qualquer estímulo ao autor teatral. A Guerra da Sucessão transformou-se em guerra civil e durou 13 anos, acabando de arruinar a nação.
Finalmente, as novas doutrinas literárias francesas foram postas ao alcance de todos, em boas traduções, nos jornais, nas obras didáticas e satíricas. Essa expansão trouxe novas formas de dramaturgia.
Chega, deste modo, o Século de Ouro ao fim de suas experiências teatrais, tendo criado definitivamente a verdadeira tradição clássica espanhola.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 38 (1967), edição já esgotada.
quarta-feira, 25 de março de 2009
As doenças do figurino no teatro
Roland Barthes
Gostaria de esboçar aqui, não uma história ou uma estética,
mas uma patologia, ou melhor, uma moral do figurino no teatro.
Proporia algumas regras muito simples que permitirão, talvez,
julgar se um figurino é bom ou ruim, são ou doente.
* * *
Em nome de que julgar os figurinos de uma peça? Pode-se responder o seguinte, (épocas inteiras o fizeram) : a verdade histórica ou o bom gosto, a fidelidade do detalhe ou o prazer dos olhos. Proponho um outro horizonte à nossa moral: a moral da própria peça. Toda obra dramática pode e deve se reduzir ao que Brecht chama de "gestus" social, ou seja, a expressão exterior, material dos conflitos da sociedade que a peça testemunha. Naturalmente compete ao diretor descobrir e manifestar esse "gestus", este esquema histórico particular que se encontra no fundo de todo espetáculo. Ele tem à sua disposição o conjunto da técnica teatral: o trabalho do ator, a marcação, a movimentação, o cenário, a iluminação e os figurinos.
Moral
Construiremos a moral do figurino sobre a necessidade de manifestar em cada ocasião o "gestus" social da peça. Isto quer dizer que atribuiremos ao figurino um papel puramente funcional, e que esta função será mais de ordem intelectual do que de ordem plástica ou emocional. O figurino não é nada mais do que a segunda razão de uma proporção que deve, a todo momento, juntar o sentido da obra ao que ela tem de exterior. Todo figurino, pois, que atrapalha a clareza dessa proporção, contradiz, obscurece ou falsifica o "gestus" social da peça, é um mau figurino. Tudo o que, ao contrário, nas formas, nas cores, nas substâncias e em seu agenciamento, ajuda na leitura do "gestus", tudo isso é bom.
Regras
Como em toda moral, comecemos com a regras negativas. Vejamos o que o figurino não deve ser - admitindo as premissas de nossa moral.
De uma maneira geral, o figurino não deve ser de maneira alguma um álibi, ou seja, uma justificação: o figurino não deve constituir um ponto visual brilhante e denso, ponto para o qual se desviaria a atenção, fugindo da realidade essencial do espetáculo ou do que poderia se chamar a sua responsabilidade; o figurino também não deve ser uma espécie de desculpa, de elemento de compensação cujo sucesso redimiria, por exemplo, o silêncio ou a pobreza da peça. O figurino deve sempre guardar seu valor de pura função, sem estrangular nem "encher lingüiça", não deve nunca substituir a significação do ato teatral por valores independentes. Quando o figurino torna-se um fim e não um meio, começa então a ser condenável. O figurino deve à peça um certo número de serviços: se um desses serviços é exageradamente prestado, se o seridor se torna mais importante do que o amo, então o figurino está doente, sofre de hipertrofia. Vejo mui comumente três doenças, erros ou álibis nos figurinos teatrais.
Hipertrofia da função histórica
A doença básica é a hipertrofia da função histórica. Podemos chamar a isto de verismo arqueológico. Devemos nos recordar que há duas espécies de histórias. Uma história inteligente que recompõe as tensões profundas e os conflitos específicos do passado; e uma história superficial que reconstitui mecanicamente certos detalhes insignificantes; o figurino foi, por muito tempo, o campo predileto para o exercício desta última.
Conhece-se os danos epidêmicos do mal verista na arte burguesa: o figurino, concebido como um acúmulo de detalhes verdadeiros, absorve e depois atomiza toda a atenção do espectador, que se dispersa longe do espetáculo, na região do infinitamente pequeno. O bom figurino, mesmo o histórico, é ao contrário um fato visual global; há uma certa escala da verdade, que não deve ser menosprezada, pois do contrário ela é destruída. O figurino verista que ainda pode ser visto em certos espetáculos de ópera ou operetas, atinge o cúmulo do absurdo: a verdade do conjunto é apagada pela exatidão do detalhe, o ator desaparece sob botões, dobras e sob cabelos falsos (devo dizer que no teatro francês, mesmo o mais evoluído, fico amiúde chocado pela "arqueologia" grosseira das perucas). O figurino verista produz invariavelmente o seguinte efeito: vê-se perfeitamente que é verdadeiro, e não se acredita nele.
A História - a mais profunda - é encontrada sempre nas substâncias e não nas formas e nas cores. Um bom figurino deve saber dar ao público o sentido táctil da coisa que é vista, mesmo de longe. Não há nada de bom num figurinista que refina as formas e as cores sem escolher com cuidado o material empregado; pois é na contestura dos objetos (e não em sua representação plana) que se encontra a verdadeira História dos homens.
Doença estética
Uma segunda doença, também frequente, é a doença da estética, a hipertrofia de uma beleza formal sem relação com a peça. Naturalmente, seria sem nexo deixar de lado no figurino os valores propriamente plásticos: o gosto, o equilíbrio, a ausência de vulgaridade, a procura da própria originalidade. Mas muitas vezes esses valores se tornam um fim e não um meio. De novo, a atenção do espectador é distraída para longe do teatro, artificialmente concentrado numa função parasita; têm-se então um admirável teatro estético e não um teatro humano. Mesmo sendo um pouco puritano demais, considero um sinal inquietante os aplausos a figurinos. A cortina se abre, a vista é conquistada, extasia-se e aplaude-se; mas o que se sabe da verdade, senão que um tal vermelho é bonito, um outro drapejado bem feito? Sebe-se se esse esplendor, esses achados astuciosos estarão de acordo com a peça, se a servem, se concorrem para a sua expressão?
Este tipo de desvio é o que eu chamo de estética Bérad, usada amiúde. Sustentado pelo esnobismo e pelo mundanismo, o gosto estético do figurino acarreta a independência condenável de cada elemento de um espetáculo: aplaudir os figurinos é acentuar o divórcio dos criadores,
é reduzir a obra a uma conjuntura cega de "performances" e de responsabilidades. O figurino não deve seduzir a vista, mas convencê-la.
O figurinista deve pois evitar de ser pintor e costureiro; ele desconfiará dos valores planos da pintura, e evitará as relações de espaço, próprias desta arte, porque a definição mesmo da pintura é que estas relações são necessárias e suficientes; sua riqueza, sua densidade, a tensão mesmo da sua existência excedem em muito a função argumentativa do figurino; e se o figurinista é pintor profissional, ele deve esquecer sua condição quando se torna criador de figurinos; deve muito mais do que submeter sua arte à peça; ele deve destrui-la, esquecer o espaço pictórico e reiventar da estaca zero o espaço lãnhoso ou sedoso do corpo humano; ele deve também abster-se do estilo "grande costureiro", que reina hoje nos teatros vulgares. O "chic" do figurino, a desenvoltura requintada de um drapejado à antiga que parece do atelier de Dior, uma crinolina elegantíssima são álibis nefastos que atrapalham a clareza do argumento, fazem do figurino uma forma eterna e "eternamente jovem", destituído das vulgares contingências da História, e isso tudo é contrário às regras que enumeramos no princípio desta palestra.
Há um fenômeno, aliás, que resume essa hipertrofia do estético: é o fetichismo da maquete, (exposições, reproduções). A maquete não mostra nada do figurino, porque lhe falta o essencial, a matéria. Ver em cena figurinos-maquetes não é bom sinal. Não digo que a maquete não seja necessária; mas é uma operação preparatória que só interessa ao figurinista e à costureira; a maquete deveria ser destruída na cena, salvo para alguns raros espetáculos onde a arte de afresco deve ser procurada. A maquete deveria ser um instrumento e não tornar-se um estilo.
Hipertrofia do suntuoso: dinheiro
Enfim, a teceira doença do figurino teatral é o Dinheiro, a hipertrofia do suntuoso, ao menos de sua aparência. Trata-se de uma doença muito frequente em nossa sociedade, onde o teatro é sempre o objeto de um contrato entre o espectador que paga e o diretor que deve devolver-lhe o dinheiro na forma mais visível; sob esse ponto de vista, é lógico que a suntuosidade ilusória dos figurinos constitiu uma devolução espetacular; vulgarmente, o figurino é mais compensador do que uma emoção ou do que a compreensão intelectual, dificilmente considerados como mercadoria. Desta maneira, quando um teatro vulgariza-se, os seus figurinos tornam-se cada vez mais caros; o espectador vai ver figurinos e é só. Onde está o teatro em tudo isto? Em lugar nenhum; o câncer pavoroso da riqueza o devorou.
Por um mecanismo diabólico, o figurino luxuoso adiciona a mentira à baixeza; já longe vai-se o tempo (sob Shakespeare, por exemplo), onde os atores usavam roupas ricas, porém autênticas dos senhores e dos nobres; hoje a riqueza custa caro demais, contentamo-nos com imitações, isto é a mentira. Desta maneira nem é o luxo mas simplesmente o falso que é hipertrofiado. Sombart indicou a origem burguesa da imitação; é certo, são os teatros pequeno-burgueses que caem na devassidão do luxo (Folies-Bergère, Comédie Française, Teatros líricos). Isto supõe um estado infanti no espectador, ao qual é negado todo o espírito crítico e imaginação criadora. Naturalmente não se pode banir completamente a imitação nos figurinos; mas se recorrermos a ela, devemos ao menos recusar dar crédito à mentira; no teatro nada deve ser escondido. Isto provém de uma regra que sempre produziu, creio eu, o grande teatro; deve-se ter confiança no espectador, e dar-lhe com resolução a poder de criar ele mesmo a riqueza, de transformar o rayon em seda e a mentira em ilusão.
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(Conferência realizada para Les Amis du Théâtre Populaire - em 8 de maio de 1954, em Paris, e no dia 11 de fevereiro de 1955, em Amiens. O presente artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Caernos de Teatro nº 31, 1965, edição já esgotada).
Roland Barthes
Gostaria de esboçar aqui, não uma história ou uma estética,
mas uma patologia, ou melhor, uma moral do figurino no teatro.
Proporia algumas regras muito simples que permitirão, talvez,
julgar se um figurino é bom ou ruim, são ou doente.
* * *
Em nome de que julgar os figurinos de uma peça? Pode-se responder o seguinte, (épocas inteiras o fizeram) : a verdade histórica ou o bom gosto, a fidelidade do detalhe ou o prazer dos olhos. Proponho um outro horizonte à nossa moral: a moral da própria peça. Toda obra dramática pode e deve se reduzir ao que Brecht chama de "gestus" social, ou seja, a expressão exterior, material dos conflitos da sociedade que a peça testemunha. Naturalmente compete ao diretor descobrir e manifestar esse "gestus", este esquema histórico particular que se encontra no fundo de todo espetáculo. Ele tem à sua disposição o conjunto da técnica teatral: o trabalho do ator, a marcação, a movimentação, o cenário, a iluminação e os figurinos.
Moral
Construiremos a moral do figurino sobre a necessidade de manifestar em cada ocasião o "gestus" social da peça. Isto quer dizer que atribuiremos ao figurino um papel puramente funcional, e que esta função será mais de ordem intelectual do que de ordem plástica ou emocional. O figurino não é nada mais do que a segunda razão de uma proporção que deve, a todo momento, juntar o sentido da obra ao que ela tem de exterior. Todo figurino, pois, que atrapalha a clareza dessa proporção, contradiz, obscurece ou falsifica o "gestus" social da peça, é um mau figurino. Tudo o que, ao contrário, nas formas, nas cores, nas substâncias e em seu agenciamento, ajuda na leitura do "gestus", tudo isso é bom.
Regras
Como em toda moral, comecemos com a regras negativas. Vejamos o que o figurino não deve ser - admitindo as premissas de nossa moral.
De uma maneira geral, o figurino não deve ser de maneira alguma um álibi, ou seja, uma justificação: o figurino não deve constituir um ponto visual brilhante e denso, ponto para o qual se desviaria a atenção, fugindo da realidade essencial do espetáculo ou do que poderia se chamar a sua responsabilidade; o figurino também não deve ser uma espécie de desculpa, de elemento de compensação cujo sucesso redimiria, por exemplo, o silêncio ou a pobreza da peça. O figurino deve sempre guardar seu valor de pura função, sem estrangular nem "encher lingüiça", não deve nunca substituir a significação do ato teatral por valores independentes. Quando o figurino torna-se um fim e não um meio, começa então a ser condenável. O figurino deve à peça um certo número de serviços: se um desses serviços é exageradamente prestado, se o seridor se torna mais importante do que o amo, então o figurino está doente, sofre de hipertrofia. Vejo mui comumente três doenças, erros ou álibis nos figurinos teatrais.
Hipertrofia da função histórica
A doença básica é a hipertrofia da função histórica. Podemos chamar a isto de verismo arqueológico. Devemos nos recordar que há duas espécies de histórias. Uma história inteligente que recompõe as tensões profundas e os conflitos específicos do passado; e uma história superficial que reconstitui mecanicamente certos detalhes insignificantes; o figurino foi, por muito tempo, o campo predileto para o exercício desta última.
Conhece-se os danos epidêmicos do mal verista na arte burguesa: o figurino, concebido como um acúmulo de detalhes verdadeiros, absorve e depois atomiza toda a atenção do espectador, que se dispersa longe do espetáculo, na região do infinitamente pequeno. O bom figurino, mesmo o histórico, é ao contrário um fato visual global; há uma certa escala da verdade, que não deve ser menosprezada, pois do contrário ela é destruída. O figurino verista que ainda pode ser visto em certos espetáculos de ópera ou operetas, atinge o cúmulo do absurdo: a verdade do conjunto é apagada pela exatidão do detalhe, o ator desaparece sob botões, dobras e sob cabelos falsos (devo dizer que no teatro francês, mesmo o mais evoluído, fico amiúde chocado pela "arqueologia" grosseira das perucas). O figurino verista produz invariavelmente o seguinte efeito: vê-se perfeitamente que é verdadeiro, e não se acredita nele.
A História - a mais profunda - é encontrada sempre nas substâncias e não nas formas e nas cores. Um bom figurino deve saber dar ao público o sentido táctil da coisa que é vista, mesmo de longe. Não há nada de bom num figurinista que refina as formas e as cores sem escolher com cuidado o material empregado; pois é na contestura dos objetos (e não em sua representação plana) que se encontra a verdadeira História dos homens.
Doença estética
Uma segunda doença, também frequente, é a doença da estética, a hipertrofia de uma beleza formal sem relação com a peça. Naturalmente, seria sem nexo deixar de lado no figurino os valores propriamente plásticos: o gosto, o equilíbrio, a ausência de vulgaridade, a procura da própria originalidade. Mas muitas vezes esses valores se tornam um fim e não um meio. De novo, a atenção do espectador é distraída para longe do teatro, artificialmente concentrado numa função parasita; têm-se então um admirável teatro estético e não um teatro humano. Mesmo sendo um pouco puritano demais, considero um sinal inquietante os aplausos a figurinos. A cortina se abre, a vista é conquistada, extasia-se e aplaude-se; mas o que se sabe da verdade, senão que um tal vermelho é bonito, um outro drapejado bem feito? Sebe-se se esse esplendor, esses achados astuciosos estarão de acordo com a peça, se a servem, se concorrem para a sua expressão?
Este tipo de desvio é o que eu chamo de estética Bérad, usada amiúde. Sustentado pelo esnobismo e pelo mundanismo, o gosto estético do figurino acarreta a independência condenável de cada elemento de um espetáculo: aplaudir os figurinos é acentuar o divórcio dos criadores,
é reduzir a obra a uma conjuntura cega de "performances" e de responsabilidades. O figurino não deve seduzir a vista, mas convencê-la.
