Teatro/CRÍTICA
"Alair"
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Belo encontro com um artista notável
Lionel Fischer
"Engenheiro de formação, filósofo, escritor, estudioso e crítico de arte, Alair Gomes (1921-1992) foi reconhecido como precursor da fotografia homoerótica no Brasil, conquistando a consagração internacional com seu trabalho, que reuniu mais de 170 mil negativos cujo tema central era a beleza do corpo masculino.
Ambientada no apartamento/estúdio de Alair em Ipanema, a montagem nos mostra o encontro do artista com um jovem, que ali está para uma sessão de fotos. Esse encontro deflagra um turbilhão de lembranças e pensamentos de Alair sobre amor, arte, beleza e morte".
Extraído (e levemente editado) do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima resume a trajetória artística de Alair Gomes e o contexto da peça, em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Gustavo Pinheiro responde pelo texto, escrito a partir dos diários de Alair Gomes, cabendo a direção do espetáculo a Cesar Augusto. No elenco, Edwin Luisi (Alair), Andre Rosa e Raphael Sander - os dois últimos dão vida a diferentes personagens da história do fotógrafo, e também recriam, ao longo do espetáculo, imagens icônicas de suas fotos.
Alternando conversas diretas com a plateia e a relação de Alair com seus jovens modelos, o texto possibilita um profundo mergulho tanto na personalidade do artista quanto na do homem. O artista viaja pelo mundo, encanta-se com as obras dos grandes mestres e tece sensíveis considerações sobre a arte. O homem, em sua paixão por outros homens, é também um artista, pois os encara não apenas como objetos de desejo puramente físico - embora este lado não deixe de estar presente -, mas também como possibilidade de entrar em estreito, íntimo e visceral contato com a beleza.
Com relação ao espetáculo, Cesar Augusto impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com as premissas essenciais do ótimo texto de Gustavo Pinheiro. Explorando a soturna iluminação de Tomás Ribas, quase sempre estruturada através de efeitos de claro/escuro (só eventualmente alterados por focos isolados), o encenador consegue materializar as principais características de uma personalidade ao mesmo tempo solar e angustiada, cabendo também ressaltar a expressividade advinda da relação entre os personagens e as projeções, não raro belíssimas. Além disso, cumpre ressaltar sua atuação junto ao elenco, e, em especial, Edwin Luisi.
Sem dúvida um dos melhores e mais premiados atores nacionais, aqui Edwin Luisi exibe alguns de seus mais notáveis predicados, tais como carisma, forte presença, domínio técnico e uma inteligência cênica que o impede de enveredar por caminhos já explorados com sucesso, assim evitando tornar-se uma espécie de parasita de suas próprias conquistas. Ver Edwin Luisi em cena é sempre um privilégio, e a ele agradeço por mais este belo encontro que tivemos. No tocante a Andre Rosa e Raphael Sander, ambos cumprem com eficiência e dignidade seus papéis, sem qualquer resquício de vulgaridade.
No complemento da ficha técnica, Mariana Villas Boas responde por expressiva cenografia, a mesma expressividade presente nos figurinos de Ticiana Passos, na trilha sonora de Rodrigo Marçal, no videografismo de Renato Krueger e no visagismo de Marcio Mello, cabendo também ressaltar a beleza das fotos projetadas de Alair Gomes.
ALAIR - Texto de Gustavo Pinheiro. Direção de Cesar Augusto. Com Edwin Luisi, Andre Rosa e Raphael Sander. Casa de Cultura Laura Alvim. Quarta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
sábado, 24 de junho de 2017
quarta-feira, 21 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Hamlet"
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Obra-prima em belíssima versão
Lionel Fischer
Em recente ocasião, no intervalo de uma aula, uma aluna me fez a seguinte pergunta: "Por que as obras dos compositores clássicos são tocadas na íntegra e no teatro, sobretudo quando se trata de Shakespeare, suas peças quase sempre são cortadas e adaptadas?". Como sabia que ela adora Beethoven, disse que a execução da mais longa de suas sinfonias, a Nona, dura em torno de 65 minutos.
E aproveitando que Shakespeare estava em questão, perguntei se ela achava que um espectador contemporâneo teria disposição para assistir uma versão integral de "Hamlet", que levaria em torno de cinco horas. Ela me pediu um tempo para pensar e eu o concedi - mas até hoje não obtive a tão almejada resposta...Seja como for, o que me parece relevante não é por que se encenar Shakespeare, mas como fazê-lo.
Por tratar-se do maior dramaturgo que já existiu, discutir a validade de sua obra configura imperdoável leviandade. Contudo, excetuando-se plateias constituídas por especialistas - e por especialistas entenda-se puristas que se consideram detentores do poder de decidir o que pode ou não ser feito com os clássicos -, a mim parece inquestionável que uma tragédia como "Hamlet", a mais longa dentre todas as escritas pelo fabuloso bardo, se encenada na íntegra dificilmente poderia ser plenamente usufruída por uma plateia normal contemporânea.
Assim sendo, julgo plenamente válido que a dita peça possa ser reduzida e adaptada, desde que tal redução e adaptação não desfigurem a essência do texto original. E estou plenamente convicto de que a presente versão de "Hamlet" se insere entre as mais brilhantes e dignas já levadas à cena no Rio de Janeiro.
Projeto da Armazém Companhia de Teatro, "Hamlet", em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, tem versão dramatúrgica assinada por Maurício Arruda de Mendonça, estando a direção a cargo de Paulo de Moraes. No elenco, Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius/Coveiro), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes/Guildenstern/Ator), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio/Rosencranz/Loba). A montagem também conta com a participação, em vídeo, de Adriano Garib, vivendo o Espectro.
