quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Um Dia Você Aprende

Depois de algum tempo você aprende a diferença,
a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se,
e que companhia nem sempre significa segurança.
E começa a aprender que beijos não são contratos
e presentes não são promessas.
E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida
e olhos adiante, com a graça de um adulto
e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas no hoje,
porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos,
e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima
se ficar exposto por muito tempo.
E aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam…
E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa,
ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.
Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se leva anos para se construir confiança
e apenas segundos para destruí-la,
e que você pode fazer coisas em um instante,
das quais se arrependerá pelo resto da vida.
Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer
mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida,
mas quem você é na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos
se compreendemos que os amigos mudam,
percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa,
por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos
com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começa a aprender que não se deve comparar com os outros,
mas com o melhor que você mesmo pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto.
Aprende que não importa aonde já chegou, mas onde está indo,
mas se você não sabe para onde está indo,
qualquer lugar serve.

Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão,
e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade,
pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação,
sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer,
enfrentando as conseqüências.
Aprende que paciência requer muita prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute
quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência
que se teve e o que você aprendeu com elas
do que com quantos aniversários você celebrou.
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens,
poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia
se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva,
mas isso não lhe dá o direito de ser cruel.
Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer
que ame, não significa que esse alguém não o ama,
pois existem pessoas que nos amam,
mas simplesmente não sabem como demonstrar isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém,
algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga,
você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido,
o mundo não pára para que você o conserte.
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma,
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar…
que realmente é forte, e que pode ir muito mais
longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor
e que você tem valor diante da vida!
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem
que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar.
(William Shakespeare)





Um Apólogo
Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.


SOBERBA
Lionel Fischer

(Cortina fechada. Surge a princesinha Tesudetta. Ela se dirige à platéia)

Tesudetta - Como podeis constatar sem grande esforço, estou possuída de grave melancolia, salpicada de aflição e fustigada pela desesperança. E se aqui me encontro, diante de vós, e diante de vós me prostro de joelhos (Ela se põe de joelhos), é porque em vós deposito minha última esperança. Caso m’a negueis, o que não posso crer que o façais, todo meu ser se verá tomado pela mais cava depressão, morada fatídica de onde ninguém consegue escapar, desde que nela adentre - ainda mais no século em que vivo, o XIII, quando Freud ainda não havia sido concebido e muito menos os medicamentos específicos aos quais tendes acesso quando tal moléstia, a melancolia, vos assalta. Acompanhai, portanto, e com a atenção devida, a breve narrativa que ora vos exponho, finda a qual talvez consigais lançar alguma luz sobre as trevas abissais em que me encontro, fruto do impasse que me dilacera por dentro e em toda a minha periferia. (Entra uma música, a cortina se abre lentamente. Vemos duas escadas. No topo de uma delas se encontra o Rei; no topo da outra, o príncipe Arlindorlandus. Junto a cada uma das escadas, um Conselheiro. Sai a música)

Tesudetta - Toda a tragédia começou no dia que seria o dia mais feliz de minha vida: quando completei 15 anos de radiosa existência, fato ocorrido há um mês. Para comemorar a marcante data, meu pai resolveu promover um grandioso baile, para o qual convidou todos os governantes dos reinos fronteiriços, dentre eles o príncipe Arlindorlandus. E lá pelas tantas, quando os trovadores começaram a entoar uma seqüência de baladas dançantes que muito sucesso faziam, eis que Arlindorlandus me saca pra bailar. (Entra uma música medieval. Arlindorlandus desce da escada e dança com Tesudetta. O Rei descongela, assim como os dois Conselheiros)

Conselheiro do Rei - E todos acompanhávamos, embevecidos, a evolução dos pares, e em especial o formado por Tesudetta e Arlindorlandus, que até então não se conheciam e, surpreendentemente, exibiam total entrosamento.

Conselheiro do Príncipe - Num dado momento, porém, o assombro tomou conta de todos. (Sai a música medieval. Todos congelam, menos o Conselheiro do Príncipe) Como que embalados pelo som de uma música que ninguém ouvia, Tesudetta  e meu senhor, Arlindorlandus, passaram a evoluir estranhamente acoplados, e rebolando de tal forma que tivemos a impressão de que um processo de cópula estava em marcha. (Entra um forró. O Rei se ergue, estupefato, a mesma estupefação estampada no rosto dos Conselheiros. Após um tempo, o Rei pula da escada. Cessa o forró)

Rei - Mas o que é isso? Estais possuídos pelo demo? É ele quem impregna vossos ouvidos de uma canção que não ouvimos e vos instiga a projetarem para frente e para trás os mútuos ventres, assim promovendo indecorosa intimidade entre vossas partes pudendas?

Tesudetta - Meu pai, estais interpretando erroneamente...

Rei - Calai-vos, antes que a cólera me domine por completo e te esbofeteie até ver tua rosada face deformada!

Príncipe - Senhor, por que partiríeis para uma agressão tão descabida se...

Rei - Calai-vos vós, igualmente, pois do contrário tuas bochechudas faces receberão idêntico flagelo! 

Tesudetta - Oh meu Deus, fazei com que papai...

Rei - Como ousaste sarrar minha única e dileta filha, diante de minhas barbas, em meu castelo, e tendo por testemunha toda a minha nobreza e a fronteiriça?

Arlindorlandus - Perdão, senhor, mas não a sarrava!

Rei - Ah, não? E o que fazíeis, grudando o que imagino que possuís entre as pernas na região análoga de Tesudetta?