O figurinista deve pois evitar de ser pintor e costureiro; ele desconfiará dos valores planos da pintura, e evitará as relações de espaço, próprias desta arte, porque a definição mesmo da pintura é que estas relações são necessárias e suficientes; sua riqueza, sua densidade, a tensão mesmo da sua existência excedem em muito a função argumentativa do figurino; e se o figurinista é pintor profissional, ele deve esquecer sua condição quando se torna criador de figurinos; deve muito mais do que submeter sua arte à peça; ele deve destrui-la, esquecer o espaço pictórico e reiventar da estaca zero o espaço lãnhoso ou sedoso do corpo humano; ele deve também abster-se do estilo "grande costureiro", que reina hoje nos teatros vulgares. O "chic" do figurino, a desenvoltura requintada de um drapejado à antiga que parece do atelier de Dior, uma crinolina elegantíssima são álibis nefastos que atrapalham a clareza do argumento, fazem do figurino uma forma eterna e "eternamente jovem", destituído das vulgares contingências da História, e isso tudo é contrário às regras que enumeramos no princípio desta palestra.
Há um fenômeno, aliás, que resume essa hipertrofia do estético: é o fetichismo da maquete, (exposições, reproduções). A maquete não mostra nada do figurino, porque lhe falta o essencial, a matéria. Ver em cena figurinos-maquetes não é bom sinal. Não digo que a maquete não seja necessária; mas é uma operação preparatória que só interessa ao figurinista e à costureira; a maquete deveria ser destruída na cena, salvo para alguns raros espetáculos onde a arte de afresco deve ser procurada. A maquete deveria ser um instrumento e não tornar-se um estilo.
Hipertrofia do suntuoso: dinheiro
Enfim, a teceira doença do figurino teatral é o Dinheiro, a hipertrofia do suntuoso, ao menos de sua aparência. Trata-se de uma doença muito frequente em nossa sociedade, onde o teatro é sempre o objeto de um contrato entre o espectador que paga e o diretor que deve devolver-lhe o dinheiro na forma mais visível; sob esse ponto de vista, é lógico que a suntuosidade ilusória dos figurinos constitiu uma devolução espetacular; vulgarmente, o figurino é mais compensador do que uma emoção ou do que a compreensão intelectual, dificilmente considerados como mercadoria. Desta maneira, quando um teatro vulgariza-se, os seus figurinos tornam-se cada vez mais caros; o espectador vai ver figurinos e é só. Onde está o teatro em tudo isto? Em lugar nenhum; o câncer pavoroso da riqueza o devorou.
Por um mecanismo diabólico, o figurino luxuoso adiciona a mentira à baixeza; já longe vai-se o tempo (sob Shakespeare, por exemplo), onde os atores usavam roupas ricas, porém autênticas dos senhores e dos nobres; hoje a riqueza custa caro demais, contentamo-nos com imitações, isto é a mentira. Desta maneira nem é o luxo mas simplesmente o falso que é hipertrofiado. Sombart indicou a origem burguesa da imitação; é certo, são os teatros pequeno-burgueses que caem na devassidão do luxo (Folies-Bergère, Comédie Française, Teatros líricos). Isto supõe um estado infanti no espectador, ao qual é negado todo o espírito crítico e imaginação criadora. Naturalmente não se pode banir completamente a imitação nos figurinos; mas se recorrermos a ela, devemos ao menos recusar dar crédito à mentira; no teatro nada deve ser escondido. Isto provém de uma regra que sempre produziu, creio eu, o grande teatro; deve-se ter confiança no espectador, e dar-lhe com resolução a poder de criar ele mesmo a riqueza, de transformar o rayon em seda e a mentira em ilusão.
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(Conferência realizada para Les Amis du Théâtre Populaire - em 8 de maio de 1954, em Paris, e no dia 11 de fevereiro de 1955, em Amiens. O presente artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Caernos de Teatro nº 31, 1965, edição já esgotada).
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terça-feira, 24 de março de 2009
ANAIUG
de Lionel Fischer
Cenário - um espaço a princípio vazio que será delimitado por estacas de madeira no decorrer da ação. No teto, uma grande lona escura.
Personagens:
Voz
Fiéis
Guardas
Deputado
Repórter
Obs: Alguns fiéis serão particularizados no decorrer da ação. Quando isso acontecer, serão denominados Homem e Mulher.
* * *
A peça foi escrita em 1979, a partir do testemunho do repórter Charles A. Krause, que sobreviveu aos acontecimentos que se verificaram na Guiana, no ano anterior, que culminaram no suicídio coletivo de cerca de 900 pessoas. De seu livro Massacre na Guiana foram tiradas a maioria das informações, assim como de matérias escritas por Laurence M.Stern, Richard Harwood e de outros membros do Washington Post. O texto gira em torno do movimento (seita) Templo do Povo, dirigido pelo reverendo Jim Jones.
* * *
ABERTURA
(Quando se abrem as portas do teatro, um grupo de atores se encontra misturado ao público. No palco, sob a luz de um único refletor, se vê um guarda, imóvel. O que o diferencia dos demais habitantes do campus é o fato de usar óculos escuros. O público entra, se senta, mas os atores não. Quando todos tomam conhecimento da presença desse elemento que está em cena, ele se retira. Os atores se dirigem para aquele foco de luz. Todos trazem consigo seus pertences: bolsas, mochilas, cobertores etc.Depois de um tempo, surge um outro guarda)
Guarda - Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo, em nome de toda a comunidade, vos saúda e convida para conhecerem as dependências do campus. Solicita que os objetos de uso pessoal sejam deixados onde se encontram, a fim de que nada embarace vossa caminhada. E ainda hoje o reverendo vos falará pessoalmente. Bem vindos a ANAIUG, irmãos.
(O grupo coloca no chão os seus pertences e sai atrás do guarda. Tão logo isso acontece, surgem três novos guardas que recolhem os pertences dos fiéis. Em seu lugar deixam os uniformes do campus. Depois, saem. Entra novamente o grupo. Constata que seus objetos foram carregados. Vêm as novas roupas. Do gravador, começam a se escutar as palavras do reverendo. O grupo vai trocando as velhas vestimentas pelas novas)
Voz - Meus irmãos...penosa terá sido a vossa jornada e incontáveis os obstáculos que tivésteis que transpor para chegar a Anaiug. Vejo no rosto de cada um de vós a marca da fadiga. Mas também percebo, dentro de cada um de vós, a existência de uma alma transbordante de júbilo, cuja pulsação irresistível vos mantêm de pé, a todos, apesar do corpo que implora, com justiça, que lhe seja facultado o sono. Ambos tem razão, corpo e alma, e a ambos abençôo pela sinceridade de seus anseios. De minha parte, gostaria que o soubésseis, também me foi difícil a espera desse encontro. Não que duvidasse de que viríeis, não. Mas meu coração estava tão impregnado de vossa lembrança que os minutos se convertiam em horas e os dias que me separavam de vós se assemelhavam a séculos. À noite, como o sono me fugisse, costumava vagar pelo campus e a todo momento me voltava na direção de nossas sete portas, como se meus ouvidos tivessem captado o rumor de vossos passos que se aproximavam de uma delas. E essa emoção agia de tal forma sobre todo o meu ser que, se porventura estivesse sendo observado por um cético, ele certamente julgaria estar diante de um louco. E eu não poderia contestá-lo. Pois a minha ansiedade de vós, o meu desejo de vós eram tão imensos que é provável que o meu aspecto causasse realmente espanto a um homem que não crê. Mas quem, em meu lugar, teria agido de outra forma? Até que hoje, finalmente, me encontro de novo diante de vós e vos saúdo de todo o meu coração. Vós fizésteis este lugar e a ninguém mais ele pertence. Aqui aportarão todos os homens cuja ânsia de liberdade não tenha sido totalmente destruída. Aqui aportarão todos os homens cuja fé não tenha sido totalmente conspurcada. Aqui, no meio desses bosques e dessas fontes, todos aqueles que encararem a vida como algo infinitamente além do mero possuir e dominar celebração suas bodas, e serão abençoados pelo murmúrio das águas e das folhas. E a brisa da manhã varrerá de vossa memória esse mundo que acabásteis de deixar. Esse mundo sórdido que nos condiciona ao mal e à violência. Que nos induz ao crime. Que nos rejeita e massacra. Que estabelece hierarquias e classes. Que é surdo aos nossos apelos mais elementares. Que caminha independente da nossa vontade e diante do qual nada mais somos que fantoches. Aqui, no entanto, hão de ser outros os valores. Nós cantaremos e o fogo e a chuva compreenderão as nossas vozes. E dançarão conosco ao som dessa nova música. Aqui, mãos estranhas hão de se tocar com prazer e não se perguntarão se isso é justo. Não. Tudo há de ser justo, se vem do coração. E todos nós, irmanados e conscientes de que um mundo novo está a caminho, nos fecharemos para sempre dentro de nossas próprias consciências e ignoraremos para sempre tudo que existir para além de nossos próprios limites. E a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas, e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste!
(As luzes se apagam em resistência)
CENA 1
(O grupo se encontra espalhado pelo palco. Todos estão felizes. Uns conversam, outros passeiam, alguns executam tarefas. Um fiel surge com um violão e todos começam a cantar. Surge um guarda, que assiste a cena à distância. Um dos fiéis tem sua atenção voltada para esse guarda. O grupo se retira cantando. Ficam em cena o guarda e esse fiel. O primeiro, que usava dois óculos superpostos, tira um deles e o oferece ao homem)
Guarda - Quer experimentar?
Homem - Para que?
Guarda - O sol daqui é muito intenso. Em pouco tempo os olhos se gastam.
Homem - Eu não fui informado disso.
Guarda - Certas coisas é preciso descobrir por iniciativa própria.
Homem - Mas o risco a que estamos nos submetendo é muito grande. Nós deveríamos ter sido alertados.
Guarda - Você está sendo alertado.
Homem - E por que eu, especialmente?
Guarda - Porque nós achamos que você seria dos primeiros a tomar consciência da intensidade do sol.
Homem - Por quê?
Guarda - Intuição.
Homem - Eu agradeço.
Guarda (Recolocando os óculos) - Você é quem sabe.
(O homem sai à procura do grupo, cujo canto não deixamos de ouvir durante toda a cena)
CENA 2
(Todo o grupo se encontra em cena, guardas e fiéis. A ação se passa durante uma das sessões de culto)
Voz - ...e se pretendemos que nossas atitudes sirvam de exemplo ao mundo e apontem o caminho, é indispensável que nenhuma delas dê margem a críticas. Muitos daqueles que objetivamos salvar e dar sentido às suas vidas ainda estão indecisos e conflitados, não tomaram a decisão final e portanto ainda estão sujeitos a serem influenciados negativamente. No estágio crítico em que se encontra a nossa civilização, qualquer passo em falso pode ser o último. Todos querem e temem, ao mesmo tempo. E esse temor lhes centuplica o grau de exigência. E no fundo eles estão certos. É preciso que tudo, em nós, demonstre segurança, paz e harmonia. Que nada escape ao nosso controle. Só assim conseguiremos quebrar essa barreira que ainda nos separa de tantos irmãos potenciais, cuja vinda para Anaiug nos encheria de felicidade. E seria mais uma resposta a todos aqueles que não se cansam de nos perseguir. Não é verdade, meus irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - E por que ainda não conseguimos eliminar de vez todos os obstáculos? Alguém saberia responder? A resposta é fácil: porque muitos de nós ainda cometem certas falhas que os inimigos da seita, de algum modo, tomam conhecimento e imediatamente saem divulgando por todos os meios de comunicação. E não me refiro às falhas mais graves, apenas, mas a todas. A senhora, por exemplo: por que prendeu os cabelos para a sessão de culto?
Mulher - Pensei que não houvesse mal, pai!
Voz - A senhora não acha que esse penteado lhe dá uma aparência sofisticada?
Mulher - Não imaginei que o resultado pudesse ser esse, pai!
Voz - Talvez, no fundo, a senhora deseje se sobressair perante os demais.
Mulher - Não, pai, não é esse o meu desejo!
Voz - Qual é, então, o desejo da senhora?
Mulher - Servir a Deus através dos ensinamentos do pai!
Voz - Isso é tudo quanto a senhora deseja?
Mulher - Tudo, pai!
Voz - E podemos confiar em suas palavras?
Mulher - Eu nunca lhe menti, pai, nunca! Sei que muitas vezes cometi falhas, que ainda as cometo, mas sempre involuntariamente!
Voz - Eu suponho que a senhora já tivesse se conscientizado de que não existem ações involuntárias. Na maioria das nossas últimas sessões esse assunto foi abordado exaustivamente. A senhora, por acaso, estava distraída?
Mulher - De modo algum, pai! Eu não perdi uma única palavra!
Voz - A senhora não terá adormecido, por alguns instantes, involuntariamente?
Mulher - Se ainda é possível merecer alguma consideração do pai, eu imploraria que me acreditasse! Jamais adormeci em nenhuma das sessões!
Voz - Mais viu alguém fazê-lo, certamente.
Mulher - Não...não vi...eu jamais pude desviar meus olhos do pai! Nunca reparei sequer em quem estava do meu lado, tal o interesse com que sempre acompanhei as nossas sessões de culto!
Voz - As palavras dessa senhora merecem a nossa confiança, irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Palavras com as quais ela afirma jamais haver adormecido durante uma sessão de culto, assim como nunca ter percebido alguém fazê-lo?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Por favor, eu pediria que a senhora se aproximasse um pouco mais. (A mulher se aproxima). A senhora sabe o que eu tenho nas mãos?
Mulher - Não, meu pai, não consigo distinguir direito!
Voz - É um pequeno envelope, dentro do qual existem algumas fotos. Elas foram tiradas durante as últimas dez sessões de culto. Acabam de me ser entregues. Eu ainda não as vi. Como a senhora pode constatar, o envelope ainda se encontra fechado.
Mulher - É verdade, pai!
Voz - Eu vou abri-lo agora. Examinar o material. E chegar então à uma conclusão mais definitiva sobre o grau de lealdade dos irmãos.
Homem - Meu pai!
Voz - Sim..?
Homem - Eu realmente vi...algumas vezes...que nem todos guardavam a atenção devida durante o culto.
Voz - O irmão se importaria de aclarar um pouco mais a expressão “guardavam a atenção devida...?”
Homem - Bem, pai, o que eu quero dizer é que...normalmente...durante as últimas horas...não sempre, mas muitas vezes, eu surpreendi diversos irmãos adormecidos. Alguns, inclusive, roncando...o que me tirava a concentração e impedia de me aprofundar nas palavras do pai.
Voz - Diversos irmãos, o senhor disse...portanto, não lhe seria difícil reconhecer alguns...um, que seja.
Homem- Não, não seria difícil...sei que existem vários, aqui presentes...mas realmente só consegui guardar com segurança um único rosto.
Voz - E a quem pertence?
Homem - A mim. (Todos se olham espantados. Um dos guardas se retira)
Voz - Levantem-se, meus irmãos. Afastem-se um pouco para que eu possa vê-lo melhor. O que dizer dessa atitude? Qual a explicação para uma falha dessa natureza? O senhor perdeu a fé?
Homem - Não, pai.
Voz - O Senhor deixou de acreditar em algo daquilo que o trouxe até nós?
Homem - Não, pai.
Voz - Que justificativas o senhor poderia então nos apresentar?
Homem - Nenhuma além do sono, pai.
Voz - Teriam as minhas palavras perdido a importância?
Homem - As palavras do pai sempre alimentaram meu espírito e não foi ele que se desligou, mas meu corpo.