Por tratar-se de obra por demais conhecida, não vejo a necessidade de resumir seu enredo. No entanto, acho procedentes as seguintes indagações, que fiz a mim mesmo: em que medida os pensamentos e reflexões de Hamlet, assim como as atitudes que toma, contribuem para alargar a consciência que possuo de mim mesmo e do mundo no qual estou inserido? Existiria a possibilidade de se estabelecer um paralelo entre uma Dinamarca inventada e um Brasil real que parece fadado a um trágico destino?
Quanto à última questão, acredito que sim, pois ao constatar que a corrupção moral, ética e política tomara conta do país, Hamlet afirma que "Há algo de podre no reino da Dinamarca". E quanto a nós? Seria nossa atual podridão menos abjeta e desesperadora? Acredito que não. A diferença é que, salvo engano de minha parte, nos falta um Hamlet que pense e, além de pensar, se disponha a agir.
Com relação à consciência, e como aqui não cabe explicitar a importância do personagem na minha vida, proponho uma brevíssima reflexão sobre o processo de conscientização de Hamlet, que talvez possa ser útil a alguém. Como ocorre em todas as tragédias, inclusive as gregas, aqui tudo parte de um desequilíbrio, de um acontecimento que detona um período catártico de transformação. Mas que transformação seria essa?
Mesmo que informado pelo fantasma de seu pai a respeito da tragédia que o vitimara, Hamlet poderia perfeitamente ter encarado tal informação como fruto de um delírio, e optado pela aceitação de um fato cuja natureza criminosa jamais poderia comprovar. No entanto, ele não se conforma e se propõe a agir, assim afirmando o seu EU. E aqui se inicia seu processo de transformação.
Mas como poderia obter êxito em sua empreitada? Tentando ser o mais verdadeiro possível? Isso de nada adiantaria, pois quase todos à sua volta mentem e ele não seria levado a sério. A verdade não imperava na corte de Elsinore. É então que Shakespeare lança mão de um estratagema genial: Hamlet se faz de louco, porque aos loucos é sempre facultado o direito de dizer o que pensam.
Entretanto, e ainda que a aparente loucura de Hamlet provoque alguns abalos, estes não se mostram totalmente eficientes e então Shakespeare propõe um novo e igualmente genial estratagema: Hamlet, atuando como ator e junto a outros intérpretes, encena diante da corte o assassinato de seu pai, agora sim gerando fortíssimo abalo tanto em sua mãe Gertrudes como no usurpador Claudius. E a partir daí as ações se sucedem, de forma avassaladora, conduzindo ao trágico desfecho.
Com relação ao espetáculo, este se estrutura a partir de ótima versão de Maurício Arruda de Mendonça, cuja adaptação, ainda que obviamente suprimindo cenas e personagens, mantém o que o texto possui de mais essencial. E, mesmo correndo o risco de estar enganado, tenho a impressão de que a montagem de Paulo de Moraes enfatiza não apenas a semelhança entre a Dinamarca da ficção e o Brasil atual, mas também o poder letal daqueles que conseguem superar a melancolia e o desespero e resolvem agir. E tal superação, na presente montagem, transcende o pessoal e se afigura como um gesto político.
Valendo-se, como de hábito, de uma dinâmica cênica em que imperam soluções criativas, imprevistas e da mais alta expressividade, além disso o encenador conseguiu extrair uma das mais brilhantes performances de Patrícia Selonk. Na pele de Hamlet, a atriz potencializa ao máximo toda a fragilidade e potência do personagem, tornando verossímeis tanto a melancolia e inércia do personagem no início quanto a fúria devastadora que o domina a partir do momento em que decide efetivamente agir. E no que se refere ao célebre monólogo "Ser ou não ser", proferido em voz baixa e impregnado de uma dor que chega a ser exasperante, bastaria este breve e sublime momento para ratificar o que todos já sabem: Patrícia Selonk é uma das melhores intérpretes do país.
No que concerne ao restante do elenco, todos exibem atuações à altura dos personagens que interpretam, cabendo salientar sua visceral capacidade de entrega e a ótima contracena que materializam, o que só se torna possível quando existe mútua confiança, sólida parceria e uma crença absoluta no projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo, aí incluindo-se, evidentemente, a bela participação em vídeo de Adriano Garib.
Na equipe técnica, considero preciosas e irretocáveis as contribuições de Carla Berri e Paulo de Moraes (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), João Marcelino e Carol Lobato (figurinos), Ricco Viana (música), Patrícia Selonk (preparação corporal), Toni Rodrigues (coreografias) e Rodrigo Fontes (preparador de esgrima).
HAMLET - Texto de Shakespeare. Versão dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Marcos Martins, Lisa Eiras, Jopa Moraes, Isabel Pacheco e Luiz Felipe Leprevost. Espetáculo da Armazém Companhia de Teatro. Quarta a domingo, às 19h. Teatro I do CCBB.
"Hamlet"
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Obra-prima em belíssima versão
Lionel Fischer
Em recente ocasião, no intervalo de uma aula, uma aluna me fez a seguinte pergunta: "Por que as obras dos compositores clássicos são tocadas na íntegra e no teatro, sobretudo quando se trata de Shakespeare, suas peças quase sempre são cortadas e adaptadas?". Como sabia que ela adora Beethoven, disse que a execução da mais longa de suas sinfonias, a Nona, dura em torno de 65 minutos.
E aproveitando que Shakespeare estava em questão, perguntei se ela achava que um espectador contemporâneo teria disposição para assistir uma versão integral de "Hamlet", que levaria em torno de cinco horas. Ela me pediu um tempo para pensar e eu o concedi - mas até hoje não obtive a tão almejada resposta...Seja como for, o que me parece relevante não é por que se encenar Shakespeare, mas como fazê-lo.