Tesudetta - Oh, meu pai, acreditai em vossa filha: nada senti de ofensivo, da parte de Arlindorlandus, na região que mencionais!

Rei - Talvez nada tenhais sentido porque o objeto da ofensa, no presente caso, seja um tanto diminuto! (Tesudetta desvia o olhar do pai, com expressão dúbia)

Arlindorlandus  - Sugeris acaso que o pedúnculo que ostento em meu baixo ventre...

Rei - Cagando estou para a dimensão de vosso pedúnculo! Quero apenas que saibais que, de ora em diante, e para todo o sempre, sois persona non grata neste reino!

Todos - Oh!

Rei - E que estão cortadas para todo o sempre as amistosas relações que até então mantínhamos, tanto pessoais como comerciais!

Todos - Oh!

Rei - Assim sendo, ordeno que vos retireis imediatamente de meus domínios, ficando desde já implícito que, se neles fordes algum dia surpreendido, sereis torturado implacavelmente até a morte!

Todos - Oh!

Arlindorlandus - Pois que seja. E o mesmo vaticínio aplico a vós, se porventura e sob qualquer pretexto, fordes surpreendido nos domínios sob minha tutela!

Tesudetta - Meu nobre pai! Gracioso Arlindorlandus! Estais ambos agindo como crianças insensatas! Ponderai com um mínimo de calma acerca da grotesca decisão que acabais de tomar e logo percebereis suas graves conseqüências!

Rei/Arlindorlandus - E quais são elas?

Tesudetta - Afora a perda da mútua amizade que até então vos unia, vos vereis privados daquilo que mais amais!

Rei/Arlindorlandus - E o que seria?

Tesudetta - Não sejais cínicos! Vós, meu pai, sabeis perfeitamente que não conseguireis sobreviver sem degustar diariamente os brocolitos...

Conselheiro do Rei (À platéia) - Palitinhos de brócolis.

Tesudetta - ...que para cá são exportados por Arlindorlandus!

Rei - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!

Tesudetta - E quanto a vós, Arlindorlandus: imaginais poder viver sem as trulhetas...

Conselheiro do Príncipe (À plateia) - Trufas em forma de caneta.

Tesudetta - ...que só aqui existem e que meu pai vos envia mensalmente?

Arlindorlandus - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!

Tesudetta - Por Deus, sabeis que não! Da mesma forma que não ignorais que todo esse mal-entendido pode ser agora dissipado!

Rei/Arlindorlandus - Jamais!
Tesudetta - Meu pai, por tudo que pode haver de mais sagrado: eu vos juro que não tive minhas partes pudendas fustigadas pelo colossal ariete de Arlindorlandus!

Rei - Como sabeis ser colossal o dito ariete?

Tesudetta - Bem, eu...

Arlindorlandus - Inóspito vizinho: embora esta não seja a ocasião propícia para a revelação de detalhes anatômicos, posso vos garantir que o pedúnculo que ostento se enquadra nos padrões da mais absoluta normalidade!

Conselheiro do Príncipe - Isso é verdade.

Príncipe - E se Tesudetta o adjetivou de “colossal”, isto se deve apenas a um mimo de sua parte, posto que toda mulher sabe que todo homem gostaria de possuir um tarugo capaz de aterrorizar a mais devastada das prostitutas!

Conselheiro do Rei - Tesudetta já nasceu sabendo das coisas...

Arlindorlandus - Assim sendo, reitero o que já vos disse: ao bailar com vossa filha, em nenhum momento me ocorreu a obscena idéia de sarrá-la. E o mesmo, vos afirmo, jamais passou pela cabeça de Tesudetta, flor ainda em botão, a inocência personificada. Portanto...

Rei - Nem uma palavra mais! Ou a espada desembanharei e vossa rotunda cabeça cortarei!
Arlindorlandus - Se vossa mão buscar o rumo de vossa espada, o mesmo se dará com a minha! E serei eu a decepar vossa cabeça, por sinal muito mal feita!
(Ambos sacam as respectivas espadas. Os Conselheiros se agarram aos seus monarcas, enquanto Tesudetta, após correr para o procêncio, solta um grito lancinante. Toda a cena congela. Tesudetta, à platéia, sob a luz de um único foco)

Tesudetta - Como já vos disse no início desta dolorosa narrativa, já 30 dias se passaram. E nada se modificou. Ou por outra: tudo se modificou. Privado de seus brocolitos, meu pai se encontra neste lamentável estado...(Um foco no Rei, trepado na escada. Ele está com o peito à mostra, onde se vêem manchas arroxeadas) Pústulas nauseabundas adornam seu outrora majestoso peito...(O Rei geme e chora) Quanto a  Arlindorlandus, uma vez privado das trulhetas, assim ficou...(Foco no Príncipe, também trepado na escada, a peruca que usava em uma das mãos) Estão lhe caindo todos os pelos, a começar pelos de cima...(Arlindorlandus chora e geme) Quanto a mim, já não sei mais o que fazer. A não ser contemplar, impotente, os trágicos efeitos da soberba. Sim, pois é ela que os impede de fazer as pazes. Por desmedido orgulho, nenhum dos dois se dispõe a dar o primeiro passo, a estender a mão que selaria a paz. E aqui não se trata, em absoluto, de ferrenha defesa de princípios, pois meu pai tem plena consciência de minha natureza galinácea e se porventura Arlindorlandus a desconhecia, não resta a menor dúvida de que fustigou minha caçapinha com seu inflado bastonete. Seja como for, estamos todos diante deste doloroso impasse. E a menos que algum dos senhores ou senhoras me diga o que fazer para levá-los a renunciar ao capital pecado que os consome, nada me restará a não ser aguardar, resignada, a morte de meu pai e a de meu ardente forrozeiro! (Tempo) E então, senhores? Nenhuma idéia salvadora?