Voz - Pois o senhor aprenderá a controlá-lo melhor daqui para frente. (Entra o guarda que havia saído) Enquanto disciplina os músculos, o senhor deverá fazer também um pequeno esforço de memória. (O guarda que entrou trouxe um enorme chapéu amarelo. Coloca-o na cabeça do homem) Esse envelope que o senhor está vendo, já não me interessa mais. Ao menos por ora. Eu quero os nomes de todos aqueles cujo sono se sobrepõe à minha mensagem. (Depois de um longo tempo, as luzes começam a cair em resistência)
CENA 3
(O grupo se encontra trabalhando. Alguns guardas fiscalizam. Os fiéis empunham bastões, simbolizando os objetos de trabalho - pás, enxadas, etc.De repente, um homem tomba. O trabalho é interrompido, mas ninguém o socorre, com exceção de um único elemento, que se aproxima e tenta ajudar. Os guardas o afastam. Em seguida eles pegam o homem que caíra e o recolocam em sua posição inicial. O trabalho recomeça. Pouco depois, o homem cai definitivamente. Dois guardas o retiram de cena. Um terceiro dá por encerrado o trabalho. Os fiéis se dirigem para as extremidades do palco e encaixam seus bastões nos orifícios existentes em ripas de madeira pregadas no chão. Começam a se escutar os primeiros acordes de um cântico)
CENA 4
(O grupo todo se encontra em cena, com exceção dos guardas. Os fiéis entoam um cântico, que progressivamente se torna cada vez mais entusiasmado)
Havendo uma fé, em mim
Havendo um lugar, assim
Havendo o desejo, de transformar
Os sonhos se tornam, reais
Os medos e angústias, se esvaem
E a força do novo, se impõe
Se impõe nas montanhas, nos mares
Se infiltra nos campos, nos lares
Mostrando que a hora, é de mudar
Portanto não tema, irmão
Venha conosco, nos dê a mão
Viver é preciso, viver
Viver sem temor, viver
Sem ódio e rancor, viver
E a todos os homens, mostrar
Que tudo é possível, para aquele que crê
Que tudo é infinito, para aquele que crê
Que só faz sentido, quando se crê
Não viva sozinho, não há por quê
Não lute sozinho, não há por quê
Existe um lugar, para você
Em meio aos bosques, para você
Junto das fontes, para você
Com flores e frutos, só para você
Existe uma estrada, é só partir
Existe uma estrela, é só seguir
Existe o amor, a descobrir
(O mesmo homem que havia tentado ajudar o indivíduo que caíra na cena anterior, interrompe o cântico)
Homem - Existe algo mais, além do amor, a descobrir! Um homem sumiu depois do culto e nunca mais foi visto. Teria ele se perdido nessa estrada? Um outro tombou durante os trabalhos forçados. Teria ele duvidado do brilho dessa estrela? Ou quem sabe ambos desapareceram por haverem descoberto o amor?
Fiel 4 - Eles não estão aqui. Mas isso não lhe autoriza a afirmar que tenham desaparecido. Talvez tenham se afastado.
Homem - Talvez... e em vista disso nós cantamos. Há um mês que não nos permitem trocar de roupa. Nós estamos imundos, famintos! Mas que importância podem ter a imundície e a fome? O essencial é cantar! Mas o quê? A quem, afinal?
Fiel 1 - O cansaço e a fome atestam nossa lealdade!
Homem - No início, assim que nós chegamos aqui, a nossa música refletia a essência do que éramos, do que sentíamos, do que esperávamos encontrar nesse lugar! Hoje, ela apenas reflete aquilo que nos tornamos: um agrupamento de sonâmbulos a quem o terror impõe diariamente a
representação de uma farsa!
Fiel 3 - Nada é inconciliável para o homem que acredita!
Fiel 4 - Tudo é possível para aquele que não perdeu a fé!
Fiel 3 - E todos os que crêem sabem perfeitamente que só atingirão a luz depois de haverem conhecido as trevas!
Homem - Todos aqueles cuja fé suplanta a razão no fundo não sabem nada! Se julgam os mais sábios, mas são na verdade os mais ignorantes!
Fiel 5 - E quem é você para falar de fé? Você, que todos nós sabemos que há muito perdeu a razão?
Homem - Se eu perdi, é sinal de que um dia eu a tive. E graças a isso, eu pude ter fé. A minha crença, assim como a de vocês, se a memória não fugiu de todo, nasceu da esperança de podermos um dia, juntos, em algum lugar, estabelecer uma comunidade que levasse em consideração a individualidade de cada um, que fosse fruto da consciência de cada elemento do grupo. E que portanto seria o resultado de nossas aspirações e anseios.
Fiel 2 - Todos nós nos sentimos realizados e felizes aqui!
Fiel 1 - Todos os nossos projetos e sonhos se concretizaram!
Fiel 4 - Tudo o que nos foi prometido se tornou real!
Homem - Não é verdade! O que aconteceu, de fato, é que nós não fizemos esse lugar! Ele é que nos fez, nos moldou, já estava pronto desde o primeiro dia!
Fiel 5 - Você não sabe o que diz!
Homem - Sei sim! Por uma questão de esperteza, apenas, para ganhar a nossa confiança definitiva, durante um certo tempo ele camuflou seus verdadeiros propósitos, nos iludiu com encenações habitualmente preparadas, para que nos entregássemos por inteiro, sem o menor grau de desconfiança! E quando percebeu que já nos tinha enfeitiçado definitivamente, então aí começaram a aflorar os verdadeiros objetivos deste lugar, que são os de explorar, escravizar, reduzir toda a comunidade à mais objeta forma de dependência possível! (Um fiel se afasta do grupo)
Fiel 3 - Chega! Nada nos abriga a escutá-lo! Como se já não bastasse a interrupção do cântico, você ainda se julga no direito de nos ferir, de nos magoar naquilo que para nós é mais sagrado!
Fiel 4 - Você perdeu a razão e procura nos impor os seus desatinos!
Fiel 5 - Mas fique certo de que nada abalará nossa confiança e que qualquer tentativa nesse sentido redundará em fracasso!
Fiel 2 - Não acreditamos em nada do que você disse!
Fiel 4 - São palavras de um louco!
Fiel 3 - De um cego, sobre cuja cabeça já vislumbramos a espada do Senhor!
Homem - Se algo tiver que se abater sobre minha cabeça, como já aconteceu a tantos outros, vocês podem estar certos de que não será uma espada, muito menos empunhada pelo Senhor, que permite dúvidas e não pune os que duvidam, mas ouve e aconselha!
Fiel 5 - Deus é infinito em sua bondade, mas não em sua tolerância!
Homem - Quem lhe ensinou isso? O “Deus” de vocês? Que se vale de uma guarda pessoal para manter sua liderança? (Volta o fiel que havia saído) Que trucida covardemente não apenas fatos mas até simples suspeitas?
Fiel 2 - Não seja infame!
Homem - Infames são aqueles que se venderam, aceitaram a incumbência de vigiar os demais! Que se sujeitaram a preparar relatórios fictícios só para darem mostras de eficiência e lealdade ao “pai”!
Fiel 1 - Ninguém jamais fez isso, nenhum de nós!
Homem - Fizeram sim!
Fiel 3 - Traidor!
Homem - Forjaram documentos que foram responsáveis por uma infinidade de violências injustificáveis!
Fiel 4 - Você pagará caro essa insolência!
Homem - Vocês se transformaram em nulidades que se espreitam, se vigiam, decoram frases incompreensíveis que repetem feito marionetes!
Fiel 5 (Aos demais)- Silêncio! (Se escuta um rumor de passos)
Homem - Tudo isso em nome da fé! Mas afinal, que crença é essa? A do terror? (Surgem os guardas) Não se inquietem...Muito em breve nós saberemos quem tinha razão...(Os fiéis saem)
CENA 5
(O homem está no centro. Os guardas o rodeiam, sob quatro focos de luz. Os inquisidores serão denominados A - B - C - D)
A - Que noite linda, hoje...
B - Linda...
C - Encantadora...
D - Perfeita.
B - Você não acha? (tempo)
A - Aposto que ele vai dizer que sim.
C - Aposto que ele vai dizer que não.
A - E seria ele tão insensível?
B - Logo ele?
D - Não creio.
C - É possível que eu tenha me enganado.
A - É mais do que provável. (tempo)
D - Que silêncio...
B - Não se escuta nada...
A - Como se estivéssemos em tempo de guerra...
C - À espera de bombardeios.
Homem - Por que é que vocês usam sempre esses óculos?
A - Óculos?
C - Nós?
B - Mas que absurdo!
D - Que coisa estranha!
Homem - Por que ninguém jamais tem acesso ao verdadeiro rosto de vocês?
C - Acesso?
D - Ao nosso verdadeiro rosto?
A - Mas que absurdo!
B - Que coisa estranha!
Homem - Qual é o significado dessas máscaras?
B - Num dia de culto você não se ajoelhou junto com os outros.
D - Se ajoelhou, mas pouco depois.
A - Você se distraiu?
C - Ou você não quis?
Homem - Eu me distraí.
A - E por ocasião de um dos trabalhos coletivos, quando um irmão fraquejou miseravelmente...foi também por distração que você tentou intervir?
Homem - Não! Quando o irmão exausto não suportou mais a massacrante carga de trabalho que lhe tinha sido imposta e tombou desacordado sobre as pedras eu...
B - Massacrante carga de trabalho!
D - Imposta!
A - É assim que você agora se refere às nossas ocupações diárias?
Homem - “Nossas”? Eu jamais pude perceber nenhum de vocês carregando uma enxada, ou reparando uma cerca, ou construindo fosse o que fosse! Vocês só perambulam pelo campus, como fantasmas, espreitando cada movimento que fazemos!
C - É indispensável seguir as regras!
A - A que todos estamos sujeitos!
D - Que todos acatamos sem fazer perguntas!
B - E sem exigir respostas!
Homem - Não foi para isso que eu vim aqui, para ouvir regras!
C - Faz parte da organização do campus!
Homem - Eu fui informado de que essa organização partiria da consciência de cada um.
A - Consciência...
Homem - E que ela seria fruto de nossa liberdade individual!
B - Você não fala de organização, fala de anarquia!
Homem - Eu não imaginava que esses conceitos fossem ser empregados aqui.
C - O que você imaginava ou deixava de imaginar não nos interessa!
A - O que existe são os fatos!
D - E eles demonstram que sua conduta se afasta perigosamente da de todos os demais!
B - O que significa uma exceção!
A - E o importante aqui, como acabamos de lhe dizer, são as regras!
Homem - Donde se conclui que o direito à dúvida foi banido desse lugar!
C - Dúvida?
A - Com que então...você duvida!
Homem - Pensei que fosse permitido.
D - O seu problema é pensar demais.
Homem - E o de vocês é não pensar nunca! É essa a condição imposta para poder usar esse disfarce? Que confere tantos poderes?
A - Cuidado com o que você diz...
Homem - Mais uma regra que eu tenho que levar em conta? Faltam muitas?
C - A sua audácia lhe faz esquecer as normas mais elementares do bom senso.
D - E lhe afasta do único caminho que ainda poderia lhe ser útil.
Homem - E que caminho é esse?
A - O da prudência...
Homem - Prudência e covardia, ao que eu saiba, não foram ainda oficializadas como sinônimos.
C - Então você se nega?
Homem - A quê?
A - A colaborar.
Homem - Com o quê?
B - Com a ordem.
Homem - Não a conheço.
D - Mas conhecerá em breve.
Homem - É possível.
B - É mais do que provável.
Homem - E pelo que imagino será meu último conhecimento...
A - Depois dele haveria algum outro que valesse a pena?
Homem - O da verdade.
D - A ordem é a única verdade possível.
Homem - Mas nem todas as ordens foram feitas para todos os tempos! E as que vocês tentam nos impingir pela força são as mesmas do mundo que julguei haver abandonado para sempre!
C - Você lamenta...?
Homem - É tarde demais.
B - Tem razão.
A - Para você, ao menos, é tarde demais.
Homem - E quanto aos outros?
D - Esses refletirão bastante antes de extravasarem suas dúvidas.
Homem - Faz parte do método?
C - A experiência é tudo.
A - Você teria algo mais a acrescentar?
Homem - E adiantaria? (Os guardas começam a se aproximar. Do gravador voltamos a escutar algumas palavras proferidas pelo reverendo quando da chegada do grupo)
Voz - ...e a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste...(Nesse momento os guardas se fecham sobre o homem, que emite um grito desesperado que agoniza pelo espaço. O corpo do homem tomba. Os guardas se afastam sem pressa)
CENA 6
(Pouco depois que os guardas saem, a mulher do homem assassinado surge. Ela se abraça ao corpo do marido. No gravador, começa a se escutar a voz do Pai)
Voz (Palavras textuais do reverendo Jim Jones) - A noite está clara e estrelada. Há tanta paz aqui. Não pode haver nada tão satisfatório quanto levar esta vida comunitária. Amo o trabalho. É profundamente triste que a vasta maioria do povo se submeta à arregimentação e extrema tensão de uma sociedade altamente tecnológica. No entanto, aqueles que se atrevem a viver ideais elevados, ao invés de se contentarem com a mediocridade, apatia e indiferença que são a ordem do dia, tornam-se alvos da perseguição vingativa, pois a vida em cooperação proporciona extrema segurança...(Um grupo de fiéis se aproxima) Quando não se tem ideais, vive-se sozinho e morre-se rejeitado...(Ao perceber a aproximação do grupo, a mulher, enfurecida, começa a rasgar as roupas do morto e a entregar os farrapos a cada um) De certa forma, viemos para cá afim de não contribuirmos para a destruição que nosso país de nascimento continua a infringir às nações menos prósperas. Como se pode viver livre de culpa quando os nossos próprios recursos servem para patrocinar atrocidades nos outros países? A vida sem princípios é desprovida de sentido. Não se pode saber o que é a felicidade até se viver plenamente. Encontramos a segurança e a realização na coletividade e podemos ajudar a desenvolver uma nação agrícola pacífica. Nós passamos além da alienação e encontramos um meio de viver que alimenta a confiança, o que não pode existir numa sociedade que se tornou cínica e indiferente...
CENA 7
(Todo o elenco está em cena. O ambiente está preparado para uma festa. Deve-se perceber, pelo clima exagerado de felicidade, que há tensão no campus. Presentes o deputado e o repórter)
Guarda 1 – Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo pede que os senhores o desculpem por não poder estar aqui para recebê-los. Alguns assuntos de ordem administrativa inadiáveis reclamam sua presença. Tão logo os resolva ele os receberá com prazer. Enquanto isso os senhores estão autorizados a entrevistar os irmãos que desejarem, assim como a visitar as dependências do campus.
Deputado - Transmita ao reverendo os nossos mais sinceros agradecimentos. Nossa missão é de paz. Não nos encontramos aqui para julgar, apenas para informar a opinião pública.
Guarda 2 - O reverendo confia na sinceridade dos senhores. E ele, mais do que ninguém, está ansioso para que a opinião pública seja informada com rigor à cerca das nossas atividades em Anaiug.
Deputado - Nós agradecemos a confiança e reafirmamos que nossos propósitos são os de informar, sem emitir qualquer espécie de julgamento pessoal.
Guarda 1 - Em nome de toda a comunidade, o reverendo lhes deseja boas vindas e que os senhores possam exercer suas atividades dentro da mais absoluta paz e cordialidade.
(Saem os guardas. O grupo se dispersa, menos uma fiel, que se aproxima)
Mulher (Ao Repórter) - O Senhor também é deputado?
Repórter - Não, sou repórter.
Mulher - Ah, sim.
Deputado - Nós estamos trabalhando juntos nesse caso.
Mulher - Caso? Como assim?
Deputado - Bem... a senhora deve estar informada de que está havendo uma grande confusão em torno da seita. Ao menos lá...
Mulher - O que nós sabemos é que os inimigos de sempre mantêm as acusações de sempre. É possível que elas tenham se intensificado um pouco ultimamente. Mas nós já estamos habituados.
Deputado - Elas nunca foram tão contundentes. Nem tão numerosas.
Mulher - O mundo não suporta que lhe desafiem os dogmas. E aqueles que ousam fazê-lo devem estar preparados para tudo.