Por tratar-se do maior dramaturgo que já existiu, discutir a validade de sua obra configura imperdoável leviandade. Contudo, excetuando-se plateias constituídas por especialistas - e por especialistas entenda-se puristas que se consideram detentores do poder de decidir o que pode ou não ser feito com os clássicos -, a mim parece inquestionável que uma tragédia como "Hamlet", a mais longa dentre todas as escritas pelo fabuloso bardo, se encenada na íntegra dificilmente poderia ser plenamente usufruída por uma plateia normal contemporânea.
Assim sendo, julgo plenamente válido que a dita peça possa ser reduzida e adaptada, desde que tal redução e adaptação não desfigurem a essência do texto original. E estou plenamente convicto de que a presente versão de "Hamlet" se insere entre as mais brilhantes e dignas já levadas à cena no Rio de Janeiro.
Projeto da Armazém Companhia de Teatro, "Hamlet", em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, tem versão dramatúrgica assinada por Maurício Arruda de Mendonça, estando a direção a cargo de Paulo de Moraes. No elenco, Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius/Coveiro), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes/Guildenstern/Ator), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio/Rosencranz/Loba). A montagem também conta com a participação, em vídeo, de Adriano Garib, vivendo o Espectro.
Por tratar-se de obra por demais conhecida, não vejo a necessidade de resumir seu enredo. No entanto, acho procedentes as seguintes indagações, que fiz a mim mesmo: em que medida os pensamentos e reflexões de Hamlet, assim como as atitudes que toma, contribuem para alargar a consciência que possuo de mim mesmo e do mundo no qual estou inserido? Existiria a possibilidade de se estabelecer um paralelo entre uma Dinamarca inventada e um Brasil real que parece fadado a um trágico destino?
Quanto à última questão, acredito que sim, pois ao constatar que a corrupção moral, ética e política tomara conta do país, Hamlet afirma que "Há algo de podre no reino da Dinamarca". E quanto a nós? Seria nossa atual podridão menos abjeta e desesperadora? Acredito que não. A diferença é que, salvo engano de minha parte, nos falta um Hamlet que pense e, além de pensar, se disponha a agir.
Com relação à consciência, e como aqui não cabe explicitar a importância do personagem na minha vida, proponho uma brevíssima reflexão sobre o processo de conscientização de Hamlet, que talvez possa ser útil a alguém. Como ocorre em todas as tragédias, inclusive as gregas, aqui tudo parte de um desequilíbrio, de um acontecimento que detona um período catártico de transformação. Mas que transformação seria essa?
Mesmo que informado pelo fantasma de seu pai a respeito da tragédia que o vitimara, Hamlet poderia perfeitamente ter encarado tal informação como fruto de um delírio, e optado pela aceitação de um fato cuja natureza criminosa jamais poderia comprovar. No entanto, ele não se conforma e se propõe a agir, assim afirmando o seu EU. E aqui se inicia seu processo de transformação.
Mas como poderia obter êxito em sua empreitada? Tentando ser o mais verdadeiro possível? Isso de nada adiantaria, pois quase todos à sua volta mentem e ele não seria levado a sério. A verdade não imperava na corte de Elsinore. É então que Shakespeare lança mão de um estratagema genial: Hamlet se faz de louco, porque aos loucos é sempre facultado o direito de dizer o que pensam.
Entretanto, e ainda que a aparente loucura de Hamlet provoque alguns abalos, estes não se mostram totalmente eficientes e então Shakespeare propõe um novo e igualmente genial estratagema: Hamlet, atuando como ator e junto a outros intérpretes, encena diante da corte o assassinato de seu pai, agora sim gerando fortíssimo abalo tanto em sua mãe Gertrudes como no usurpador Claudius. E a partir daí as ações se sucedem, de forma avassaladora, conduzindo ao trágico desfecho.
Com relação ao espetáculo, este se estrutura a partir de ótima versão de Maurício Arruda de Mendonça, cuja adaptação, ainda que obviamente suprimindo cenas e personagens, mantém o que o texto possui de mais essencial. E, mesmo correndo o risco de estar enganado, tenho a impressão de que a montagem de Paulo de Moraes enfatiza não apenas a semelhança entre a Dinamarca da ficção e o Brasil atual, mas também o poder letal daqueles que conseguem superar a melancolia e o desespero e resolvem agir. E tal superação, na presente montagem, transcende o pessoal e se afigura como um gesto político.
Valendo-se, como de hábito, de uma dinâmica cênica em que imperam soluções criativas, imprevistas e da mais alta expressividade, além disso o encenador conseguiu extrair uma das mais brilhantes performances de Patrícia Selonk. Na pele de Hamlet, a atriz potencializa ao máximo toda a fragilidade e potência do personagem, tornando verossímeis tanto a melancolia e inércia do personagem no início quanto a fúria devastadora que o domina a partir do momento em que decide efetivamente agir. E no que se refere ao célebre monólogo "Ser ou não ser", proferido em voz baixa e impregnado de uma dor que chega a ser exasperante, bastaria este breve e sublime momento para ratificar o que todos já sabem: Patrícia Selonk é uma das melhores intérpretes do país.
No que concerne ao restante do elenco, todos exibem atuações à altura dos personagens que interpretam, cabendo salientar sua visceral capacidade de entrega e a ótima contracena que materializam, o que só se torna possível quando existe mútua confiança, sólida parceria e uma crença absoluta no projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo, aí incluindo-se, evidentemente, a bela participação em vídeo de Adriano Garib.
Na equipe técnica, considero preciosas e irretocáveis as contribuições de Carla Berri e Paulo de Moraes (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), João Marcelino e Carol Lobato (figurinos), Ricco Viana (música), Patrícia Selonk (preparação corporal), Toni Rodrigues (coreografias) e Rodrigo Fontes (preparador de esgrima).
HAMLET - Texto de Shakespeare. Versão dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Marcos Martins, Lisa Eiras, Jopa Moraes, Isabel Pacheco e Luiz Felipe Leprevost. Espetáculo da Armazém Companhia de Teatro. Quarta a domingo, às 19h. Teatro I do CCBB.