Rei (Agonizando) - Meu reino por um brocolito...

Tesudetta - Por Deus, meu pai agoniza!

Arlindorlandus (Agonizando) - Tudo daria por uma trulheta...

Tesudetta - Vede o lamentável estado em que se encontra Arlindorlandus!

Conselheiro do Rei - É inútil prosseguir com vossas súplicas, Tesudetta...(Toda a cena se ilumina)

Conselheiro do Príncipe - Deles não obtereis a salvadora dica. 

Tesudetta - E por que não?

Conselheiro do Rei - Porque vossa história não os comoveu.

Conselheiro do Príncipe - E nem convosco se identificaram.

Conselheiro do Rei - E quando a platéia não estabelece com a protagonista a indispensável empatia...

Conselheiro do Príncipe - Narrativa e cena vão ambas pro caralho!

Conselheiro do Rei - Assim, que o pano se feche e as luzes se apaguem!
Conselheiro do Príncipe - E para as coxias marchemos conscientes do próprio fracasso!

Tesudetta - Pois daqui não saio até que um conselho receba!

Conselheiro do Rei - Aceitai a derrota, ninfa pervertida!

Conselheiro do Príncipe - E permiti que a humildade de vosso ser se aposse!

Tesudetta - Poupai meus ouvidos de tão estéril cantilena! Já disse e repito: deste palco só saio quando algum deles se pronunciar!

Conselheiro do Rei - Se assim é, preparai-vos para uma longa agonia...

Conselheiro do Príncipe - Em tudo semelhante à que o destino reservou a vosso pai e a meu senhor...

Conselheiro do Rei - Pois no fundo, assim como no raso, não passais de almas gêmeas...

Conselheiro do Príncipe - Todas padecendo do mesmo e pavoroso pecado.

Tesudetta - E qual seria ele, se não vos importais de m’o dizê-lo?

Conselheiros - A soberba!!! (Acorde dramático. Tesudetta tomba no chão, vítima de soberbo enfarte, ao mesmo tempo em que o Rei e Arlindorlandus exalam o último suspiro. Após constatarem a tripla morte, os Conselheiros vão saindo de cena, cada qual por um lado, lentamente, enquanto as luzes caem em resistência)

OBS: esta cena foi escrita, em tempos imemoriais, em homenagem a ArlindoOrlando, personagem criado por Evandro Mesquita na canção “A dois passos do paraíso”.
____________________________


 







                                      
A mão

         Desde a noite de núpcias, há mais de 50 anos, que dormiam de mãos dadas. Mesmo durante os inevitáveis períodos de crise, a nenhum dos dois ocorreu renunciar ao gesto: realizavam-no automaticamente e apesar de tudo. E embora jamais tenham trocado uma palavra sobre essa singular perseverança, no fundo acreditavam que se rompessem uma única vez com o ritual de sempre isso equivaleria a admitir que nada mais lhes restaria a não ser a separação. Mas afora seu caráter simbólico, o gesto parecia possuir propriedades soporíferas, pois uma vez consumado o casal adormecia em menos de cinco minutos, sendo, portanto, de extrema validade tanto para o espírito como para o corpo.
        
Tinham a mesma idade, setenta e cinco anos, gozavam de boa saúde e a morte não os preocupava. Juraci, inclusive, tinha plena convicção de que viveria mais de cem anos. Menos otimista, ainda assim Soraia acreditava que atingiria os noventa. A se confirmar a previsão de ambos, teriam então ao menos quinze anos de vida em comum.
        
Entretanto, numa tarde como outra qualquer, quando regressava para casa após ter feito compras na quitanda da esquina, Soraia sentiu subitamente a presença da morte. Poderia, por certo, ter interpretado o calafrio que lhe percorreu as entranhas como um sintoma de gripe iminente; também poderia ter associado a vertigem, que quase a fez tombar, à recente mudança de grau nos óculos que usava ; ou ter atribuído à sua costumeira flatulência a dor que sentiu pouco abaixo do diafragma e que parecia empenhada em lhe obstruir a respiração. Enfim, Soraia poderia ter tentado consolar-se da premonição que a invadira apoiando-se em qualquer uma das três hipóteses, ou até mesmo mesclando-as. Mas foi tão avassaladora a sensação de que não lhe restavam pouco mais do que uns míseros dias que tudo o que conseguiu fazer foi recostar-se no muro de uma casa e chorar discretamente a inexorabilidade de seu destino.
        
Entretanto, nada comentou com o marido, mas a partir daí só agiu em função dele. No dia seguinte, procurou um artesão que vendia bonecos desengonçados nas feiras e nos mercados, e encomendou-lhe uma mão exatamente igual à sua, pagando adiantado e regiamente - mas só depois de ter arrancado dele a promessa solene de que ninguém haveria de saber o que ela lhe pedia. Petrônio, o escultor fracassado, que só conseguia se manter vivo graças à generosidade de uns poucos que eventualmente adquiriam seus monstrengos, ante a polpuda quantia oferecida lançou-se de imediato ao trabalho, concluindo-o em três dias.
        