Deputado - A senhora parece muito tranqüila quanto à opinião pública. Como se não lhe atribuísse a menor importância.
Mulher - O senhor sabe que o que caracteriza a opinião pública é justamente não ter opinião.
Deputado - Isso não a impede de aderir a alguma causa.
Mulher - Claro que não, pois isso é tudo que ela pode fazer. Aderir...
Deputado - Quando isso acontece, ela pode se tornar perigosa.
Mulher - Nós sabemos. A sua inépcia para criar se revela proporcional à sua obstinação em seguir. É por isso que todos temem tanto a opinião pública e procuram sempre estar do seu lado. A sua força destruidora é incomparável.
Deputado - A senhora acredita que esteja havendo uma perseguição ao movimento de vocês?
Mulher - É mais do que óbvio.
Deputado - Com que finalidade?
Mulher - O sistema não perdoa que lhe seja contestada a autoridade.
Repórter - A senhora se importaria se nós falássemos um pouco sobre algumas das acusações que estão sendo feitas a Anaiug?
Mulher - Absolutamente. Nós estamos preparados para responder a qualquer pergunta.
Deputado - Muito bem. Uma das coisas de que mais se fala diz respeito aos trabalhos coletivos. Como são distribuídos esses trabalhos?
Mulher - Para começar, o termo “trabalho” não é empregado aqui. O que existe são atividades coletivas, que cada indivíduo opta por fazer. E que não são fiscalizadas por ninguém.
Deputado - E em que consistem essas atividades coletivas?
Mulher - Nós formamos uma comunidade agrícola. Portanto, tudo se relaciona com o campo. Nós cultivamos a terra e vivemos do que ela nos dá. (Num outro ponto do palco vemos alguns homens que trabalham. Um guarda se encontra próximo, numa atitude discreta)
Deputado - O que é que aqueles homens estão fazendo?
Mulher - Eles preparam o terreno para uma nova horta.
Repórter - E aquele, um pouco afastado? O que usa óculos...por que ele apenas assiste?
Mulher - Ele não assiste, apenas. É um membro mais antigo que orienta os mais novos.
Repórter - Claro...alguém tem que orientar. (Eles desviam a atenção do grupo. Um homem cai)
Deputado - E essas atividades coletivas obedecem a uma carga horária pré-estabelecida? (O guarda se aproxima e ergue o homem)
Mulher - Não, cada um decide seu horário.
Repórter - Dizem que o número de horas é desumano... (O guarda torna a se afastar)
Mulher - O senhor admite que aqueles homens que acabou de ver possam estar sendo submetidos à uma carga horária desumana? (Eles se voltam para o grupo) Examinem um por um: não é evidente o seu prazer e a sua alegria com o que fazem?
Deputado - Aparentemente, sim. (As luzes no grupo se apagam)
Mulher - Aparentemente, o senhor diz...Ah, os políticos! São os seres mais desconfiados que existem, os mais céticos. Nem a evidência objetiva parece possuir qualquer valor para eles.
Deputado - Nunca lhe aconteceu assistir a uma representação brilhante de um texto medíocre?
Mulher - É possível que no teatro uma boa encenação consiga disfarçar um texto ruim. Mas será que na vida esse mecanismo é possível?
Deputado - Depende dos atores.
Mulher - Para o senhor, então, Anaiug seria pouco mais que um grande palco onde estaria se desenrolando uma gigantesca farsa?
Deputado - Eu ainda não tenho opinião formada. É a primeira vez que venho aqui.
Mulher - Isso não significa que o senhor já não tenha uma opinião formada. Seguindo seu raciocínio, o senhor poderia perfeitamente estar desempenhando o papel de um homem interessado, curioso, mas que no fundo já chegou aqui com seu veredicto pronto.
Deputado - Não é o caso.
Mulher - Esperemos que não.
Repórter - É verdade que as sessões de culto são obrigatórias?
Mulher - Nada é obrigatório aqui. Todas as nossas atividades são uma fonte inesgotável de prazer.
Repórter - A imprensa tem divulgado com insistência que o número diário de horas de culto aumentou consideravelmente nos últimos tempos. É verdade?
Mulher - Por insistência nossa. E mesmo estando adoentado ultimamente o reverendo jamais se negou a atender-nos. Ainda que em detrimento de sua própria saúde.
Repórter - Há rumores de que o reverendo estaria sofrendo de câncer.
Mulher - O seu mal não foi ainda diagnosticado. Talvez não passe de um esgotamento nervoso por excesso de trabalho e preocupação.
Deputado - E como transcorrem essas sessões?
Mulher - Nós rezamos, cantamos, escutamos as palavras insubstituíveis do reverendo...comentamos nosso dia-a-dia, procuramos resolver em conjunto todos os problemas eventuais...enfim, como uma verdadeira família.
Deputado - E não se verificam incidentes durante essas sessões?
Mulher - O que é que o senhor quer dizer com “incidentes”?
Deputado - Nós fomos informados de que muitas vezes acontecem punições e castigos. Que as falhas cometidas pelos irmãos são punidas publicamente e que essas punições vão desde a humilhação até castigos físicos, que muitas vezes acarretam a morte.
Mulher - Chega a ser fantástica a imaginação desses senhores da imprensa.
Repórter - Eles se basearam em depoimentos de antigos membros da seita que se revoltaram e resolveram contar o que sabiam.
Mulher - Os antigos membros da seita normalmente se colocam a serviço de uma nova causa, o que os faz perder a memória e inventar absurdos desse tipo.
Repórter - Com o que então todos eles não passariam de consumados mentirosos? Que estariam agindo dessa forma em função de uma nova causa?
Mulher - É o que imaginamos.
Repórter - E que causa seria essa?
Mulher - Isso não podemos saber. Eles não informaram?
Deputado - Nós soubemos da existência de poços em que membros da seita ficariam mergulhados por vinte e quatro horas para se penitenciarem de erros cometidos.
Mulher - Nos poços de Anaiug só são mergulhados baldes. E a água que neles se encontra serve apenas para beber, nunca para torturar.
Repórter - Como é que o reverendo reage a todas essas acusações?
Mulher - Com tranqüilidade. Ele tem consciência da grandeza de sua obra e já imaginava que as críticas viessem em proporção à sua importância.
Repórter - E se elas se tornarem insuportáveis?
Mulher - O processo agora é irreversível. Os membros da seita aprenderam a lição de uma vida comunitária e aos nossos olhos a atuação desse gigantesco coral é desprezível. O barulho ensurdecedor das vozes reacionárias se dispersará como as nuvens de tempestade, que amedrontam por um breve instante, mas cujo efeito é passageiro.
Deputado - É verdade que inúmeras vezes foram encenados suicídios coletivos?
Repórter - Disseram-nos que os membros da seita seriam forçados periodicamente a ingerir líquidos que conteriam venenos, a fim de serem testados em sua lealdade ao reverendo.
Mulher - A resposta a esse turbilhão de insultos e acusações é a nossa serenidade. Aos senhores, aqui presentes, nós abrimos nossos corações e nossas portas. São livres para visitar todo o campus, conversar com quem quiserem. Tudo lhes está sendo facilitado para que os senhores possam chegar à uma conclusão real e justa quanto à nossa organização. Ninguém lhes obstruirá o caminho. A verdade está aqui, diante dos senhores, nas nossas instalações impecáveis, nas nossas colheitas abundantes, no sorriso dos velhos e das crianças. Enfim, em tudo o que o nosso amor e a nossa fé foram capazes de construir. Nós esperamos que os senhores sejam imparciais e informem o mundo do que realmente viram e sentiram em Anaiug e não do que ouviram falar. (Tempo) Agora eu preciso me retirar. Mesmo num dia como o de hoje eu não devo me esquecer da minhas ocupações. Se precisarem de algo, qualquer irmão poderá lhes ajudar. Bem vindos a ANAIUG, irmãos. (E sai)
CENA 8
Repórter - Mulher estranha...quem será?
Deputado - Não sei...mas decorou perfeitamente o papel.
Repórter - Você acha que ela mentiu?
Deputado - Você tem alguma dúvida?
Repórter - Bom, eu suponho que grande parte das informações que ela nos prestou sejam falsas. Mas quais, exatamente? Por ora, é a palavra dela contra a dos outros.
Deputado - É evidente que ela recebeu instruções, não veio até nós por acaso. Foi selecionada.
Repórter - Eu sei, não é possível que esse lugar seja tão perfeito. Mas o problema é que cabe a nós demonstrar o contrário. E para isso nós precisamos de fatos. Sem eles a nossa viagem terá sido uma perda de tempo.
Deputado - Pois é, nós precisamos de fatos. Mas onde buscá-los?
Repórter - O ideal seria se nós pudéssemos documentar algo, fotografar, filmar, para sairmos daqui com algumas provas concretas.
Deputado - Mas se é verdade mesmo que todo o campus nos será aberto é sinal de que todo ele se encontra preparado para nos transmitir uma determinada imagem. Portanto, nessas condições, filmar ou fotografar só traria benefícios para eles.
Repórter - Eu não acredito que todo o campus nos seja aberto. Afinal de contas, nós possuímos dezenas de depoimentos de antigos membros da seita em que eles afirmam existir, em Anaiug, locais especialmente destinados a punições e castigos. Construídos com essa única finalidade. Alguns chegaram até a denunciar a existência de depósitos de armas!? É só uma questão de descobrir...
Deputado - Você fala como se isso fosse a coisa mais simples. Você se esquece de que há muito tempo já que eles sabiam que nós viríamos? O elemento surpresa não existe mais...
Repórter - Muito bem, suponhamos que eles não queiram nos mostrar determinado pavilhão. Nós insistimos um pouco, mas ainda assim eles se negam, alegando qualquer coisa. Isso já seria um trunfo a nosso favor. A partir daí tudo se limitaria a descobrir alguém que se dispusesse a nos levar até lá!
Deputado - O seu otimismo é impressionante...
Repórter - É tudo uma questão de fé...(Ambos sorriem) Nós já sabíamos que seria muito difícil. Se trata, apenas, de não desanimar.
Deputado - O que é que você sugere?
Repórter - Eu proponho que a gente converse com aquela mulher.
Deputado - Que mulher?
Repórter - Aquela, sentada logo ali adiante. Ela acompanhou toda a nossa conversa, desde o início.
Deputado - E daí?
Repórter - Daí que foi a única. Todos os demais passam por aqui como se nem nos vissem!? Ela, ao menos, agiu diferente. Quem sabe?
Deputado - Bem, nós podemos tentar.
Repórter - Afinal, foi para isso que viemos. (Eles se dirigem à mulher)
CENA 9
Repórter - Bom dia.
Mulher - Boa tarde.
Repórter - Tem razão, já são quase quatro horas.
Mulher - Quatro horas... mais um pouco e eu lhes daria boa noite.
Repórter - Tão cedo?
Mulher - Os dias em Anaiug são curtos, mas as noites...
Repórter - A senhora se importaria se conversássemos um pouco?
Mulher - Seria um prazer.
Repórter - A senhora já deve saber quem somos nós.
Mulher - Claro, todos aqui sabem quem são os senhores. Há muito tempo que todos se preparam para recebê-los.
Deputado - Se preparam, a senhora disse?
Mulher - Há pelo menos três meses que só se vive em função desse encontro.
Deputado - E seríamos nós tão importantes assim?
Mulher - Pelas palavras do reverendo....
Repórter - E de que forma foi feita essa preparação?
Mulher - Durante as sessões de culto. O pai nos dizia que mais cedo ou mais tarde nós receberíamos a visita de pessoas importantes e era preciso estar preparado.
Repórter - E a que horas se realizavam essas sessões?
Mulher - Durante a noite, como sempre.
Deputado - Por quanto tempo?
Mulher - Muito tempo...às vezes, a noite inteira.
Deputado - E todos compareciam?
Mulher - Claro! Quem é que gostaria de usar o chapéu amarelo?
Repórter - Chapéu amarelo...o que significa isso?
Mulher - Significa que quem o usa perde o respeito de todos, passa a ser evitado até...resolver ser bom de novo.
Deputado - E quando surgiu esse hábito?
Mulher - Faz tempo...
Repórter - A senhora já usou esse chapéu?
Mulher - Eu não, mas um amigo meu...usou.
Repórter - E o que foi que aconteceu com esse seu amigo?
Mulher - Ele nunca mais foi visto.
Deputado - Como assim?
Mulher - Deve estar ainda no pavilhão número três.
Repórter - Por que no pavilhão número três?
Mulher - Porque é para lá que eles vão.
Repórter - Eles quem?
Mulher - Os que cometem alguma falha...deixam de ser bons...ou que duvidam...o pai sempre nos diz que fé e disciplina devem caminhar de mãos dadas.
Deputado - Aonde é que fica o pavilhão número três?
Mulher - Depois do lago. É o mais afastado. E também o menor. Uma vez eu fui até lá, sem que me vissem e espiei por uma das janelas.
Repórter - E o que foi que a senhora viu?
Mulher - Nada...estava muito escuro. Dizem que há um porão lá dentro.
Repórter - Quem lhe disse isso?
Mulher - Meu marido.
Deputado - Será que nós poderíamos falar com ele?
Mulher - Com ele? É difícil...
Deputado - Por quê?
Mulher - Ele foi embora...
Repórter - Ele não teria sido forçado a usar o chapéu amarelo?
Mulher - Não...nele não colocaram o chapéu amarelo.
Repórter - E o que foi que fizeram com ele?
Mulher - Foi bem aqui...numa noite...nós estávamos reunidos e eles o levaram...
Deputado - Para o pavilhão número três?
Mulher - Não sei.
Repórter - E quem o levou?
Mulher - Os homens de óculos.
Repórter - Porque é que eles usam isso?
Mulher - O sol daqui é muito intenso...em pouco tempo os olhos se gastam.
Deputado - E os poços de Anaiug? Para que servem, exatamente?
Mulher - Os poços de Anaiug são tão profundos... (Entra um homem)
Homem - Senhor deputado! Eu gostaria de lhe pedir uma coisa!
Deputado - Pois não.
Homem - Eu queria ir embora. Por favor, enquanto ainda há tempo. Amanhã, me leve com o senhor.
Deputado - Eu não estou entendendo. De que se trata?
Homem - É a minha última chance!
Deputado - Calma, meu amigo!
Homem - Guarde esse papel. Nele eu escrevi meu nome. Amanhã, aconteça o acontecer, o senhor tem que prometer que me levará junto!
Deputado - Então o senhor não é livre para ir quando quiser?
Homem - Livre? (Olha aflito para os lados) Além dos senhores não me resta mais nada! O fim está próximo, eu sei!
Deputado - Fim? Mas o que é que o senhor quer dizer com...(O homem se afasta. Entra um guarda)
Guarda - O reverendo manda lhes dizer que infelizmente hoje não poderá recebê-los. Pede-lhes que voltem amanhã de manhã.
Deputado - Será que o reverendo não nos ofereceria abrigo por essa noite?
Guarda - Não há leitos disponíveis.
Repórter - Mas os caminhos se acham impraticáveis. E são oito quilômetros até o povoado mais próximo.
Guarda - O reverendo lamenta, mas não poderá atendê-los. Os senhores terão que pernoitar fora do campus. Um jeep se encontra à disposição no pátio número cinco.
Deputado - Nós lhe agradecemos. Boa noite. (Saem deputado e repórter)
Guarda - Boa noite.
CENA 10
(Esta cena se passa no dia seguinte. Num canto do palco vemos, por trás de uma tela, as silhuetas de três homens que discutem. São eles o deputado, o repórter e o reverendo, como de hábito denominado Voz. À medida que se desenrola essa conversa, o palco vai sendo lentamente iluminado e os fiéis, orientados pelos guardas, começam a chegar para a cena de despedida do deputado e repórter)
Deputado - Eu lhe fiz uma pergunta objetiva, reverendo. Basta que o senhor confirme ou desminta. É tão simples!