Caríssimos,
O mês de junho no Fórum será muito especial. Apresentaremos o imperdível filme: O APARTAMENTO, do diretor e roteirista iraniano ASGHAR FARHADI, premiado em diversos festivais internacionais e com o segundo Oscar de sua brilhante carreira.
No dia 30, última sexta-feira do mês, às 18 h, na Sala Vera Janacópulos da UNIRIO, analisaremos e discutiremos essa obra da arte cinematográfica, tanto pela temática bem construída e interpretada, como pelo uso de metáforas que envolvem as questões instigantes das relações humanas, com o contraponto preciso com a montagem da peça: A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller, em um arco emocional e cultural que recobre toda a trama em seus múltiplos aspectos.
Como sempre, aguardamos todos vocês para mais um debate e contamos com a divulgação aos amigos e aos interessados no viés cultural e psicanalítico,
Um abraço de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva.
SERVIÇO:
DATA: 30 DE JUNHO DE 2017.
HORÁRIO: FILME: 18h; ANÁLISE E DEBATE: 20 h às 22 h.
LOCAL: SALA VERA JANACÓPULOS – UNIRIO
ENDEREÇO: AV. PASTEUR, 296.
ANÁLISE CULTURAL: PROF. DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO
ANÁLISE PSICANALÍTICA: DR. NEILTON SILVA
ENTRADA FRANCA - INFORMAÇÕES: forumpsicinema@gmail.com
NOTA: Quem se interessar em adquirir o livro: Fórum de Psicanálise e Cinema: 20 filmes analisados, de autoria de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva, ele se encontra à venda nos dias do FÓRUM.
HISTÓRICO: O FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA FOI CRIADO EM 1997, COMO UM PROJETO CIENTÍFICO DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA RIO 3, PELO ENTÃO PRESIDENTE, DR. WALDEMAR ZUSMAN, E PELO DIRETOR DO INSTITUTO, DR. NEILTON DIAS DA SILVA. DESDE 2004 PASSOU A CONTAR COM A PARTICIPAÇÃO DA MUSEÓLOGA E PROFESSORA DA UNIRIO, DRA ANA LÚCIA DE CASTRO, RESPONSÁVEL PELAS ANÁLISES CULTURAIS DOS FILMES. EM 2016, A SPRJ, CELEBROU OS 10 ANOS DO FÓRUM E A PARCERIA COM A UNIRIO PARA SEDIAR O PROJETO MENSALMENTE, SEMPRE MUITO CONCORRIDO.
segunda-feira, 19 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"FAUNA"
..............................................................................
Pertinentes reflexões sobre a arte e a vida
Lionel Fischer
"O texto conta a história de um cineasta (José Luís) e de uma atriz (Julia) que vão ao campo pesquisar o mito de Fauna, uma espécie de amazona, culta e salvagem, para fazer um filme de ficção sobre ela. Lá, recebem a ajuda de Maria Luísa e Santos, filhos de Fauna, que se encarregam de apresentá-los à figura da mãe. Os quatro personagens ensaiam para o filme e discutem a importância, ou não, da representação da realidade. À medida que o tempo passa, os personagens vão se revelando, como se a exposição à ficção, em vez de protegê-los, os expusesse ainda mais. O texto também propõe uma reflexão sobre a relação e as fronteiras entre arte e vida".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Fauna", da dramaturga argentina Romina Paula. Em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, a montagem tem direção assinada por Erika Mader e Marcelo Grabowsky, estando o elenco formado por Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard.
Assim que se inicia a ação, já alguns conflitos são esboçados. A atriz lê um texto que deseja incluir no projeto, mas é contestada pelo diretor, sob a argumentação de que não se encaixa e além disso soa falso em razão de como foi lido. Então, Maria Luísa lê o mesmo texto de forma extremamente convincente, além de ministrar a Julia uma breve lição relativa às deficiências por ela evidenciadas em sua leitura - seria Maria Luísa uma atriz ou alguém de vasta cultura e afeita a ler textos em voz alta? Isso jamais fica claro.
Em seguida, somos informados de que Santos é uma espécie de ermitão, que adora viver no mato. Finalmente, fechando as primeiras informações, ficamos sabendo que José Luís é casado, o que não o impede de ser amante de Julia. E logo que ficam sozinhos em cena, ele tenta beijá-la, mas ela propõe que se abstenham da relação amorosa enquanto estiverem envolvidos com o projeto. Ele tenta demovê-la, mas ela se mantém irredutível, alegando que precisa concentrar-se totalmente no trabalho.
A partir daí, várias informações sobre Fauna vão se acumulando, dentre elas a de que costumava vestir-se de homem para frequentar ambientes masculinos e de que fora abandonada pelo marido. Ao mesmo tempo, cenas do filme começam a ser ensaiadas, inclusive com a participação de Santos, que, exceção feita a um breve momento em que profere o texto de forma caricata, em outras tantas passagens exibe firmeza e segurança dignas de um profissional, o que não deixa de provocar alguma estranheza.
E a peça avança, os ensaios começam a ser filmados (ao menos foi essa a impressão que eu tive) e as discussões se exacerbam, inclusive as que, como mencionado no parágrafo inicial, têm como foco a importância ou não de se representar a realidade, e as fronteiras entre a arte e a vida. Até este ponto, as pequenas ressalvas que fiz aos predicados de Maria Luísa e Santos podem ser relegadas a um plano secundário. No entanto, em nenhum momento me pareceram críveis algumas transformações por que passam os personagens.