Nessa mesma noite, Soraia mostrou a réplica de sua mão esquerda ao marido. Ele a elogiou muitíssimo, mas quando ficou ciente dos motivos que haviam animado a esposa a mandar fazê-la, teve uma crise de asma tão violenta que Soraia, por um momento, acreditou que a escultura corria sério risco de jamais vir a ser utilizada. Juraci precisou ser levado a um posto de saúde e só não morreu por puro acaso. Passou a noite inteira encafifado dentro de um balão de oxigênio e sua dispnéia só cedeu quando o dia clareava. Soraia permaneceu todo o tempo ao seu lado, segurando sua mão, implorando a Deus para que não o levasse antes dela, dentre outras coisas por não lhe parecer justa uma inversão na ordem das mortes depois do que havia gasto.
        
Quando regressaram a casa, Juraci não mais silvava como um cão agonizante, mas em contrapartida tornou-se catatônico. Soraia tentou durante todo o dia convencê-lo de que agira pensando unicamente nele, na sua tranqüilidade noturna, na perpetuação do antigo hábito, mas Juraci permanecia aferrado à sua postura pétrea de general de estátua. Passava das onze quando, já rouca e esgotada, Soraia decidiu finalmente renunciar a que o marido reconhecesse a grandeza de seu gesto. Colocando então a mão sintética e borrachuda numa caixinha de vidro, beijou o marido, foi para o seu quarto, deitou-se e morreu imediatamente.
        
Durante os quinze dias que se seguiram à misteriosa morte, Juraci não ousou tocar naquela mão eternizada, mas também não conseguiu dormir um minuto sequer - apenas cochilava durante o dia, no máximo por alguns minutos. Recorreu a sedativos, inventou os mais variados estratagemas para atrair o sono, mas foi tudo inútil. Quando finalmente se convenceu de que não lhe restava outra alternativa a não ser a de seguir a recomendação da falecida, foi para a cama com a caixinha e tão logo se pôs em contato com a réplica dormiu de imediato.
        
A partir daí, Juraci nunca mais teve qualquer problema para dormir, porque jamais deixou de se deitar de mãos dadas com o precioso objeto. Sua relação com ele, aliás, não se limitava ao mero ato de usufruir suas propriedades soporíferas; quando saía para passear, por exemplo, levava-o sempre consigo, se bem que oculto, pois não lhe interessava que os outros soubessem de sua existência. Afora isso, lavava-o com freqüência, escovava-o e depois de certo tempo habituou-se a passar esmalte uma vez por semana nas unhas da escultura, utilizando invariavelmente a tonalidade preferida da esposa, um rosa desmaiado.
        
Diante de tal quadro, não se torna nem um pouco difícil compreender porque Juraci conseguia suportar tão bem - dentro do possível, evidentemente - a ausência da esposa. Guardadas as devidas proporções, era como se ela continuasse em sua casa e em sua vida. É até provável que seu amor por Soraia tenha aumentado depois da morte dela, pois nunca fora tão atencioso e gentil com a esposa como o era agora com a réplica de sua mão esquerda. Sempre a amara, é verdade, mas de forma econômica, homeopática, pouco expansiva, como se no fundo temesse um esvaziamento prematuro de suas reservas afetivas.
        
E assim, apaixonado e certo de que chegaria mesmo a completar um século, Juraci foi levando sua vida. E certamente teria conseguido o prodígio de viver cem anos não tivesse tido a idéia de comemorar o primeiro aniversário de viúvo chamando seus amigos mais chegados para uma singular reunião social. Aos que estranharam o aparentemente insólito convite declarou, em tom solene, que tinha certeza de que Soraia aprovaria aquela iniciativa, posto que a mesma fora concebida visando homenageá-la. Sim, toda a conversa haveria de girar em torno dela, da maravilhosa relação que haviam mantido por mais de meio século - Juraci só não revelou que pretendia recitar alguns sonetos que compusera pensando na finada e que gostaria de submeter à sincera avaliação de seus amigos. Se aprovados, prosseguiria dando vazão à verve poética de que se julgava possuído e mais tarde, quem sabe, tentaria publicá-los. Já havia até mesmo escolhido o título da possível coletânea: “Soneraia”- que, como se vê, é a sutil mescla de soneto com Soraia.
        
Confiando que a inusitada tertúlia haveria de consagrá-lo como esposo devotado e poeta tardio, encomendou um farto bufê de doces e salgadinhos, assim como abarrotou a geladeira de cerveja de várias marcas. E para que nada pudesse distrair a atenção dos amigos ou interromper o fluxo de paixão que haveria de impregnar os corações presentes, contratou uma mulata que trabalhava na quitanda para servir as guloseimas e bebidas. Chamava-se Fátima e teria uns 17 anos. Por julgá-la inexperiente em assuntos de tamanha envergadura - amor e poesia -, Juraci a orientou no sentido de não permitir que algum dos convidados deixasse a sala para, por exemplo, ir até a geladeira pegar um pouco mais de cerveja. Ela teria que permanecer vigilante na porta da cozinha, que dava para a sala, e suprir as carências de seus amigos antes mesmo que eles as notassem. Em troca, receberia 50 reais e poderia ficar com todos os petiscos que porventura não viessem a ser consumidos.
        