Voz - Eu já tive a ocasião de observar que tudo, para os senhores, é sempre muito simples.
Deputado - Certas perguntas só admitem como resposta um sim ou um não!
Voz - Isso do ponto de vista dos senhores.
Repórter - É ou não é verdade que a comunidade se encontra fortemente armada?
Voz - De onde é que o senhor tirou isso?
Deputado - Alguns irmãos nos confirmaram a existência de trabalhos forçados!
Voz - Gostaria que esses irmãos confirmassem isso na minha frente.
Deputado - Para que o senhor os mandasse para o pavilhão número três?
Voz - O que é que o senhor está pretendendo insinuar?
Repórter - Nós descobrimos, senhor reverendo, que é para lá que o senhor envia a todos aqueles que não se comportam exatamente como determinam as suas leis, que são as do campus, é claro! E descobrimos, também, que o processo de reeducação dos infratores é realizado no fundo dos porões que o senhor mandou construir nesse local! E que nem todos conseguem sobreviver à violência com que são tratados!
Voz - Chega! Os senhores enlouqueceram! E não admito continuar com essa conversa nem mais um minuto! Os senhores estão convidados a deixar o campus imediatamente!
Deputado - E aqueles que quiserem nos acompanhar?
Voz - Que partam junto!
Deputado - Eu exijo uma declaração sua autorizando essas pessoas a partirem conosco. E exijo igualmente um salvo-conduto até o aeroporto. Sem essas duas garantias nós não deixaremos essa sala!
Voz - Não se inquietem. Eu as redigirei agora mesmo.
CENA 11
(Todo o grupo já está em cena, guardas e fiéis, mais ou menos dispostos como no início da cena 7. As silhuetas do Deputado, Repórter e Reverendo continuam visíveis)
Guarda 1 - Dentro de alguns minutos a entrevista que o pai está concedendo ao deputado e ao repórter estará terminada. Então os dois virão até aqui e apresentarão suas despedidas.
Guarda 2 - Que ninguém se esqueça das recomendações do pai. Que ninguém faça indagações desnecessárias. Quanto mais cedo eles se forem, melhor.
Guarda 3 - É indispensável que ambos partam de Anaiug com a melhor das impressões. A consolidação do nosso movimento dependerá, em grande parte, do que eles divulgarem.
Guarda 4 - Se opinarem desfavoravelmente, as pressões poderão se tornar insuportáveis.
Guarda 1 - Que todos se mantenham cordiais e solícitos até o fim, para que o mundo possa compreender, de uma vez por todas, a grandeza da nossa cousa.
Homem (Do bilhete) - O mundo jamais compreenderá a grandeza da nossa causa porque ela simplesmente não existe.
Guarda 1 - O que é que você está dizendo? (As silhuetas do Deputado e do Repórter somem. Permanece visível a do Reverendo)
Homem - Anaiug foi um sonho que fabricamos a partir do próprio desespero. Mas se transformou num pesadelo! Chegou o momento de acordar desse sono de morte!
Guarda 3 - Você enlouqueceu!
Homem - Eu nunca estive tão lúcido em toda minha vida! Isso aqui não passa de um campo de concentração! E vocês, que no início eram exatamente iguais a todos os outros, se transformaram em carcereiros implacáveis!
Guarda 2 - Ou você se cala nesse instante ou nós vamos...
Homem - Vocês não vão fazer nada! Vocês não podem me fazer nada! O deputado e o repórter já estão informados de que eu quero partir junto com eles! Eu lhes pedi isso ontem e eles prometeram que me levariam! Eles têm meu nome anotado, seria uma péssima política sumir comigo agora! Portanto, senhores verdugos, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa, esse massacre termina aqui, hoje!
Guarda 4 - Não tenha tanta certeza assim. O reverendo não costuma perdoar aqueles que o abandonam.
Homem - Já estarei longe.
Guarda 1 - É o que vamos ver.
(Entram o Deputado e Repórter. Ao fundo, a silhueta do Reverendo)
Guarda 2 - Estávamos esperando os senhores.
Deputado - Nós sabemos.
Guarda 3 - A comunidade se reuniu para lhes desejar uma boa viagem e agradecer o carinho e interesse que os senhores demonstraram por todos aqui.
Deputado - Nós é que agradecemos. A visita que fizemos a esse lugar se converterá num enorme benefício para muita gente. (Ao homem do bilhete) O senhor confirma o desejo de partir conosco?
Homem (Juntando-se a eles) - Sim.
Deputado - Há alguém mais que deseje fazer o mesmo?
Guarda 1 - Estamos certos de que ele é o único.
Repórter - Já perguntou a todos?
Guarda 1 - Certas perguntas são desnecessárias.
Repórter - E é o senhor quem decide quais são as perguntas necessárias?
Deputado - Em todo caso, gostaríamos de formulá-la uma vez mais. Existe alguém, dentre os senhores, que deseje, por livre e espontânea vontade, deixar este lugar e seguir conosco? (O Deputado mostra o salvo-conduto) Tenho aqui uma declaração assinada pelo reverendo autorizando a todos que desejem ir embora a fazê-lo agora. (Ao guarda 1) O senhor reconhece a assinatura do reverendo?
Guarda 1 - Sim, é a sua assinatura.
Deputado - Portanto, é um documento autêntico. Ninguém tem nada a temer. O reverendo nos garantiu salvo-conduto até o aeroporto. Se comprometeu a respeitar a vontade dos irmãos que queiram regressar ao continente.
Guarda 2 - É inútil. Todos são felizes aqui. Não há por que ir embora.
Deputado - Muito bem. Os senhores é que sabem. Adeus.
(E saem os três. Os guardas se reúnem rapidamente. Confabulam em voz baixa. De repente um deles retira os óculos escuros)
Guarda - Senhor deputado!
(E esse guarda sai atrás dos três. Fica implícito que é para matá-los)
Guarda 2 - Sentem-se, meus irmãos. A qualquer momento o pai nos falará.
(Todos se sentam. De repente se escuta um som violento, assustador, que indica que o Deputado e o Repórter, assim como o homem que os seguira, acabam de ser mortos. Todos se levantam apavorados, há grande confusão. Os guardas não conseguem dominar os fiéis. Ouve-se, então, a voz do Reverendo, cuja silhueta esteve sempre presente)
CENA 12
Voz - Meus irmãos! Tenham calma! O desespero só nos será prejudicial! Nunca, como agora, necessitamos tanto de lucidez e força! É imprescindível que todos tenham fé e convicção! (O grupo começa a se acalmar) A visita do deputado e do repórter se transformou num fracasso. Eles não vieram em busca de informações imparciais. Pelo contrário: já chegaram aqui com uma opinião formada e se recusaram a mudá-la. Nada do que lhes foi mostrado teve o poder de demovê-los. Eles abusaram de nossa boa fé e como se isso não bastasse ainda se julgaram no direito de nos fazer acusações. E mais: tiveram a ousadia de tentar fomentar a discórdia entre nós. Não nos foi possível, portanto, evitar as conseqüências de tal comportamento. Ambos acabam de ser mortos, assim como o irmão que nos traiu. Mas isso não é tudo. Dentro de muito pouco tempo o mundo estará informado do que se passou hoje, aqui. E Anaiug, não tenham dúvidas, será invadida e arrasada. Era o pretexto de que o sistema necessitava para nos colocar numa situação insustentável perante o mundo. O nosso sonho de construir uma comunidade agrícola pacífica chegou ao fim.
Homem - Eles não farão isso! Não ousarão invadir nossas terras!
Voz - Nós sabemos que sim. Não nos enganemos. Dentro de uns poucos dias já não existirá mais nada aqui...nós seremos presos, enviados a campos de concentração!
Homem - Eu não irei! Não vou permitir que me façam mal, nem à minha família!
Voz - O irmão se expressou com sabedoria. Nós não pertencemos mais ao mundo exterior. Portanto, não seria lógico que nos submetêssemos aos seus tribunais e acatássemos as suas sentenças.
Homem - E o que faremos, pai?
Voz - Só nos resta dar o passo definitivo. O mundo não está interessado em nós. O seu único objetivo é o de nos punir, nos castigar pela ousadia que tivemos de contestá-lo, renegá-lo para sempre. O que nos cabe, nesse momento, é demonstrar claramente que nos consideramos superiores a todos os seus dogmas. Que suas leias não nos dizem respeito e que somos por demais conscientes de nossa importância para nos curvarmos ante sua tirania. Nossa comunidade desaparecerá, meus irmãos... Nossas construções serão demolidas e essa terra será salgada. Destruirão tudo que conseguimos edificar em Anaiug. Mas aquilo que conseguimos estabelecer entre nós não poderá ser destruído nunca. Continuará a existir sempre, independentemente dos governos, dos organismos oficiais! Todos os corações sensíveis hão de se colocar do nosso lado e talvez um dia, quem sabe, parta de um deles uma nova tentativa de uma vida melhor, mais justa, em que todos possam ter oportunidades iguais. Nós deixaremos de existir, mas não a memória do que fizemos. Não nos rebaixaremos a ser perseguidos, encurralados e mortos como gado num curral. Nossa comunidade desaparecerá, mas não pela mão de seus carrascos. Desaparecerá porque seus membros assim o decidiram. O ideal que nos uniu em vida há de nos manter unidos na morte. Através dela nós transcenderemos nosso próprio destino e daremos ao mundo uma demonstração inequívoca da grandeza de nossos propósitos. (Os fiéis se entreolham) Muitas vezes nós admitimos a possibilidade de uma situação como a que se apresenta. E em nenhuma dessas ocasiões nenhum irmão vacilou um minuto sequer. Quero crer que não o farão agora...
(O grupo vacila, ninguém toma a iniciativa. Até que um dos irmãos se dirige a uma das estacas. Com os lábios cerrados entoa baixinho a melodia do cântico, só que num ritmo bem lento. Pega a estaca e a crava num dos orifícios restantes. Se imobiliza. Continua a murmurar essa melodia. E o processo se repetirá com cada um até que todos estejam mortos. Do teto começa a descer a lona escura. Estará formado um grande coral. A silhueta do reverendo tomba)
FIM
de Lionel Fischer
Cenário - um espaço a princípio vazio que será delimitado por estacas de madeira no decorrer da ação. No teto, uma grande lona escura.
Personagens:
Voz
Fiéis
Guardas
Deputado
Repórter
Obs: Alguns fiéis serão particularizados no decorrer da ação. Quando isso acontecer, serão denominados Homem e Mulher.
* * *
A peça foi escrita em 1979, a partir do testemunho do repórter Charles A. Krause, que sobreviveu aos acontecimentos que se verificaram na Guiana, no ano anterior, que culminaram no suicídio coletivo de cerca de 900 pessoas. De seu livro Massacre na Guiana foram tiradas a maioria das informações, assim como de matérias escritas por Laurence M.Stern, Richard Harwood e de outros membros do Washington Post. O texto gira em torno do movimento (seita) Templo do Povo, dirigido pelo reverendo Jim Jones.
* * *
ABERTURA
(Quando se abrem as portas do teatro, um grupo de atores se encontra misturado ao público. No palco, sob a luz de um único refletor, se vê um guarda, imóvel. O que o diferencia dos demais habitantes do campus é o fato de usar óculos escuros. O público entra, se senta, mas os atores não. Quando todos tomam conhecimento da presença desse elemento que está em cena, ele se retira. Os atores se dirigem para aquele foco de luz. Todos trazem consigo seus pertences: bolsas, mochilas, cobertores etc.Depois de um tempo, surge um outro guarda)
Guarda - Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo, em nome de toda a comunidade, vos saúda e convida para conhecerem as dependências do campus. Solicita que os objetos de uso pessoal sejam deixados onde se encontram, a fim de que nada embarace vossa caminhada. E ainda hoje o reverendo vos falará pessoalmente. Bem vindos a ANAIUG, irmãos.
(O grupo coloca no chão os seus pertences e sai atrás do guarda. Tão logo isso acontece, surgem três novos guardas que recolhem os pertences dos fiéis. Em seu lugar deixam os uniformes do campus. Depois, saem. Entra novamente o grupo. Constata que seus objetos foram carregados. Vêm as novas roupas. Do gravador, começam a se escutar as palavras do reverendo. O grupo vai trocando as velhas vestimentas pelas novas)
Voz - Meus irmãos...penosa terá sido a vossa jornada e incontáveis os obstáculos que tivésteis que transpor para chegar a Anaiug. Vejo no rosto de cada um de vós a marca da fadiga. Mas também percebo, dentro de cada um de vós, a existência de uma alma transbordante de júbilo, cuja pulsação irresistível vos mantêm de pé, a todos, apesar do corpo que implora, com justiça, que lhe seja facultado o sono. Ambos tem razão, corpo e alma, e a ambos abençôo pela sinceridade de seus anseios. De minha parte, gostaria que o soubésseis, também me foi difícil a espera desse encontro. Não que duvidasse de que viríeis, não. Mas meu coração estava tão impregnado de vossa lembrança que os minutos se convertiam em horas e os dias que me separavam de vós se assemelhavam a séculos. À noite, como o sono me fugisse, costumava vagar pelo campus e a todo momento me voltava na direção de nossas sete portas, como se meus ouvidos tivessem captado o rumor de vossos passos que se aproximavam de uma delas. E essa emoção agia de tal forma sobre todo o meu ser que, se porventura estivesse sendo observado por um cético, ele certamente julgaria estar diante de um louco. E eu não poderia contestá-lo. Pois a minha ansiedade de vós, o meu desejo de vós eram tão imensos que é provável que o meu aspecto causasse realmente espanto a um homem que não crê. Mas quem, em meu lugar, teria agido de outra forma? Até que hoje, finalmente, me encontro de novo diante de vós e vos saúdo de todo o meu coração. Vós fizésteis este lugar e a ninguém mais ele pertence. Aqui aportarão todos os homens cuja ânsia de liberdade não tenha sido totalmente destruída. Aqui aportarão todos os homens cuja fé não tenha sido totalmente conspurcada. Aqui, no meio desses bosques e dessas fontes, todos aqueles que encararem a vida como algo infinitamente além do mero possuir e dominar celebração suas bodas, e serão abençoados pelo murmúrio das águas e das folhas. E a brisa da manhã varrerá de vossa memória esse mundo que acabásteis de deixar. Esse mundo sórdido que nos condiciona ao mal e à violência. Que nos induz ao crime. Que nos rejeita e massacra. Que estabelece hierarquias e classes. Que é surdo aos nossos apelos mais elementares. Que caminha independente da nossa vontade e diante do qual nada mais somos que fantoches. Aqui, no entanto, hão de ser outros os valores. Nós cantaremos e o fogo e a chuva compreenderão as nossas vozes. E dançarão conosco ao som dessa nova música. Aqui, mãos estranhas hão de se tocar com prazer e não se perguntarão se isso é justo. Não. Tudo há de ser justo, se vem do coração. E todos nós, irmanados e conscientes de que um mundo novo está a caminho, nos fecharemos para sempre dentro de nossas próprias consciências e ignoraremos para sempre tudo que existir para além de nossos próprios limites. E a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas, e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste!
(As luzes se apagam em resistência)
CENA 1
(O grupo se encontra espalhado pelo palco. Todos estão felizes. Uns conversam, outros passeiam, alguns executam tarefas. Um fiel surge com um violão e todos começam a cantar. Surge um guarda, que assiste a cena à distância. Um dos fiéis tem sua atenção voltada para esse guarda. O grupo se retira cantando. Ficam em cena o guarda e esse fiel. O primeiro, que usava dois óculos superpostos, tira um deles e o oferece ao homem)
Guarda - Quer experimentar?
Homem - Para que?
Guarda - O sol daqui é muito intenso. Em pouco tempo os olhos se gastam.
Homem - Eu não fui informado disso.
Guarda - Certas coisas é preciso descobrir por iniciativa própria.
Homem - Mas o risco a que estamos nos submetendo é muito grande. Nós deveríamos ter sido alertados.
Guarda - Você está sendo alertado.
Homem - E por que eu, especialmente?