Embora saiba perfeitamente que um profundo mergulho no universo ficcional pode acarretar surpreendentes revelações, não vi nenhum sentido em, lá pelas tantas, Julia dizer a Maria Luísa que se sente atraída por ela e que imaginava que tal atração era correspondida - nada, até esse momento, sequer sugeria uma tal possibilidade. E o mesmo ocorre com Santos, que em dado momento diz a José Luís que está apaixonado por ele - inicialmente o cineasta se mostra surpreso, mas mais adiante troca ardente beijo com Santos.
Qual terá sido o objetivo da autora? Explicitar a até então insuspeitada homossexualidade de José Luís e Julia? E se assim foi, com que objetivo? Ou seja: em que medida tal revelação, ainda que me pareça falsa, poderia contribuir para o aprofundamento das questões em causa? Sinceramente, não sei. Em contrapartida, acho perfeitamente válidas algumas reflexões empreendidas pelos personagens, sobretudo as que priorizam as relações entre arte e vida, e a que me pareceu a mais instigante: a suposta impossibilidade de se apropriar de uma vida - no caso, a de Fauna - com a pretensão de poder recriá-la através da ficção.
Com relação ao espetáculo, em seu início a direção evidencia uma certa displicência, como se uma maior expressividade não fosse ali relevante - terá sido proposital? No entanto, logo adiante a ausente expressividade inicial passa a existir, e a dinâmica cênica exibe belas e vigorosas passagens. E no tocante ao elenco, todos os intérpretes apresentam atuações irretocáveis, cabendo ressaltar a forma visceral com que se entregam aos personagens e a ótima contracena que materializam, só passível de acontecer quando os atores confiam uns nos outros, se respeitam e acreditam na validade da empreitada em que estão inseridos.
No tocante à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as excelentes contribuições de Hugo Mader (tradução), Renato Machado (iluminação), Fernando Mello da Costa (cenografia), Antônio Guedes (figurinos), Toni Rodrigues (direção de movimento) e Marcello H. (direção musical).
FAUNA - Texto de Romina Paula. Direção de Erika Mader e Marcelo Grabowsky. Com Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard. Centro Cultural da Justiça federal. Quarta a domingo, 19h.
"FAUNA"
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Pertinentes reflexões sobre a arte e a vida
Lionel Fischer
"O texto conta a história de um cineasta (José Luís) e de uma atriz (Julia) que vão ao campo pesquisar o mito de Fauna, uma espécie de amazona, culta e salvagem, para fazer um filme de ficção sobre ela. Lá, recebem a ajuda de Maria Luísa e Santos, filhos de Fauna, que se encarregam de apresentá-los à figura da mãe. Os quatro personagens ensaiam para o filme e discutem a importância, ou não, da representação da realidade. À medida que o tempo passa, os personagens vão se revelando, como se a exposição à ficção, em vez de protegê-los, os expusesse ainda mais. O texto também propõe uma reflexão sobre a relação e as fronteiras entre arte e vida".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Fauna", da dramaturga argentina Romina Paula. Em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, a montagem tem direção assinada por Erika Mader e Marcelo Grabowsky, estando o elenco formado por Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard.
Assim que se inicia a ação, já alguns conflitos são esboçados. A atriz lê um texto que deseja incluir no projeto, mas é contestada pelo diretor, sob a argumentação de que não se encaixa e além disso soa falso em razão de como foi lido. Então, Maria Luísa lê o mesmo texto de forma extremamente convincente, além de ministrar a Julia uma breve lição relativa às deficiências por ela evidenciadas em sua leitura - seria Maria Luísa uma atriz ou alguém de vasta cultura e afeita a ler textos em voz alta? Isso jamais fica claro.
Em seguida, somos informados de que Santos é uma espécie de ermitão, que adora viver no mato. Finalmente, fechando as primeiras informações, ficamos sabendo que José Luís é casado, o que não o impede de ser amante de Julia. E logo que ficam sozinhos em cena, ele tenta beijá-la, mas ela propõe que se abstenham da relação amorosa enquanto estiverem envolvidos com o projeto. Ele tenta demovê-la, mas ela se mantém irredutível, alegando que precisa concentrar-se totalmente no trabalho.
A partir daí, várias informações sobre Fauna vão se acumulando, dentre elas a de que costumava vestir-se de homem para frequentar ambientes masculinos e de que fora abandonada pelo marido. Ao mesmo tempo, cenas do filme começam a ser ensaiadas, inclusive com a participação de Santos, que, exceção feita a um breve momento em que profere o texto de forma caricata, em outras tantas passagens exibe firmeza e segurança dignas de um profissional, o que não deixa de provocar alguma estranheza.
E a peça avança, os ensaios começam a ser filmados (ao menos foi essa a impressão que eu tive) e as discussões se exacerbam, inclusive as que, como mencionado no parágrafo inicial, têm como foco a importância ou não de se representar a realidade, e as fronteiras entre a arte e a vida. Até este ponto, as pequenas ressalvas que fiz aos predicados de Maria Luísa e Santos podem ser relegadas a um plano secundário. No entanto, em nenhum momento me pareceram críveis algumas transformações por que passam os personagens.
Embora saiba perfeitamente que um profundo mergulho no universo ficcional pode acarretar surpreendentes revelações, não vi nenhum sentido em, lá pelas tantas, Julia dizer a Maria Luísa que se sente atraída por ela e que imaginava que tal atração era correspondida - nada, até esse momento, sequer sugeria uma tal possibilidade. E o mesmo ocorre com Santos, que em dado momento diz a José Luís que está apaixonado por ele - inicialmente o cineasta se mostra surpreso, mas mais adiante troca ardente beijo com Santos.
Qual terá sido o objetivo da autora? Explicitar a até então insuspeitada homossexualidade de José Luís e Julia? E se assim foi, com que objetivo? Ou seja: em que medida tal revelação, ainda que me pareça falsa, poderia contribuir para o aprofundamento das questões em causa? Sinceramente, não sei. Em contrapartida, acho perfeitamente válidas algumas reflexões empreendidas pelos personagens, sobretudo as que priorizam as relações entre arte e vida, e a que me pareceu a mais instigante: a suposta impossibilidade de se apropriar de uma vida - no caso, a de Fauna - com a pretensão de poder recriá-la através da ficção.