A idéia, em si, era excelente, pois, como todos sabemos, a poesia, para ser devidamente apreciada, requer um grau de concentração absoluto. Mas nem sempre as boas intenções geram resultados compensadores, haja vista a enorme legião de bem-intencionados que habita as trevas infernais. E ainda que não possamos garantir que tenha sido esse o destino de Juraci, o fato é que antes de soarem as doze badaladas daquele fatídico dia ele já não pertencia mais a esse nosso abençoado mundo.
        
Mas vamos ao que ocorreu. A reunião começou às 18h em ponto, hora da Ave Maria e justamente com uma oração em memória de Soraia, porque todos os presentes, além de estimá-la muito, eram católicos genuínos. Em seguida, e durante as próximas duas horas, falou-se muito dela, da relação do casal, do amor, tudo de acordo com os planos previamente traçados por Juraci. E comeu-se muito e bebeu-s em igual medida, de forma que às 20h o anfitrião julgou que o clima já se tornara propício para o início do recital. Então, sem nenhum aviso prévio, postou-se no centro da sala e, para assombro dos presentes, recitou, de cor e em seqüência, 54 sonetos!
        
Assim que acabou, afônico e esgotado de tanta emoção, Juraci tornou a se sentar e teve uma violenta crise de choro. Mas os amigos o cercaram de imediato e foram pródigos em elogios e afagos - dentre os muitos que ribombaram pela casa talvez o mais sublime tenha sido o que o designou “O José de Alencar de Vila Valqueire”, o que em muito excedia as mais otimistas expectativas do poeta estreante.
        
Finalmente, às 23h, retirou-se o último convidado, na casa permanecendo apenas a mulata Fátima, entretida na arrumação da casa e na lavagem de pratos, copos e talheres. Nada poderia sugerir o que se seguiu, mas o fato é que de repente Juraci teve a intuição de que aquela noitada o havia rejuvenescido em pelo menos vinte anos. E essa intuição surgiu no exato instante em que Fátima, empenhada em resgatar um garfo que caíra embaixo de uma das poltronas, sem querer exibiu uma considerável parcela de suas coxas magníficas. Incapaz de dominar-se, Juraci atirou-se sobre as ancas da distraída criatura e as mordeu com tal ímpeto que a doméstica, equivocada quanto ao real sentido daquele inesperado assalto, assim que conseguiu desvencilhar-se partiu em disparada e aos gritos, desprezando o pagamento, os salgadinhos e os tardios pedidos de desculpas que lhe endereçava Juraci. Mas este, ainda que um tanto frustrado, não chegou a ficar triste, pois redescobrira que suas reservas de macho ainda não se haviam esgotado, como supunha. O curioso, no entanto, é que em nenhum momento  lhe ocorreu que a dita descoberta se dera imediatamente após ter recitado 54  sonetos de amor em homenagem à falecida...o que configurava uma traição, ainda que póstuma. Tanto assim que, ao deitar-se de mãos dadas com a borrachuda réplica, não se conteve e recitou alguns sonetos que considerava pertencentes ao grupo dos melhores. E ao adormecer, o fez com a certeza de que nunca amara tanto Soraia quanto naquele momento.
        
Deviam ser umas sete da manhã quando a porta da residência de Juraci começou a ser cruelmente massacrada pelos punhos do pai de mulata, que, indignado com o relato que ela lhe fizera, decidira tomar satisfações. Impaciente com a demora e já imaginando que Juraci fingia dormir para esquivar-se às suas responsabilidades, o latagão de ébano acabou ponto a porta abaixo. Ato contínuo e como um Átila invadiu a residência aos gritos de “velho porco, velho tarado”, aos quais agregou ameaças de toda a espécie. Infelizmente para ele, porém, não teve a ventura de consumá-las, pois assim que entrou no quarto de Juraci percebeu sua total imunidade a vinganças deste mundo: estava morto.

Mas não foi por esse motivo que o ofendido pai se retirou desabaladamente dos aposentos que invadira, mas sim devido ao terror que dele se apossou ao constatar a presença, no pescoço de Juraci - que gostaria de haver torcido - de uma mão crispada! - sem dúvida a causadora da mortal asfixia. (Lionel Fischer, escrito aos 17 anos)





Brindes

                                                                                    Michael Frayn


Personagens:
                   Sara
                   Mota
                   Cátia
                   Orador
                  
Cenário:
                   Um palco preparado para uma solenidade.

(Sara, Mota e Cátia estão em pé há um bom tempo, segurando, da melhor maneira possível, um prato, uma faca, um garfo, um guardanapo, uma taça de vinho e uma pasta com papéis. As pastas estão cheias. Os pratos e taças vazios)

Orador - ...acredito, porém, que é possível olhar para trás com alguma satisfação, para esse período marcado por conquistas heróicas, sim, e também por inevitáveis decepções. Um período que será lembrado como um tempo de buscas e, às vezes, de descobertas; de luta e, às vezes, de conciliação; de progresso, sim, e também de consolidação; de expansão, e também de contenção. (Sara discretamente contém um bocejo durante o discurso. Mota discretamente toma o último gole de vinho. Sara e Cátia vêem que as taças estão vazias. Sara descobre uma garrafa com um pouco de vinho do outro lado de Cátia e, discretamente, avisa sua colega. Cátia dá um jeito de pegar a garrafa, discretamente, enquanto os outros, não menos discretamente, estendem os copos. Agora Cátia está segurando mais coisas do que é humanamente possível. À medida que enche as taças, a pasta de papéis escorrega de suas mãos, mas é apanhada por Mota, que agora segura mais do que é humanamente etc. O garfo e faca de Mota são apanhados por Sara, que agora etc.)