Guarda - Porque nós achamos que você seria dos primeiros a tomar consciência da intensidade do sol.
Homem - Por quê?
Guarda - Intuição.
Homem - Eu agradeço.
Guarda (Recolocando os óculos) - Você é quem sabe.
(O homem sai à procura do grupo, cujo canto não deixamos de ouvir durante toda a cena)
CENA 2
(Todo o grupo se encontra em cena, guardas e fiéis. A ação se passa durante uma das sessões de culto)
Voz - ...e se pretendemos que nossas atitudes sirvam de exemplo ao mundo e apontem o caminho, é indispensável que nenhuma delas dê margem a críticas. Muitos daqueles que objetivamos salvar e dar sentido às suas vidas ainda estão indecisos e conflitados, não tomaram a decisão final e portanto ainda estão sujeitos a serem influenciados negativamente. No estágio crítico em que se encontra a nossa civilização, qualquer passo em falso pode ser o último. Todos querem e temem, ao mesmo tempo. E esse temor lhes centuplica o grau de exigência. E no fundo eles estão certos. É preciso que tudo, em nós, demonstre segurança, paz e harmonia. Que nada escape ao nosso controle. Só assim conseguiremos quebrar essa barreira que ainda nos separa de tantos irmãos potenciais, cuja vinda para Anaiug nos encheria de felicidade. E seria mais uma resposta a todos aqueles que não se cansam de nos perseguir. Não é verdade, meus irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - E por que ainda não conseguimos eliminar de vez todos os obstáculos? Alguém saberia responder? A resposta é fácil: porque muitos de nós ainda cometem certas falhas que os inimigos da seita, de algum modo, tomam conhecimento e imediatamente saem divulgando por todos os meios de comunicação. E não me refiro às falhas mais graves, apenas, mas a todas. A senhora, por exemplo: por que prendeu os cabelos para a sessão de culto?
Mulher - Pensei que não houvesse mal, pai!
Voz - A senhora não acha que esse penteado lhe dá uma aparência sofisticada?
Mulher - Não imaginei que o resultado pudesse ser esse, pai!
Voz - Talvez, no fundo, a senhora deseje se sobressair perante os demais.
Mulher - Não, pai, não é esse o meu desejo!
Voz - Qual é, então, o desejo da senhora?
Mulher - Servir a Deus através dos ensinamentos do pai!
Voz - Isso é tudo quanto a senhora deseja?
Mulher - Tudo, pai!
Voz - E podemos confiar em suas palavras?
Mulher - Eu nunca lhe menti, pai, nunca! Sei que muitas vezes cometi falhas, que ainda as cometo, mas sempre involuntariamente!
Voz - Eu suponho que a senhora já tivesse se conscientizado de que não existem ações involuntárias. Na maioria das nossas últimas sessões esse assunto foi abordado exaustivamente. A senhora, por acaso, estava distraída?
Mulher - De modo algum, pai! Eu não perdi uma única palavra!
Voz - A senhora não terá adormecido, por alguns instantes, involuntariamente?
Mulher - Se ainda é possível merecer alguma consideração do pai, eu imploraria que me acreditasse! Jamais adormeci em nenhuma das sessões!
Voz - Mais viu alguém fazê-lo, certamente.
Mulher - Não...não vi...eu jamais pude desviar meus olhos do pai! Nunca reparei sequer em quem estava do meu lado, tal o interesse com que sempre acompanhei as nossas sessões de culto!
Voz - As palavras dessa senhora merecem a nossa confiança, irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Palavras com as quais ela afirma jamais haver adormecido durante uma sessão de culto, assim como nunca ter percebido alguém fazê-lo?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Por favor, eu pediria que a senhora se aproximasse um pouco mais. (A mulher se aproxima). A senhora sabe o que eu tenho nas mãos?
Mulher - Não, meu pai, não consigo distinguir direito!
Voz - É um pequeno envelope, dentro do qual existem algumas fotos. Elas foram tiradas durante as últimas dez sessões de culto. Acabam de me ser entregues. Eu ainda não as vi. Como a senhora pode constatar, o envelope ainda se encontra fechado.
Mulher - É verdade, pai!
Voz - Eu vou abri-lo agora. Examinar o material. E chegar então à uma conclusão mais definitiva sobre o grau de lealdade dos irmãos.
Homem - Meu pai!
Voz - Sim..?
Homem - Eu realmente vi...algumas vezes...que nem todos guardavam a atenção devida durante o culto.
Voz - O irmão se importaria de aclarar um pouco mais a expressão “guardavam a atenção devida...?”
Homem - Bem, pai, o que eu quero dizer é que...normalmente...durante as últimas horas...não sempre, mas muitas vezes, eu surpreendi diversos irmãos adormecidos. Alguns, inclusive, roncando...o que me tirava a concentração e impedia de me aprofundar nas palavras do pai.
Voz - Diversos irmãos, o senhor disse...portanto, não lhe seria difícil reconhecer alguns...um, que seja.
Homem- Não, não seria difícil...sei que existem vários, aqui presentes...mas realmente só consegui guardar com segurança um único rosto.
Voz - E a quem pertence?
Homem - A mim. (Todos se olham espantados. Um dos guardas se retira)
Voz - Levantem-se, meus irmãos. Afastem-se um pouco para que eu possa vê-lo melhor. O que dizer dessa atitude? Qual a explicação para uma falha dessa natureza? O senhor perdeu a fé?
Homem - Não, pai.
Voz - O Senhor deixou de acreditar em algo daquilo que o trouxe até nós?
Homem - Não, pai.
Voz - Que justificativas o senhor poderia então nos apresentar?
Homem - Nenhuma além do sono, pai.
Voz - Teriam as minhas palavras perdido a importância?
Homem - As palavras do pai sempre alimentaram meu espírito e não foi ele que se desligou, mas meu corpo.
Voz - Pois o senhor aprenderá a controlá-lo melhor daqui para frente. (Entra o guarda que havia saído) Enquanto disciplina os músculos, o senhor deverá fazer também um pequeno esforço de memória. (O guarda que entrou trouxe um enorme chapéu amarelo. Coloca-o na cabeça do homem) Esse envelope que o senhor está vendo, já não me interessa mais. Ao menos por ora. Eu quero os nomes de todos aqueles cujo sono se sobrepõe à minha mensagem. (Depois de um longo tempo, as luzes começam a cair em resistência)
CENA 3
(O grupo se encontra trabalhando. Alguns guardas fiscalizam. Os fiéis empunham bastões, simbolizando os objetos de trabalho - pás, enxadas, etc.De repente, um homem tomba. O trabalho é interrompido, mas ninguém o socorre, com exceção de um único elemento, que se aproxima e tenta ajudar. Os guardas o afastam. Em seguida eles pegam o homem que caíra e o recolocam em sua posição inicial. O trabalho recomeça. Pouco depois, o homem cai definitivamente. Dois guardas o retiram de cena. Um terceiro dá por encerrado o trabalho. Os fiéis se dirigem para as extremidades do palco e encaixam seus bastões nos orifícios existentes em ripas de madeira pregadas no chão. Começam a se escutar os primeiros acordes de um cântico)
CENA 4
(O grupo todo se encontra em cena, com exceção dos guardas. Os fiéis entoam um cântico, que progressivamente se torna cada vez mais entusiasmado)
Havendo uma fé, em mim
Havendo um lugar, assim
Havendo o desejo, de transformar
Os sonhos se tornam, reais
Os medos e angústias, se esvaem
E a força do novo, se impõe
Se impõe nas montanhas, nos mares
Se infiltra nos campos, nos lares
Mostrando que a hora, é de mudar
Portanto não tema, irmão
Venha conosco, nos dê a mão
Viver é preciso, viver
Viver sem temor, viver
Sem ódio e rancor, viver
E a todos os homens, mostrar
Que tudo é possível, para aquele que crê
Que tudo é infinito, para aquele que crê
Que só faz sentido, quando se crê
Não viva sozinho, não há por quê
Não lute sozinho, não há por quê
Existe um lugar, para você
Em meio aos bosques, para você
Junto das fontes, para você
Com flores e frutos, só para você
Existe uma estrada, é só partir
Existe uma estrela, é só seguir
Existe o amor, a descobrir
(O mesmo homem que havia tentado ajudar o indivíduo que caíra na cena anterior, interrompe o cântico)
Homem - Existe algo mais, além do amor, a descobrir! Um homem sumiu depois do culto e nunca mais foi visto. Teria ele se perdido nessa estrada? Um outro tombou durante os trabalhos forçados. Teria ele duvidado do brilho dessa estrela? Ou quem sabe ambos desapareceram por haverem descoberto o amor?
Fiel 4 - Eles não estão aqui. Mas isso não lhe autoriza a afirmar que tenham desaparecido. Talvez tenham se afastado.
Homem - Talvez... e em vista disso nós cantamos. Há um mês que não nos permitem trocar de roupa. Nós estamos imundos, famintos! Mas que importância podem ter a imundície e a fome? O essencial é cantar! Mas o quê? A quem, afinal?
Fiel 1 - O cansaço e a fome atestam nossa lealdade!
Homem - No início, assim que nós chegamos aqui, a nossa música refletia a essência do que éramos, do que sentíamos, do que esperávamos encontrar nesse lugar! Hoje, ela apenas reflete aquilo que nos tornamos: um agrupamento de sonâmbulos a quem o terror impõe diariamente a
representação de uma farsa!
Fiel 3 - Nada é inconciliável para o homem que acredita!
Fiel 4 - Tudo é possível para aquele que não perdeu a fé!
Fiel 3 - E todos os que crêem sabem perfeitamente que só atingirão a luz depois de haverem conhecido as trevas!
Homem - Todos aqueles cuja fé suplanta a razão no fundo não sabem nada! Se julgam os mais sábios, mas são na verdade os mais ignorantes!
Fiel 5 - E quem é você para falar de fé? Você, que todos nós sabemos que há muito perdeu a razão?
Homem - Se eu perdi, é sinal de que um dia eu a tive. E graças a isso, eu pude ter fé. A minha crença, assim como a de vocês, se a memória não fugiu de todo, nasceu da esperança de podermos um dia, juntos, em algum lugar, estabelecer uma comunidade que levasse em consideração a individualidade de cada um, que fosse fruto da consciência de cada elemento do grupo. E que portanto seria o resultado de nossas aspirações e anseios.
Fiel 2 - Todos nós nos sentimos realizados e felizes aqui!
Fiel 1 - Todos os nossos projetos e sonhos se concretizaram!
Fiel 4 - Tudo o que nos foi prometido se tornou real!
Homem - Não é verdade! O que aconteceu, de fato, é que nós não fizemos esse lugar! Ele é que nos fez, nos moldou, já estava pronto desde o primeiro dia!
Fiel 5 - Você não sabe o que diz!
Homem - Sei sim! Por uma questão de esperteza, apenas, para ganhar a nossa confiança definitiva, durante um certo tempo ele camuflou seus verdadeiros propósitos, nos iludiu com encenações habitualmente preparadas, para que nos entregássemos por inteiro, sem o menor grau de desconfiança! E quando percebeu que já nos tinha enfeitiçado definitivamente, então aí começaram a aflorar os verdadeiros objetivos deste lugar, que são os de explorar, escravizar, reduzir toda a comunidade à mais objeta forma de dependência possível! (Um fiel se afasta do grupo)
Fiel 3 - Chega! Nada nos abriga a escutá-lo! Como se já não bastasse a interrupção do cântico, você ainda se julga no direito de nos ferir, de nos magoar naquilo que para nós é mais sagrado!
Fiel 4 - Você perdeu a razão e procura nos impor os seus desatinos!
Fiel 5 - Mas fique certo de que nada abalará nossa confiança e que qualquer tentativa nesse sentido redundará em fracasso!
Fiel 2 - Não acreditamos em nada do que você disse!
Fiel 4 - São palavras de um louco!
Fiel 3 - De um cego, sobre cuja cabeça já vislumbramos a espada do Senhor!
Homem - Se algo tiver que se abater sobre minha cabeça, como já aconteceu a tantos outros, vocês podem estar certos de que não será uma espada, muito menos empunhada pelo Senhor, que permite dúvidas e não pune os que duvidam, mas ouve e aconselha!
Fiel 5 - Deus é infinito em sua bondade, mas não em sua tolerância!
Homem - Quem lhe ensinou isso? O “Deus” de vocês? Que se vale de uma guarda pessoal para manter sua liderança? (Volta o fiel que havia saído) Que trucida covardemente não apenas fatos mas até simples suspeitas?
Fiel 2 - Não seja infame!
Homem - Infames são aqueles que se venderam, aceitaram a incumbência de vigiar os demais! Que se sujeitaram a preparar relatórios fictícios só para darem mostras de eficiência e lealdade ao “pai”!
Fiel 1 - Ninguém jamais fez isso, nenhum de nós!
Homem - Fizeram sim!
Fiel 3 - Traidor!
Homem - Forjaram documentos que foram responsáveis por uma infinidade de violências injustificáveis!
Fiel 4 - Você pagará caro essa insolência!
Homem - Vocês se transformaram em nulidades que se espreitam, se vigiam, decoram frases incompreensíveis que repetem feito marionetes!
Fiel 5 (Aos demais)- Silêncio! (Se escuta um rumor de passos)
Homem - Tudo isso em nome da fé! Mas afinal, que crença é essa? A do terror? (Surgem os guardas) Não se inquietem...Muito em breve nós saberemos quem tinha razão...(Os fiéis saem)
CENA 5
(O homem está no centro. Os guardas o rodeiam, sob quatro focos de luz. Os inquisidores serão denominados A - B - C - D)
A - Que noite linda, hoje...
B - Linda...
C - Encantadora...
D - Perfeita.
B - Você não acha? (tempo)
A - Aposto que ele vai dizer que sim.
C - Aposto que ele vai dizer que não.
A - E seria ele tão insensível?
B - Logo ele?
D - Não creio.
C - É possível que eu tenha me enganado.
A - É mais do que provável. (tempo)
D - Que silêncio...
B - Não se escuta nada...
A - Como se estivéssemos em tempo de guerra...
C - À espera de bombardeios.
Homem - Por que é que vocês usam sempre esses óculos?
A - Óculos?
C - Nós?
B - Mas que absurdo!
D - Que coisa estranha!
Homem - Por que ninguém jamais tem acesso ao verdadeiro rosto de vocês?
C - Acesso?
D - Ao nosso verdadeiro rosto?
A - Mas que absurdo!
B - Que coisa estranha!
Homem - Qual é o significado dessas máscaras?
B - Num dia de culto você não se ajoelhou junto com os outros.
D - Se ajoelhou, mas pouco depois.
A - Você se distraiu?
C - Ou você não quis?
Homem - Eu me distraí.
A - E por ocasião de um dos trabalhos coletivos, quando um irmão fraquejou miseravelmente...foi também por distração que você tentou intervir?
Homem - Não! Quando o irmão exausto não suportou mais a massacrante carga de trabalho que lhe tinha sido imposta e tombou desacordado sobre as pedras eu...
B - Massacrante carga de trabalho!
D - Imposta!
A - É assim que você agora se refere às nossas ocupações diárias?
Homem - “Nossas”? Eu jamais pude perceber nenhum de vocês carregando uma enxada, ou reparando uma cerca, ou construindo fosse o que fosse! Vocês só perambulam pelo campus, como fantasmas, espreitando cada movimento que fazemos!
C - É indispensável seguir as regras!
A - A que todos estamos sujeitos!
D - Que todos acatamos sem fazer perguntas!
B - E sem exigir respostas!
Homem - Não foi para isso que eu vim aqui, para ouvir regras!
C - Faz parte da organização do campus!
Homem - Eu fui informado de que essa organização partiria da consciência de cada um.
A - Consciência...
Homem - E que ela seria fruto de nossa liberdade individual!
B - Você não fala de organização, fala de anarquia!
Homem - Eu não imaginava que esses conceitos fossem ser empregados aqui.