Com relação ao espetáculo, em seu início a direção evidencia uma certa displicência, como se uma maior expressividade não fosse ali relevante - terá sido proposital? No entanto, logo adiante a ausente expressividade inicial passa a existir, e a dinâmica cênica exibe belas e vigorosas passagens. E no tocante ao elenco, todos os intérpretes apresentam atuações irretocáveis, cabendo ressaltar a forma visceral com que se entregam aos personagens e a ótima contracena que materializam, só passível de acontecer quando os atores confiam uns nos outros, se respeitam e acreditam na validade da empreitada em que estão inseridos.
No tocante à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as excelentes contribuições de Hugo Mader (tradução), Renato Machado (iluminação), Fernando Mello da Costa (cenografia), Antônio Guedes (figurinos), Toni Rodrigues (direção de movimento) e Marcello H. (direção musical).
FAUNA - Texto de Romina Paula. Direção de Erika Mader e Marcelo Grabowsky. Com Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard. Centro Cultural da Justiça federal. Quarta a domingo, 19h.
sexta-feira, 16 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Programa Pentesiléia - Treinamento para Batalha Final"
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Instigante versão de um mito
Lionel Fischer
"Pentesiléia se prepara para um hipotético encontro com o herói Aquiles. Ainda que abandonada em um asilo/hospício/prisão/convento, a rainha guerreira surge plena de potência e de sabedoria e em seu delírio lúcido Aquiles não é mais que a projeção de uma luta interior, dilacerante, entre o masculino e o feminino, no qual o plano da realidade da obra muitas vezes se confunde com o da narrativa mítica".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Programa Pentesiléia - Treinamento para Batalha Final", da dramaturga italiana Lina Prosa. Mais recente produção da Cia Teatro Balagan, a montagem, em cartaz no Sesc Copacabana (Mezanino) leva a assinatura de Maria Thaís, estando o elenco formado por Maria Esmeralda Forte (Pentesiléia) e Antonio Salvador (Aquiles).
Existem incontáveis versões para a figura mitológica de Pentesiléia. Vamos a uma das mais conhecidas. As Amazonas eram filhas de Ares, o cruento deus da guerra, e da ninfa Harmonia. Fundaram, sob a inspiração do pai e da deusa Ártemis, um reino belicoso, composto quase que exclusivamente por mulheres. Para perpetuar e ampliar a comunidade, mantinham relações apenas com estranhos e forasteiros, que em seguida eram mortos ou convertidos em servos. E os filhos homens que nasciam eram castrados, mutilados ou cegados, e a eles eram confiados apenas serviços inferiores.
Pentesiléia era a Rainha das Amazonas e consta que, após matar por engano sua irmã Hipólita durante uma caçada, viu-se tomada por tamanho desespero que pensou em se suicidar. Mas como uma guerreira só deveria morrer em combate, aliou-se aos troianos na Guerra de Tróia contra os gregos, vindo a ser morta por Aquiles.
A partir daqui existem muitas variantes, sendo uma delas a de que Aquiles imaginou ter matado um guerreiro de Tróia. Mas ao tirar seu elmo, e extasiado com a beleza de Pentesiléia, a possuiu depois de morta. Há também suposições de que, após consumar seu ato, desmembrou o corpo da guerreira, atirando suas partes em todas as direções - essa suposição consta do presente texto. Mas há os que sustentam que ambos teriam tido, não se sabe como, pois imperava a guerra, uma extasiante noite de amor - isso também está presente no texto de Lina Prosa.
Enfim...diante do exposto, opto por me concentrar nos objetivos expostos no parágrafo inicial, acrescentando um outro trecho incluído no release: "O texto de Lina Prosa é também a defesa do exercício radical, do trânsito necessário ao humano de reger suas ações - ora pelos paroxismos masculinos, ora pelos paroxismos femininos, demonstrando a igualdade paralela entre as forças do matriarcado e do patriarcado, que se contrapõem e se destroem mutuamente".
Em face dos trechos por mim selecionados, e objetivando compreender os objetivos da autora - e também levando em conta o provável desconhecimento da maioria dos espectadores no que concerne à Mitologia Grega -, faço a partir de agora um exercício de simplificação. Para mim não ficou claro que Pentesiléia está em um asilo/hospício/prisão/convento, mas isso não me parece essencial.
Ou seja: o que importa é que estamos diante de uma mulher que fala de si mesma, tece considerações sobre o feminino e o masculino, evoca seu passado, seus combates e sua paixão por Aquiles. E quando este entra em cena, ocorre um processo semelhante, com especial destaque para a passagem em que ele explicita sua relação com Pentesiléia e as barbaridades que perpetrou com seu cadáver.
Não há diálogo entre os personagens, posto que jamais se encontram em cena. Mas as reflexões que fazem, ainda que para serem plenamente usufruídas demandem, como já foi dito, algum conhecimento a respeito da Mitologia Grega, por outro não deixam de ser pertinentes e atuais, e certamente por isso tudo que é dito é acompanhado com grande interesse pela plateia.
Com relação ao espetáculo, Maria Thaís impõe à cena uma atmosfera austera e sóbria, provavelmente objetivando priorizar a tragicidade inerente ao texto. E cumpre salientar sua criatividade na manipulação de uma espécie de cadeira/trono (excelente criação do cenógrafo Márcio Medina) que, ao longo da montagem, passa por constantes e imprevistas mutações.