Orador - Penso que devo fazer aqui uma advertência da mais suma importância. Quando nos voltamos do passado imediato para o futuro próximo e não tão próximo, o que nós vemos é um déficit projetado - contrariando todas as estimativas prévias - de algo na ordem de três a quatro por cento nas cifras não ajustadas, desde que, é preciso enfatizar, desde que não haja uma queda correspondente no cômputo geral, o qual, em termos reais, mal constitui um fundo inerte, num momento em que a tendência de ascensão subjacente tem sido mais do que contrabalanceada por uma combinação de lucros cessantes e quedas incessantes. Basta dizer que estaremos monitorando os resultados nessa área com a máxima atenção, e que, se for necessário, medidas corretivas serão prontamente implementadas para manter as flutuações de curto prazo dentro dos parâmetros estabelecidos antes da atual queda do ritmo que vinha em ascensão. Tendo isso em mente, talvez fosse melhor terminar num tom um pouco mais otimista. Se vocês se concentrarem por um momento nos papéis que se encontram em suas pastas...(Horrorizados com o  pedido inesperado, eles tentam equilibrar as pastas para abri-las)

Orador - ...verão que as cifras apresentadas relatam uma história bastante significativa e não totalmente desanimadora. Me parece que, dentro desse clima geral de insegurança, é ainda mais gratificante descobrir...vamos um instante para a página 3...página 3, por favor...(Eles se esforçam para chegar na página 3)

Orador - ...que o desempenho básico do período corrente...tenha sido tão pouco afetado, levando-se em conta as mudanças no método de contabilização dos dados - mudanças meticulosamente explicadas nas notas do final da página 29. Mas é preciso dar algum desconto em relação aos inevitáveis fatores imprevistos...vejamos agora na página 37...todos possuem a página 37? Vocês vão perceber, na coluna da direita, um ajuste adicional para certas eventualidades não recorrentes, tais como mudanças nos níveis de cortes, como pode ser visto na tabela da página 15...E na página 22, nas folhas rosas...as folhas rosas, por favor...uma única providência em relação aos ativos depreciados ou em depreciação, desde a última avaliação global. De fato, vejam as cifras anuais, voltando à página 3...e eu peço que vocês prestem a máxima atenção nisso...na página 3...página 3, por favor...nas folhas brancas...Na página 51, aliás, vocês vão encontrar uma data da maior importância, e eu lhes pediria agora para tomar nota em suas agendas...obrigado. Voltando à página 3, uma vez mais, vocês verão que as importantíssimas cifras globais mostram um ligeiro, mas perceptível aumento em termos percentuais. Na minha modesta opinião, este é um resultado do qual todos podemos nos orgulhar muitíssimo. (Pausa. Som de aplausos hesitantes. Sara, Mota e Cátia lutam para bater palmas, colocando as taças debaixo dos braços ou no chão)

Orador - Agora encham as taças...(Eles pegam as taças e descobrem que estão vazias, assim como a garrafa) ...desejo propor um brinde à pessoa que, mais do que ninguém, tornou possível essa notável conquista. Vocês podem adivinhar que é essa pessoa, com toda a certeza, basta dizer que é um dos membros da equipe que tem efetivamente otimizado os resultados de economia em nosso escritório: Ricardo Feijó, que conseguiu ser classificado duas vezes seguidas em segundo lugar na competição mensal de organização de nossa firma...(Eles erguem as taças, procurando ocultar que estão vazias) ...o qual, por seus próprios esforços pessoais, é mais do que merecedor de nossos calorosos aplausos. (Aplausos. Sara, Mota e Cátia tentam se livrar das taças, ou colocá-las no chão, para poder aplaudir) Queiram, por favor, erguer as taças...(Eles se apressam em recuperar as taças para erguê-las) E vamos brindar a alguém que tornou possível à nossa organização ganhar um disputado prêmio regional de eficiência...(Pausa. Aplausos incertos. Sara, Mota e Cátia tentam de novo livrar as mãos) ...uma notícia particularmente animadora...(Eles conseguem pegar as taças) ...porque nos permitiu chegar à semifinal nacional...(Pausa. Eles se curvam para colocar as taças no chão e aplaudir) ...Dona Berta! (Eles se esforçam para erguer as taças de novo)

Todos - Dona Berta! (Eles bebem à sua saúde. Aplausos. Eles se livram das taças para aplaudir)

Orador - E também o fiel assistente de dona Berta: seu Edimilson! (Taças erguidas)

Todos - Seu Edimilson! (Aplausos. Eles se livram das taças para aplaudir)

Orador - E já que estamos todos comemorando, gostaria de propor um brinde à encantadora mãe de dona Berta, que vai completar 57 anos, que eu saiba, daqui a exatamente uma semana. (Taças erguidas) Mas bem sei que dona Berta e sua mãe gostariam que eu mencionasse o centro de reabilitação da CCR, que tornou esse aniversário possível...
(Aplausos. Abaixam as taças) Mas dito isso...(Taças erguidas) ...devemos pensar também nos inúmeros Centros de Reabilitação de todo tipo que desenvolvem com afinco um trabalho louvável em todo o nosso país, do Oiapoque ao Chuí...(Aplausos. Abaixam as taças) ...À mãe de dona Berta! (Taças erguidas)

Todos - À mãe de dona Berta! (Eles bebem e vão logo abaixando as taças)