C - O que você imaginava ou deixava de imaginar não nos interessa!
A - O que existe são os fatos!
D - E eles demonstram que sua conduta se afasta perigosamente da de todos os demais!
B - O que significa uma exceção!
A - E o importante aqui, como acabamos de lhe dizer, são as regras!
Homem - Donde se conclui que o direito à dúvida foi banido desse lugar!
C - Dúvida?
A - Com que então...você duvida!
Homem - Pensei que fosse permitido.
D - O seu problema é pensar demais.
Homem - E o de vocês é não pensar nunca! É essa a condição imposta para poder usar esse disfarce? Que confere tantos poderes?
A - Cuidado com o que você diz...
Homem - Mais uma regra que eu tenho que levar em conta? Faltam muitas?
C - A sua audácia lhe faz esquecer as normas mais elementares do bom senso.
D - E lhe afasta do único caminho que ainda poderia lhe ser útil.
Homem - E que caminho é esse?
A - O da prudência...
Homem - Prudência e covardia, ao que eu saiba, não foram ainda oficializadas como sinônimos.
C - Então você se nega?
Homem - A quê?
A - A colaborar.
Homem - Com o quê?
B - Com a ordem.
Homem - Não a conheço.
D - Mas conhecerá em breve.
Homem - É possível.
B - É mais do que provável.
Homem - E pelo que imagino será meu último conhecimento...
A - Depois dele haveria algum outro que valesse a pena?
Homem - O da verdade.
D - A ordem é a única verdade possível.
Homem - Mas nem todas as ordens foram feitas para todos os tempos! E as que vocês tentam nos impingir pela força são as mesmas do mundo que julguei haver abandonado para sempre!
C - Você lamenta...?
Homem - É tarde demais.
B - Tem razão.
A - Para você, ao menos, é tarde demais.
Homem - E quanto aos outros?
D - Esses refletirão bastante antes de extravasarem suas dúvidas.
Homem - Faz parte do método?
C - A experiência é tudo.
A - Você teria algo mais a acrescentar?
Homem - E adiantaria? (Os guardas começam a se aproximar. Do gravador voltamos a escutar algumas palavras proferidas pelo reverendo quando da chegada do grupo)
Voz - ...e a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste...(Nesse momento os guardas se fecham sobre o homem, que emite um grito desesperado que agoniza pelo espaço. O corpo do homem tomba. Os guardas se afastam sem pressa)
CENA 6
(Pouco depois que os guardas saem, a mulher do homem assassinado surge. Ela se abraça ao corpo do marido. No gravador, começa a se escutar a voz do Pai)
Voz (Palavras textuais do reverendo Jim Jones) - A noite está clara e estrelada. Há tanta paz aqui. Não pode haver nada tão satisfatório quanto levar esta vida comunitária. Amo o trabalho. É profundamente triste que a vasta maioria do povo se submeta à arregimentação e extrema tensão de uma sociedade altamente tecnológica. No entanto, aqueles que se atrevem a viver ideais elevados, ao invés de se contentarem com a mediocridade, apatia e indiferença que são a ordem do dia, tornam-se alvos da perseguição vingativa, pois a vida em cooperação proporciona extrema segurança...(Um grupo de fiéis se aproxima) Quando não se tem ideais, vive-se sozinho e morre-se rejeitado...(Ao perceber a aproximação do grupo, a mulher, enfurecida, começa a rasgar as roupas do morto e a entregar os farrapos a cada um) De certa forma, viemos para cá afim de não contribuirmos para a destruição que nosso país de nascimento continua a infringir às nações menos prósperas. Como se pode viver livre de culpa quando os nossos próprios recursos servem para patrocinar atrocidades nos outros países? A vida sem princípios é desprovida de sentido. Não se pode saber o que é a felicidade até se viver plenamente. Encontramos a segurança e a realização na coletividade e podemos ajudar a desenvolver uma nação agrícola pacífica. Nós passamos além da alienação e encontramos um meio de viver que alimenta a confiança, o que não pode existir numa sociedade que se tornou cínica e indiferente...
CENA 7
(Todo o elenco está em cena. O ambiente está preparado para uma festa. Deve-se perceber, pelo clima exagerado de felicidade, que há tensão no campus. Presentes o deputado e o repórter)
Guarda 1 – Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo pede que os senhores o desculpem por não poder estar aqui para recebê-los. Alguns assuntos de ordem administrativa inadiáveis reclamam sua presença. Tão logo os resolva ele os receberá com prazer. Enquanto isso os senhores estão autorizados a entrevistar os irmãos que desejarem, assim como a visitar as dependências do campus.
Deputado - Transmita ao reverendo os nossos mais sinceros agradecimentos. Nossa missão é de paz. Não nos encontramos aqui para julgar, apenas para informar a opinião pública.
Guarda 2 - O reverendo confia na sinceridade dos senhores. E ele, mais do que ninguém, está ansioso para que a opinião pública seja informada com rigor à cerca das nossas atividades em Anaiug.
Deputado - Nós agradecemos a confiança e reafirmamos que nossos propósitos são os de informar, sem emitir qualquer espécie de julgamento pessoal.
Guarda 1 - Em nome de toda a comunidade, o reverendo lhes deseja boas vindas e que os senhores possam exercer suas atividades dentro da mais absoluta paz e cordialidade.
(Saem os guardas. O grupo se dispersa, menos uma fiel, que se aproxima)
Mulher (Ao Repórter) - O Senhor também é deputado?
Repórter - Não, sou repórter.
Mulher - Ah, sim.
Deputado - Nós estamos trabalhando juntos nesse caso.
Mulher - Caso? Como assim?
Deputado - Bem... a senhora deve estar informada de que está havendo uma grande confusão em torno da seita. Ao menos lá...
Mulher - O que nós sabemos é que os inimigos de sempre mantêm as acusações de sempre. É possível que elas tenham se intensificado um pouco ultimamente. Mas nós já estamos habituados.
Deputado - Elas nunca foram tão contundentes. Nem tão numerosas.
Mulher - O mundo não suporta que lhe desafiem os dogmas. E aqueles que ousam fazê-lo devem estar preparados para tudo.
Deputado - A senhora parece muito tranqüila quanto à opinião pública. Como se não lhe atribuísse a menor importância.
Mulher - O senhor sabe que o que caracteriza a opinião pública é justamente não ter opinião.
Deputado - Isso não a impede de aderir a alguma causa.
Mulher - Claro que não, pois isso é tudo que ela pode fazer. Aderir...
Deputado - Quando isso acontece, ela pode se tornar perigosa.
Mulher - Nós sabemos. A sua inépcia para criar se revela proporcional à sua obstinação em seguir. É por isso que todos temem tanto a opinião pública e procuram sempre estar do seu lado. A sua força destruidora é incomparável.
Deputado - A senhora acredita que esteja havendo uma perseguição ao movimento de vocês?
Mulher - É mais do que óbvio.
Deputado - Com que finalidade?
Mulher - O sistema não perdoa que lhe seja contestada a autoridade.
Repórter - A senhora se importaria se nós falássemos um pouco sobre algumas das acusações que estão sendo feitas a Anaiug?
Mulher - Absolutamente. Nós estamos preparados para responder a qualquer pergunta.
Deputado - Muito bem. Uma das coisas de que mais se fala diz respeito aos trabalhos coletivos. Como são distribuídos esses trabalhos?
Mulher - Para começar, o termo “trabalho” não é empregado aqui. O que existe são atividades coletivas, que cada indivíduo opta por fazer. E que não são fiscalizadas por ninguém.
Deputado - E em que consistem essas atividades coletivas?
Mulher - Nós formamos uma comunidade agrícola. Portanto, tudo se relaciona com o campo. Nós cultivamos a terra e vivemos do que ela nos dá. (Num outro ponto do palco vemos alguns homens que trabalham. Um guarda se encontra próximo, numa atitude discreta)
Deputado - O que é que aqueles homens estão fazendo?
Mulher - Eles preparam o terreno para uma nova horta.
Repórter - E aquele, um pouco afastado? O que usa óculos...por que ele apenas assiste?
Mulher - Ele não assiste, apenas. É um membro mais antigo que orienta os mais novos.
Repórter - Claro...alguém tem que orientar. (Eles desviam a atenção do grupo. Um homem cai)
Deputado - E essas atividades coletivas obedecem a uma carga horária pré-estabelecida? (O guarda se aproxima e ergue o homem)
Mulher - Não, cada um decide seu horário.
Repórter - Dizem que o número de horas é desumano... (O guarda torna a se afastar)
Mulher - O senhor admite que aqueles homens que acabou de ver possam estar sendo submetidos à uma carga horária desumana? (Eles se voltam para o grupo) Examinem um por um: não é evidente o seu prazer e a sua alegria com o que fazem?
Deputado - Aparentemente, sim. (As luzes no grupo se apagam)
Mulher - Aparentemente, o senhor diz...Ah, os políticos! São os seres mais desconfiados que existem, os mais céticos. Nem a evidência objetiva parece possuir qualquer valor para eles.
Deputado - Nunca lhe aconteceu assistir a uma representação brilhante de um texto medíocre?
Mulher - É possível que no teatro uma boa encenação consiga disfarçar um texto ruim. Mas será que na vida esse mecanismo é possível?
Deputado - Depende dos atores.
Mulher - Para o senhor, então, Anaiug seria pouco mais que um grande palco onde estaria se desenrolando uma gigantesca farsa?
Deputado - Eu ainda não tenho opinião formada. É a primeira vez que venho aqui.
Mulher - Isso não significa que o senhor já não tenha uma opinião formada. Seguindo seu raciocínio, o senhor poderia perfeitamente estar desempenhando o papel de um homem interessado, curioso, mas que no fundo já chegou aqui com seu veredicto pronto.
Deputado - Não é o caso.
Mulher - Esperemos que não.
Repórter - É verdade que as sessões de culto são obrigatórias?
Mulher - Nada é obrigatório aqui. Todas as nossas atividades são uma fonte inesgotável de prazer.
Repórter - A imprensa tem divulgado com insistência que o número diário de horas de culto aumentou consideravelmente nos últimos tempos. É verdade?
Mulher - Por insistência nossa. E mesmo estando adoentado ultimamente o reverendo jamais se negou a atender-nos. Ainda que em detrimento de sua própria saúde.
Repórter - Há rumores de que o reverendo estaria sofrendo de câncer.
Mulher - O seu mal não foi ainda diagnosticado. Talvez não passe de um esgotamento nervoso por excesso de trabalho e preocupação.
Deputado - E como transcorrem essas sessões?
Mulher - Nós rezamos, cantamos, escutamos as palavras insubstituíveis do reverendo...comentamos nosso dia-a-dia, procuramos resolver em conjunto todos os problemas eventuais...enfim, como uma verdadeira família.
Deputado - E não se verificam incidentes durante essas sessões?
Mulher - O que é que o senhor quer dizer com “incidentes”?
Deputado - Nós fomos informados de que muitas vezes acontecem punições e castigos. Que as falhas cometidas pelos irmãos são punidas publicamente e que essas punições vão desde a humilhação até castigos físicos, que muitas vezes acarretam a morte.
Mulher - Chega a ser fantástica a imaginação desses senhores da imprensa.
Repórter - Eles se basearam em depoimentos de antigos membros da seita que se revoltaram e resolveram contar o que sabiam.
Mulher - Os antigos membros da seita normalmente se colocam a serviço de uma nova causa, o que os faz perder a memória e inventar absurdos desse tipo.
Repórter - Com o que então todos eles não passariam de consumados mentirosos? Que estariam agindo dessa forma em função de uma nova causa?
Mulher - É o que imaginamos.
Repórter - E que causa seria essa?
Mulher - Isso não podemos saber. Eles não informaram?
Deputado - Nós soubemos da existência de poços em que membros da seita ficariam mergulhados por vinte e quatro horas para se penitenciarem de erros cometidos.
Mulher - Nos poços de Anaiug só são mergulhados baldes. E a água que neles se encontra serve apenas para beber, nunca para torturar.
Repórter - Como é que o reverendo reage a todas essas acusações?
Mulher - Com tranqüilidade. Ele tem consciência da grandeza de sua obra e já imaginava que as críticas viessem em proporção à sua importância.
Repórter - E se elas se tornarem insuportáveis?
Mulher - O processo agora é irreversível. Os membros da seita aprenderam a lição de uma vida comunitária e aos nossos olhos a atuação desse gigantesco coral é desprezível. O barulho ensurdecedor das vozes reacionárias se dispersará como as nuvens de tempestade, que amedrontam por um breve instante, mas cujo efeito é passageiro.
Deputado - É verdade que inúmeras vezes foram encenados suicídios coletivos?
Repórter - Disseram-nos que os membros da seita seriam forçados periodicamente a ingerir líquidos que conteriam venenos, a fim de serem testados em sua lealdade ao reverendo.
Mulher - A resposta a esse turbilhão de insultos e acusações é a nossa serenidade. Aos senhores, aqui presentes, nós abrimos nossos corações e nossas portas. São livres para visitar todo o campus, conversar com quem quiserem. Tudo lhes está sendo facilitado para que os senhores possam chegar à uma conclusão real e justa quanto à nossa organização. Ninguém lhes obstruirá o caminho. A verdade está aqui, diante dos senhores, nas nossas instalações impecáveis, nas nossas colheitas abundantes, no sorriso dos velhos e das crianças. Enfim, em tudo o que o nosso amor e a nossa fé foram capazes de construir. Nós esperamos que os senhores sejam imparciais e informem o mundo do que realmente viram e sentiram em Anaiug e não do que ouviram falar. (Tempo) Agora eu preciso me retirar. Mesmo num dia como o de hoje eu não devo me esquecer da minhas ocupações. Se precisarem de algo, qualquer irmão poderá lhes ajudar. Bem vindos a ANAIUG, irmãos. (E sai)
CENA 8
Repórter - Mulher estranha...quem será?
Deputado - Não sei...mas decorou perfeitamente o papel.
Repórter - Você acha que ela mentiu?
Deputado - Você tem alguma dúvida?
Repórter - Bom, eu suponho que grande parte das informações que ela nos prestou sejam falsas. Mas quais, exatamente? Por ora, é a palavra dela contra a dos outros.
Deputado - É evidente que ela recebeu instruções, não veio até nós por acaso. Foi selecionada.
Repórter - Eu sei, não é possível que esse lugar seja tão perfeito. Mas o problema é que cabe a nós demonstrar o contrário. E para isso nós precisamos de fatos. Sem eles a nossa viagem terá sido uma perda de tempo.
Deputado - Pois é, nós precisamos de fatos. Mas onde buscá-los?
Repórter - O ideal seria se nós pudéssemos documentar algo, fotografar, filmar, para sairmos daqui com algumas provas concretas.
Deputado - Mas se é verdade mesmo que todo o campus nos será aberto é sinal de que todo ele se encontra preparado para nos transmitir uma determinada imagem. Portanto, nessas condições, filmar ou fotografar só traria benefícios para eles.
Repórter - Eu não acredito que todo o campus nos seja aberto. Afinal de contas, nós possuímos dezenas de depoimentos de antigos membros da seita em que eles afirmam existir, em Anaiug, locais especialmente destinados a punições e castigos. Construídos com essa única finalidade. Alguns chegaram até a denunciar a existência de depósitos de armas!? É só uma questão de descobrir...
Deputado - Você fala como se isso fosse a coisa mais simples. Você se esquece de que há muito tempo já que eles sabiam que nós viríamos? O elemento surpresa não existe mais...
Repórter - Muito bem, suponhamos que eles não queiram nos mostrar determinado pavilhão. Nós insistimos um pouco, mas ainda assim eles se negam, alegando qualquer coisa. Isso já seria um trunfo a nosso favor. A partir daí tudo se limitaria a descobrir alguém que se dispusesse a nos levar até lá!
Deputado - O seu otimismo é impressionante...
Repórter - É tudo uma questão de fé...(Ambos sorriem) Nós já sabíamos que seria muito difícil. Se trata, apenas, de não desanimar.