No que concerne ao elenco, Maria Esmeralda Fortes, do alto de seus 80 anos de vida e 60 de carreira, evidencia o mesmo vigor e inteligência cênica que sempre a caracterizaram, afora sua visceral capacidade de entrega. E, não custa nada acrescentar, está mais linda do que nunca. A mesma eficiência se faz presente na performance de Antonio Salvador, possuidor de ótima voz, excelente trabalho corporal e forte presença.
No complemento da equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de Laymert Garcia dos Santos (tradução), Márcio Medina (figurinos), Aline Santini (iluminação) e Dr. Morris (direção musical).
PROGRAMA PENTESILÉIA - TREINAMENTO PARA BATALHA FINAL - Texto de Lina Prosa. Direção de Maria Thaís. Com Maria esmeralda Barros e Antonio Salvador. Sesc Copacabana (Mezanino). Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
"Programa Pentesiléia - Treinamento para Batalha Final"
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Instigante versão de um mito
Lionel Fischer
"Pentesiléia se prepara para um hipotético encontro com o herói Aquiles. Ainda que abandonada em um asilo/hospício/prisão/convento, a rainha guerreira surge plena de potência e de sabedoria e em seu delírio lúcido Aquiles não é mais que a projeção de uma luta interior, dilacerante, entre o masculino e o feminino, no qual o plano da realidade da obra muitas vezes se confunde com o da narrativa mítica".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Programa Pentesiléia - Treinamento para Batalha Final", da dramaturga italiana Lina Prosa. Mais recente produção da Cia Teatro Balagan, a montagem, em cartaz no Sesc Copacabana (Mezanino) leva a assinatura de Maria Thaís, estando o elenco formado por Maria Esmeralda Forte (Pentesiléia) e Antonio Salvador (Aquiles).
Existem incontáveis versões para a figura mitológica de Pentesiléia. Vamos a uma das mais conhecidas. As Amazonas eram filhas de Ares, o cruento deus da guerra, e da ninfa Harmonia. Fundaram, sob a inspiração do pai e da deusa Ártemis, um reino belicoso, composto quase que exclusivamente por mulheres. Para perpetuar e ampliar a comunidade, mantinham relações apenas com estranhos e forasteiros, que em seguida eram mortos ou convertidos em servos. E os filhos homens que nasciam eram castrados, mutilados ou cegados, e a eles eram confiados apenas serviços inferiores.
Pentesiléia era a Rainha das Amazonas e consta que, após matar por engano sua irmã Hipólita durante uma caçada, viu-se tomada por tamanho desespero que pensou em se suicidar. Mas como uma guerreira só deveria morrer em combate, aliou-se aos troianos na Guerra de Tróia contra os gregos, vindo a ser morta por Aquiles.
A partir daqui existem muitas variantes, sendo uma delas a de que Aquiles imaginou ter matado um guerreiro de Tróia. Mas ao tirar seu elmo, e extasiado com a beleza de Pentesiléia, a possuiu depois de morta. Há também suposições de que, após consumar seu ato, desmembrou o corpo da guerreira, atirando suas partes em todas as direções - essa suposição consta do presente texto. Mas há os que sustentam que ambos teriam tido, não se sabe como, pois imperava a guerra, uma extasiante noite de amor - isso também está presente no texto de Lina Prosa.
Enfim...diante do exposto, opto por me concentrar nos objetivos expostos no parágrafo inicial, acrescentando um outro trecho incluído no release: "O texto de Lina Prosa é também a defesa do exercício radical, do trânsito necessário ao humano de reger suas ações - ora pelos paroxismos masculinos, ora pelos paroxismos femininos, demonstrando a igualdade paralela entre as forças do matriarcado e do patriarcado, que se contrapõem e se destroem mutuamente".
Em face dos trechos por mim selecionados, e objetivando compreender os objetivos da autora - e também levando em conta o provável desconhecimento da maioria dos espectadores no que concerne à Mitologia Grega -, faço a partir de agora um exercício de simplificação. Para mim não ficou claro que Pentesiléia está em um asilo/hospício/prisão/convento, mas isso não me parece essencial.
Ou seja: o que importa é que estamos diante de uma mulher que fala de si mesma, tece considerações sobre o feminino e o masculino, evoca seu passado, seus combates e sua paixão por Aquiles. E quando este entra em cena, ocorre um processo semelhante, com especial destaque para a passagem em que ele explicita sua relação com Pentesiléia e as barbaridades que perpetrou com seu cadáver.
Não há diálogo entre os personagens, posto que jamais se encontram em cena. Mas as reflexões que fazem, ainda que para serem plenamente usufruídas demandem, como já foi dito, algum conhecimento a respeito da Mitologia Grega, por outro não deixam de ser pertinentes e atuais, e certamente por isso tudo que é dito é acompanhado com grande interesse pela plateia.
Com relação ao espetáculo, Maria Thaís impõe à cena uma atmosfera austera e sóbria, provavelmente objetivando priorizar a tragicidade inerente ao texto. E cumpre salientar sua criatividade na manipulação de uma espécie de cadeira/trono (excelente criação do cenógrafo Márcio Medina) que, ao longo da montagem, passa por constantes e imprevistas mutações.
No que concerne ao elenco, Maria Esmeralda Fortes, do alto de seus 80 anos de vida e 60 de carreira, evidencia o mesmo vigor e inteligência cênica que sempre a caracterizaram, afora sua visceral capacidade de entrega. E, não custa nada acrescentar, está mais linda do que nunca. A mesma eficiência se faz presente na performance de Antonio Salvador, possuidor de ótima voz, excelente trabalho corporal e forte presença.
No complemento da equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de Laymert Garcia dos Santos (tradução), Márcio Medina (figurinos), Aline Santini (iluminação) e Dr. Morris (direção musical).