Orador - O que me leva a pensar, inevitavelmente, em mais um aniversariante de peso desse mês: o doutor Bulcão, em pessoa! (Eles param no meio do caminho, hesitando entre erguer ou abaixar as taças) São tantas e tão variadas as realizações do doutor Bulcão, que eu nem saberia por onde começar. Devemos fazer um brinde à sua saúde? Ou aplaudir primeiro o seu merecido sucesso? Ou brindar ao seu permanente sucesso futuro? Ou demonstrar o nosso grande apreço de sempre? Talvez seja mais apropriado dizer, simplesmente...(Pausa. Eles congelam no meio do caminho) ...Bravo, doutor Bulcão! (Sara aplaude. Mota e Cátia bebem)

Mota e Cátia (Balbuciando) - Bravo, doutor Bulcão!
(Vendo Mota e Cátia bebendo, Sara ergue a taça rapidamente e também bebe, ao mesmo tempo em que, vendo Sara aplaudir, Mota e Cátia dão logo um jeito nas taças para também aplaudir)

Orador - E agora vamos rezar...(Sara se ajoelha imediatamente) ...para que possamos continuar progredindo a passos largos...(Ao ver Sara de joelhos, Mota também se ajoelha, enquanto Cátia puxa Sara para cima) ...para que conquistemos, a cada ano, resultados tão promissores quanto os atuais. E eu gostaria de fazer ainda uma última observação. Não desistam quando ainda são capazes de um esforço a mais. Estou ciente do imenso sacrifício exigido de cada um de nós. Sei que todos aqui reunidos carregam, abnegados, um fardo enorme...Portanto, vamos terminar com uma homenagem muito especial dirigida a nós mesmos. Vamos mostrar ao mundo do que somos capazes! Vamos erguer nossas taças...(Eles erguem as taças) ...vamos aplaudir...também.
(E aplaudem junto. Uma barulheira de vidro quebrando. A tralha toda escorrega e voa para todos os lados. Mota, Sara e Cátia tiram cacos de vidro dos dedos, enrolam guardanapos nos pulsos feridos etc.)

FIM
______________________________
Ana Luiza Martins Costa assina a tradução do texto


Afetos

Esta breve cena foi escrita a pedido de dois alunos que iriam realizar um teste. o tema foi proposto por eles: as supostas cautelas que os homens devem ter quando se deparam com a possibilidade de um novo relacionamento. o personagem EU sou eu mesmo. o ELE...enfim...a maioria dos homens que conheço, qualquer que seja a sua idade. (Lionel Fischer)

(A cena se passa num bar ou em qualquer lugar afeito a conversas e confissões. E acontece, digamos, no dia seguinte àquele em que, hipoteticamente, conheci uma mulher interessante)

ELE - E aí?

EU - Trocamos telefones.

ELE - Os aparelhos?

EU - Você está cada vez mais engraçado...

ELE - Desculpa. É que eu não resisto a uma piada.

EU - Maravilhosa, por sinal...

ELE - Continua.

EU - Já esqueci o que estava falando...

ELE - Deixa de bancar a criança ofendida. Você deu pra ela o número do seu celular e ela deu pra você o número do celular dela.

EU - Estou espantado com a tua perspicácia...

ELE - E aí? Qual foi o passo seguinte?

EU - Me deu vontade de ligar pra ela cinco minutos depois de nos despedirmos.

ELE - Mas você não fez isso...

EU - Não, não fiz.

ELE - Ainda bem.

EU - Por quê?

ELE - Porque seria ridículo.

EU - Ridículo? Por que, se foi esse o meu desejo?

ELE - Tem que dar um tempo.

EU - Quanto tempo?

ELE - No mínimo, três dias.

EU - Por que três dias e não dois ou quatro?

ELE - Três dias é um tempo legal. Se ela também se interessou por você, vai sentir sua falta.

EU - Ou vai achar que eu não vou ligar nunca.

ELE - É uma hipótese.

EU - É mais do que uma hipótese: é praticamente um risco idiota que eu estaria correndo, sem a menor necessidade.

ELE - Se você ligar antes de três dias, ela vai te considerar invasivo.

EU - Palavra linda, essa...invasivo...

ELE - Ela vai ter certeza de que você é do tipo que "gruda".

EU - Mas eu não sou, nem nunca fui assim!

ELE - Mas ela vai achar.

EU - Problema dela.

ELE - Problema teu. Vai por mim.

EU - Tudo bem: eu vou por você. Espero os tais três dias, me corroendo de saudades. Daí eu ligo e...

ELE - Fala qualquer coisa, menos que teve saudades dela, que gostaria muito de revê-la etc.

EU - Mas foi isso que eu senti!

ELE - Tudo bem, mas não precisa declarar.

EU - E falo o quê? Do tempo, da Bolsa de Valores, que o mico leão dourado está em vias de extinção...

ELE - Não precisa ser tão evasivo, né?

EU - Linda essa palavra: evasivo...

ELE - Você pode, por exemplo, perguntar o que ela vai fazer na próxima sexta-feira.

EU - E se estivermos na sexta? Pergunto o que ela vai fazer na seguinte?

ELE - Não, aí você pode perguntar se ela tem algum programa pro dia seguinte, sábado.

EU - E se ela já tiver?

ELE - Você se mantém impassível e deixa a entender que, sendo o Rio de Janeiro praticamente uma aldeia, mais cedo ou mais tarde vocês se esbarrarão por aí...meio que por acaso, percebe?