Deputado - O que é que você sugere?
Repórter - Eu proponho que a gente converse com aquela mulher.
Deputado - Que mulher?
Repórter - Aquela, sentada logo ali adiante. Ela acompanhou toda a nossa conversa, desde o início.
Deputado - E daí?
Repórter - Daí que foi a única. Todos os demais passam por aqui como se nem nos vissem!? Ela, ao menos, agiu diferente. Quem sabe?
Deputado - Bem, nós podemos tentar.
Repórter - Afinal, foi para isso que viemos. (Eles se dirigem à mulher)
CENA 9
Repórter - Bom dia.
Mulher - Boa tarde.
Repórter - Tem razão, já são quase quatro horas.
Mulher - Quatro horas... mais um pouco e eu lhes daria boa noite.
Repórter - Tão cedo?
Mulher - Os dias em Anaiug são curtos, mas as noites...
Repórter - A senhora se importaria se conversássemos um pouco?
Mulher - Seria um prazer.
Repórter - A senhora já deve saber quem somos nós.
Mulher - Claro, todos aqui sabem quem são os senhores. Há muito tempo que todos se preparam para recebê-los.
Deputado - Se preparam, a senhora disse?
Mulher - Há pelo menos três meses que só se vive em função desse encontro.
Deputado - E seríamos nós tão importantes assim?
Mulher - Pelas palavras do reverendo....
Repórter - E de que forma foi feita essa preparação?
Mulher - Durante as sessões de culto. O pai nos dizia que mais cedo ou mais tarde nós receberíamos a visita de pessoas importantes e era preciso estar preparado.
Repórter - E a que horas se realizavam essas sessões?
Mulher - Durante a noite, como sempre.
Deputado - Por quanto tempo?
Mulher - Muito tempo...às vezes, a noite inteira.
Deputado - E todos compareciam?
Mulher - Claro! Quem é que gostaria de usar o chapéu amarelo?
Repórter - Chapéu amarelo...o que significa isso?
Mulher - Significa que quem o usa perde o respeito de todos, passa a ser evitado até...resolver ser bom de novo.
Deputado - E quando surgiu esse hábito?
Mulher - Faz tempo...
Repórter - A senhora já usou esse chapéu?
Mulher - Eu não, mas um amigo meu...usou.
Repórter - E o que foi que aconteceu com esse seu amigo?
Mulher - Ele nunca mais foi visto.
Deputado - Como assim?
Mulher - Deve estar ainda no pavilhão número três.
Repórter - Por que no pavilhão número três?
Mulher - Porque é para lá que eles vão.
Repórter - Eles quem?
Mulher - Os que cometem alguma falha...deixam de ser bons...ou que duvidam...o pai sempre nos diz que fé e disciplina devem caminhar de mãos dadas.
Deputado - Aonde é que fica o pavilhão número três?
Mulher - Depois do lago. É o mais afastado. E também o menor. Uma vez eu fui até lá, sem que me vissem e espiei por uma das janelas.
Repórter - E o que foi que a senhora viu?
Mulher - Nada...estava muito escuro. Dizem que há um porão lá dentro.
Repórter - Quem lhe disse isso?
Mulher - Meu marido.
Deputado - Será que nós poderíamos falar com ele?
Mulher - Com ele? É difícil...
Deputado - Por quê?
Mulher - Ele foi embora...
Repórter - Ele não teria sido forçado a usar o chapéu amarelo?
Mulher - Não...nele não colocaram o chapéu amarelo.
Repórter - E o que foi que fizeram com ele?
Mulher - Foi bem aqui...numa noite...nós estávamos reunidos e eles o levaram...
Deputado - Para o pavilhão número três?
Mulher - Não sei.
Repórter - E quem o levou?
Mulher - Os homens de óculos.
Repórter - Porque é que eles usam isso?
Mulher - O sol daqui é muito intenso...em pouco tempo os olhos se gastam.
Deputado - E os poços de Anaiug? Para que servem, exatamente?
Mulher - Os poços de Anaiug são tão profundos... (Entra um homem)
Homem - Senhor deputado! Eu gostaria de lhe pedir uma coisa!
Deputado - Pois não.
Homem - Eu queria ir embora. Por favor, enquanto ainda há tempo. Amanhã, me leve com o senhor.
Deputado - Eu não estou entendendo. De que se trata?
Homem - É a minha última chance!
Deputado - Calma, meu amigo!
Homem - Guarde esse papel. Nele eu escrevi meu nome. Amanhã, aconteça o acontecer, o senhor tem que prometer que me levará junto!
Deputado - Então o senhor não é livre para ir quando quiser?
Homem - Livre? (Olha aflito para os lados) Além dos senhores não me resta mais nada! O fim está próximo, eu sei!
Deputado - Fim? Mas o que é que o senhor quer dizer com...(O homem se afasta. Entra um guarda)
Guarda - O reverendo manda lhes dizer que infelizmente hoje não poderá recebê-los. Pede-lhes que voltem amanhã de manhã.
Deputado - Será que o reverendo não nos ofereceria abrigo por essa noite?
Guarda - Não há leitos disponíveis.
Repórter - Mas os caminhos se acham impraticáveis. E são oito quilômetros até o povoado mais próximo.
Guarda - O reverendo lamenta, mas não poderá atendê-los. Os senhores terão que pernoitar fora do campus. Um jeep se encontra à disposição no pátio número cinco.
Deputado - Nós lhe agradecemos. Boa noite. (Saem deputado e repórter)
Guarda - Boa noite.
CENA 10
(Esta cena se passa no dia seguinte. Num canto do palco vemos, por trás de uma tela, as silhuetas de três homens que discutem. São eles o deputado, o repórter e o reverendo, como de hábito denominado Voz. À medida que se desenrola essa conversa, o palco vai sendo lentamente iluminado e os fiéis, orientados pelos guardas, começam a chegar para a cena de despedida do deputado e repórter)
Deputado - Eu lhe fiz uma pergunta objetiva, reverendo. Basta que o senhor confirme ou desminta. É tão simples!
Voz - Eu já tive a ocasião de observar que tudo, para os senhores, é sempre muito simples.
Deputado - Certas perguntas só admitem como resposta um sim ou um não!
Voz - Isso do ponto de vista dos senhores.
Repórter - É ou não é verdade que a comunidade se encontra fortemente armada?
Voz - De onde é que o senhor tirou isso?
Deputado - Alguns irmãos nos confirmaram a existência de trabalhos forçados!
Voz - Gostaria que esses irmãos confirmassem isso na minha frente.
Deputado - Para que o senhor os mandasse para o pavilhão número três?
Voz - O que é que o senhor está pretendendo insinuar?
Repórter - Nós descobrimos, senhor reverendo, que é para lá que o senhor envia a todos aqueles que não se comportam exatamente como determinam as suas leis, que são as do campus, é claro! E descobrimos, também, que o processo de reeducação dos infratores é realizado no fundo dos porões que o senhor mandou construir nesse local! E que nem todos conseguem sobreviver à violência com que são tratados!
Voz - Chega! Os senhores enlouqueceram! E não admito continuar com essa conversa nem mais um minuto! Os senhores estão convidados a deixar o campus imediatamente!
Deputado - E aqueles que quiserem nos acompanhar?
Voz - Que partam junto!
Deputado - Eu exijo uma declaração sua autorizando essas pessoas a partirem conosco. E exijo igualmente um salvo-conduto até o aeroporto. Sem essas duas garantias nós não deixaremos essa sala!
Voz - Não se inquietem. Eu as redigirei agora mesmo.
CENA 11
(Todo o grupo já está em cena, guardas e fiéis, mais ou menos dispostos como no início da cena 7. As silhuetas do Deputado, Repórter e Reverendo continuam visíveis)
Guarda 1 - Dentro de alguns minutos a entrevista que o pai está concedendo ao deputado e ao repórter estará terminada. Então os dois virão até aqui e apresentarão suas despedidas.
Guarda 2 - Que ninguém se esqueça das recomendações do pai. Que ninguém faça indagações desnecessárias. Quanto mais cedo eles se forem, melhor.
Guarda 3 - É indispensável que ambos partam de Anaiug com a melhor das impressões. A consolidação do nosso movimento dependerá, em grande parte, do que eles divulgarem.
Guarda 4 - Se opinarem desfavoravelmente, as pressões poderão se tornar insuportáveis.
Guarda 1 - Que todos se mantenham cordiais e solícitos até o fim, para que o mundo possa compreender, de uma vez por todas, a grandeza da nossa cousa.
Homem (Do bilhete) - O mundo jamais compreenderá a grandeza da nossa causa porque ela simplesmente não existe.
Guarda 1 - O que é que você está dizendo? (As silhuetas do Deputado e do Repórter somem. Permanece visível a do Reverendo)
Homem - Anaiug foi um sonho que fabricamos a partir do próprio desespero. Mas se transformou num pesadelo! Chegou o momento de acordar desse sono de morte!
Guarda 3 - Você enlouqueceu!
Homem - Eu nunca estive tão lúcido em toda minha vida! Isso aqui não passa de um campo de concentração! E vocês, que no início eram exatamente iguais a todos os outros, se transformaram em carcereiros implacáveis!
Guarda 2 - Ou você se cala nesse instante ou nós vamos...
Homem - Vocês não vão fazer nada! Vocês não podem me fazer nada! O deputado e o repórter já estão informados de que eu quero partir junto com eles! Eu lhes pedi isso ontem e eles prometeram que me levariam! Eles têm meu nome anotado, seria uma péssima política sumir comigo agora! Portanto, senhores verdugos, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa, esse massacre termina aqui, hoje!
Guarda 4 - Não tenha tanta certeza assim. O reverendo não costuma perdoar aqueles que o abandonam.
Homem - Já estarei longe.
Guarda 1 - É o que vamos ver.
(Entram o Deputado e Repórter. Ao fundo, a silhueta do Reverendo)
Guarda 2 - Estávamos esperando os senhores.
Deputado - Nós sabemos.
Guarda 3 - A comunidade se reuniu para lhes desejar uma boa viagem e agradecer o carinho e interesse que os senhores demonstraram por todos aqui.
Deputado - Nós é que agradecemos. A visita que fizemos a esse lugar se converterá num enorme benefício para muita gente. (Ao homem do bilhete) O senhor confirma o desejo de partir conosco?
Homem (Juntando-se a eles) - Sim.
Deputado - Há alguém mais que deseje fazer o mesmo?
Guarda 1 - Estamos certos de que ele é o único.
Repórter - Já perguntou a todos?
Guarda 1 - Certas perguntas são desnecessárias.
Repórter - E é o senhor quem decide quais são as perguntas necessárias?
Deputado - Em todo caso, gostaríamos de formulá-la uma vez mais. Existe alguém, dentre os senhores, que deseje, por livre e espontânea vontade, deixar este lugar e seguir conosco? (O Deputado mostra o salvo-conduto) Tenho aqui uma declaração assinada pelo reverendo autorizando a todos que desejem ir embora a fazê-lo agora. (Ao guarda 1) O senhor reconhece a assinatura do reverendo?
Guarda 1 - Sim, é a sua assinatura.
Deputado - Portanto, é um documento autêntico. Ninguém tem nada a temer. O reverendo nos garantiu salvo-conduto até o aeroporto. Se comprometeu a respeitar a vontade dos irmãos que queiram regressar ao continente.
Guarda 2 - É inútil. Todos são felizes aqui. Não há por que ir embora.
Deputado - Muito bem. Os senhores é que sabem. Adeus.
(E saem os três. Os guardas se reúnem rapidamente. Confabulam em voz baixa. De repente um deles retira os óculos escuros)
Guarda - Senhor deputado!
(E esse guarda sai atrás dos três. Fica implícito que é para matá-los)
Guarda 2 - Sentem-se, meus irmãos. A qualquer momento o pai nos falará.
(Todos se sentam. De repente se escuta um som violento, assustador, que indica que o Deputado e o Repórter, assim como o homem que os seguira, acabam de ser mortos. Todos se levantam apavorados, há grande confusão. Os guardas não conseguem dominar os fiéis. Ouve-se, então, a voz do Reverendo, cuja silhueta esteve sempre presente)
CENA 12
Voz - Meus irmãos! Tenham calma! O desespero só nos será prejudicial! Nunca, como agora, necessitamos tanto de lucidez e força! É imprescindível que todos tenham fé e convicção! (O grupo começa a se acalmar) A visita do deputado e do repórter se transformou num fracasso. Eles não vieram em busca de informações imparciais. Pelo contrário: já chegaram aqui com uma opinião formada e se recusaram a mudá-la. Nada do que lhes foi mostrado teve o poder de demovê-los. Eles abusaram de nossa boa fé e como se isso não bastasse ainda se julgaram no direito de nos fazer acusações. E mais: tiveram a ousadia de tentar fomentar a discórdia entre nós. Não nos foi possível, portanto, evitar as conseqüências de tal comportamento. Ambos acabam de ser mortos, assim como o irmão que nos traiu. Mas isso não é tudo. Dentro de muito pouco tempo o mundo estará informado do que se passou hoje, aqui. E Anaiug, não tenham dúvidas, será invadida e arrasada. Era o pretexto de que o sistema necessitava para nos colocar numa situação insustentável perante o mundo. O nosso sonho de construir uma comunidade agrícola pacífica chegou ao fim.
Homem - Eles não farão isso! Não ousarão invadir nossas terras!
Voz - Nós sabemos que sim. Não nos enganemos. Dentro de uns poucos dias já não existirá mais nada aqui...nós seremos presos, enviados a campos de concentração!
Homem - Eu não irei! Não vou permitir que me façam mal, nem à minha família!
Voz - O irmão se expressou com sabedoria. Nós não pertencemos mais ao mundo exterior. Portanto, não seria lógico que nos submetêssemos aos seus tribunais e acatássemos as suas sentenças.
Homem - E o que faremos, pai?
Voz - Só nos resta dar o passo definitivo. O mundo não está interessado em nós. O seu único objetivo é o de nos punir, nos castigar pela ousadia que tivemos de contestá-lo, renegá-lo para sempre. O que nos cabe, nesse momento, é demonstrar claramente que nos consideramos superiores a todos os seus dogmas. Que suas leias não nos dizem respeito e que somos por demais conscientes de nossa importância para nos curvarmos ante sua tirania. Nossa comunidade desaparecerá, meus irmãos... Nossas construções serão demolidas e essa terra será salgada. Destruirão tudo que conseguimos edificar em Anaiug. Mas aquilo que conseguimos estabelecer entre nós não poderá ser destruído nunca. Continuará a existir sempre, independentemente dos governos, dos organismos oficiais! Todos os corações sensíveis hão de se colocar do nosso lado e talvez um dia, quem sabe, parta de um deles uma nova tentativa de uma vida melhor, mais justa, em que todos possam ter oportunidades iguais. Nós deixaremos de existir, mas não a memória do que fizemos. Não nos rebaixaremos a ser perseguidos, encurralados e mortos como gado num curral. Nossa comunidade desaparecerá, mas não pela mão de seus carrascos. Desaparecerá porque seus membros assim o decidiram. O ideal que nos uniu em vida há de nos manter unidos na morte. Através dela nós transcenderemos nosso próprio destino e daremos ao mundo uma demonstração inequívoca da grandeza de nossos propósitos. (Os fiéis se entreolham) Muitas vezes nós admitimos a possibilidade de uma situação como a que se apresenta. E em nenhuma dessas ocasiões nenhum irmão vacilou um minuto sequer. Quero crer que não o farão agora...
(O grupo vacila, ninguém toma a iniciativa. Até que um dos irmãos se dirige a uma das estacas. Com os lábios cerrados entoa baixinho a melodia do cântico, só que num ritmo bem lento. Pega a estaca e a crava num dos orifícios restantes. Se imobiliza. Continua a murmurar essa melodia. E o processo se repetirá com cada um até que todos estejam mortos. Do teto começa a descer a lona escura. Estará formado um grande coral. A silhueta do reverendo tomba)
FIM
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