EU - Não, não percebo. Eu não quero ficar esperando que o acaso me contemple com suas bênçãos. Quero que ela saiba que adorei nosso primeiro encontro e que, se ela também sentiu o mesmo, seria ótimo que nos reencontrássemos. Há algum crime em ser claro?

ELE - Há. Mulher tem horror à clareza. Elas sempre priorizam o mistério. Em se tratando de sentimento, se você for logo muito objetivo com uma mulher, ela vai achar que você é um homem fácil, que está disponível e...

EU - Mas eu estou disponível!

ELE - Mas ela não pode ter essa certeza! Se tiver, some!

EU - Então que suma! Estaria, por sinal, me fazendo um grande favor, já que não seria quem eu pensei que era!

ELE - Você só esteve com ela uma vez. Não pode ter pensado nada de tão especial. Não deu tempo.

EU - Escuta aqui, amigo queridíssimo: eu posso perfeitamente ter um encontro de 15 minutos com uma mulher e ter absoluta certeza de que gostaria de escrever uma história com ela! 

ELE - Uma história de 15 minutos...

EU - Talvez, mas que pode ser mais intensa do que outra que dure 15 anos!?

ELE - Você é realmente uma cara do século dezenove...

EU - E você é realmente um cara do século vinte e um!

ELE - Você tá zangado comigo?

EU - Não, muito pelo contrário. Nossa conversa está sendo  ótima.

ELE - Fico aliviado.

EU - E está sendo ótima porque resolvi ligar agora mesmo pra ela!

ELE - E se cair na secretária?

EU - Deixo um recado.

ELE - Que tipo de recado?

EU - Que não posso mais viver cinco minutos sem ela!!! Que tive a certeza de que ela não é deste planeta, que provavelmente nasceu em Vênus, a primeira estrela!

ELE (Após gargalhar de forma quase obscena) - Você nunca vai ter essa mulher...

EU (Após expressiva pausa) - Vamos pedir a conta?

ELE - Mas ainda é cedo!?

EU - Não, é tardíssimo!

ELE - Você está com sono? Acorda cedo amanhã?

EU - Não...não estou com sono, nem acordo cedo amanhã. É que estou louco pra chegar em casa e escrever um poema de amor.

ELE - E vai mandar pra ela?

EU - Certamente.

ELE - Mensagem ou e-mail?

EU - Carta! Sou um homem do século dezenove...

ELE - Você sabe o endereço dela?

EU - Não. Mas descubro.

ELE - Ela vai contar pras amigas. Você vai virar motivo de piada...

EU - Que ótimo. É sempre bom quando conseguimos fazer com que as pessoas riam...

ELE - Há risos e risos...

EU - De fato. E há homens e homens...

ELE - Você não existe, cara...

EU - Graças a Deus!

____________________________

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Boa noite, professor


É este o título da peça que escrevi em parceria com minha filha mais jovem, Julia Stockler, que também divide comigo a direção do espetáculo, em cartaz no Tablado às sextas e sábados (21h) e domingos (20h). Aos que ainda não nos deram a honra de sua presença, aí segue a sinopse do texto, na esperança de que a mesma possa interessá-los. (Lionel Fischer)


A sala de uma casa isolada. Uma poltrona, garrafas com bebidas, algumas fotos de mulheres espalhadas e caixotes sugerindo uma possível mudança. Som de ondas batendo no mar. O mar parece agitado. Aqui reside Paulo, cinqüenta e poucos anos, psiquiatra brilhante, professor emérito. Mas será que Paulo seria apenas isso, um psiquiatra brilhante, um professor emérito?

Surge Verônica, vinte e poucos anos, cabelos presos de forma curiosa, óculos de grau. Ela é aluna de Paulo e pediu sua orientação para sua dissertação de mestrado, cujo tema é a possibilidade dos psicopatas sentirem alguma coisa por seus objetos de desejo, o que transcenderia a mera perversão. Mas será que Verônica está ali apenas por razões estritamente acadêmicas?

Com o desenrolar da trama, as aparências vão pouco a pouco cedendo espaço para uma realidade impregnada de brutalidade e poesia,  encantamento e ódio, e o espectador começa a perceber que Verônica e Paulo talvez estejam empreendendo um inadiável ajuste de contas. Mas o que teria acontecido? Talvez um crime, jamais elucidado. No entanto, a verdade precisa vir à tona e por isso, alternando-se nos papéis de algoz e vítima, Paulo e Verônica empreendem uma dilacerada jornada que se encerra com uma revelação aterradora.



CLAES OLDENBURG

Sou a favor de uma arte...


Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.

Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como os sapatos.

Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores.

Sou a favor da arte que solta pelo.

Sou a favor da arte que você senta em cima.

Sou a favor da arte sob as saias, e da arte de esmagar baratas.

Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.

Sou a favor da arte que ajuda velhinhas a atravessar as ruas.

Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.

Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno.

Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada.

Sou a favor da arte dos vermes dentro da maçã.

Sou a favor da arte do suor que surge entre as pernas cruzadas.

Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos.

Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada.

Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante.

Sou a favor da arte das aves mortas.

Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede.

Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens.

Sou a favor da arte dos cheiros das crianças.

Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.

Sou a favor da arte de cair dos bancos dos botecos.

Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis.

Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto.

Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite.

Sou a favor da arte de pneus de caminhões imensos e olhos roxos.

Sou a favor da arte de estalido das nozes com o vai e vem das baratas.

Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.

Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem.

Sou a favor da arte de objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola.

Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós.



_______________________________________________________________________