PROGRAMA PENTESILÉIA - TREINAMENTO PARA BATALHA FINAL - Texto de Lina Prosa. Direção de Maria Thaís. Com Maria esmeralda Barros e Antonio Salvador. Sesc Copacabana (Mezanino). Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
terça-feira, 13 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Rita Formiga"
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Delicioso encontro com uma mulher inesquecível
Lionel Fischer
Domingos Oliveira morava em um apartamento no Bairro Peixoto. E todos os dias, invariavelmente, a atriz Maria Gladys o invadia e, das 16 às 18h, ocupava o telefone, justamente no horário em que o jovem autor mais gostava de escrever. No entanto, como Domingos sempre foi um gentleman, não vedava à amiga o acesso ao seu telefone. Mas os telefonemas, que inicialmente o atrapalhavam, aos poucos foram gerando interesse, até que um dia Domingos pediu permissão a Maria para gravar suas conversas. E então surgiu a peça "Rita Formiga".
Já encenado, o texto ganha agora uma nova versão, em comemoração aos 80 anos de Domingos Oliveira, completados em 2016. Em cartaz no Teatro Poeirinha, a montagem - que conta com vídeos em que Domingos aparece e com sua voz em off - leva a assinatura de Fernando Philbert, cabendo a interpretação do monólogo a Priscila Steinman.
Para os que não tiveram o privilégio de viver no Rio de Janeiro nos anos 70, também incluindo o final dos 60, cumpre relembrar que foi uma época gloriosa. Quase que simultaneamente aportaram a mini-saia, os Beatles e os Roling Stones, a contracultura através do movimento hippie, o LSD e algumas outras drogas que, em nenhuma hipótese, geravam qualquer tipo de violência.
E por aqui surgiram poetas, músicos, cineastas e dramaturgos de primeira grandeza, e o teatro conheceu encenadores que haveriam de promover uma verdadeira revolução cênica, tendo José Celso Martinez Corrêa como um de seus expoentes. Enfim...em meio à bárbara ditadura militar, muitos acreditavam que a paz, o amor e a fraternidade haveriam de prevalecer. E que só a Arte poderia nos livrar de todas as mazelas.
É dentro deste contexto que se insere Rita Formiga. E por que essa mulher permanece tão atual? Porque queria ser independente, ganhar seu próprio dinheiro através de seu trabalho como atriz; porque não levava desaforo para casa; porque transava com quem lhe desse na telha; porque priorizava a sinceridade absoluta e abominava a hipocrisia. E, finalmente, porque acreditava no Amor e na Arte. Tais predicados me parecem suficientes para considerar Maria Gladys um exemplo de mulher, posto que, ainda que passando por múltiplos percalços, conseguiu manter-se totalmente íntegra, honesta consigo mesma e com os outros.
Na presente versão de "Rita Formiga", tudo começa com um engraçadíssimo vídeo em que Domingos Oliveira faz preciosas digressões sobre a burrice. E por que tais digressões estão aqui inseridas? Não sei exatamente por quê, mas é possível que possam ser encaradas como um alerta ao momento que vivemos, pois não resta a menor dúvida de que os burros e seus irmãos-gêmeos, os medíocres, tomaram o poder de assalto e só o império da inteligência pode nos salvar - ao contrário da burrice, como sustenta Domingos, a inteligência é generosa, amorosa e dispensa a inveja, que em minha opinião é a mais grave e letal dentre todas as moléstias infecto-contagiosas.
Texto delicioso, "Rita Formiga" recebeu ótima versão cênica de Fernando Philbert, que, abstendo-se de inócuas firulas formais, priorizou o que de fato importa: a performance da atriz - minha única ressalva fica por conta de eventuais deficiências de algumas projeções. Quanto a Priscila Steinman, trata-se de uma atriz de grande e diversificado potencial expressivo.
Na série "Questão de Família" (GNT), cuja terceira temporada acaba de se encerrar, Priscila vivia uma jovem desajustada em face de um passado aterrador e na maior parte de suas cenas prevalecia a dramaticidade - aliás, gostaria de registrar que tive o privilégio de contracenar com ela vivendo o médico que talvez pudesse curá-da das angústias que a afligiam, e pude sentir a força de sua presença e sua notável capacidade de entrega.
No entanto, em "Rita Formiga" dá-se o oposto: ainda que o texto contenha algumas passagens dolorosas, é o humor que predomina. Mas não um humor raso e banal, mas fruto de pertinentes observações sobre questões fundamentais inerentes ao ato de existir. E Priscila Steinman consegue extrair todo o potencial humorístico do texto, cabendo ainda ressaltar seu ótimo trabalho corporal e o propositadamente exagerado sotaque carioca. Em resumo: uma excelente performance de uma jovem atriz que reúne todas as condições para obter sucesso absoluto em sua trajetória artística.
Na equipe técnica, Natália Lana assina uma cenografia correta e belíssimos figurinos. A mesma eficiência se faz presente na iluminação de Vilmar Olos, na direção musical de Maíra Freitas, na direção de movimento de Marina Salomon e na preparação vocal de Edi Montecchi.
RITA FORMIGA - Texto de Domingos Oliveira. Direção de Fernando Philbert. Com Priscila Steinman. Teatro Poeirinha. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
"Rita Formiga"
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Delicioso encontro com uma mulher inesquecível
Lionel Fischer
Domingos Oliveira morava em um apartamento no Bairro Peixoto. E todos os dias, invariavelmente, a atriz Maria Gladys o invadia e, das 16 às 18h, ocupava o telefone, justamente no horário em que o jovem autor mais gostava de escrever. No entanto, como Domingos sempre foi um gentleman, não vedava à amiga o acesso ao seu telefone. Mas os telefonemas, que inicialmente o atrapalhavam, aos poucos foram gerando interesse, até que um dia Domingos pediu permissão a Maria para gravar suas conversas. E então surgiu a peça "Rita Formiga".
Já encenado, o texto ganha agora uma nova versão, em comemoração aos 80 anos de Domingos Oliveira, completados em 2016. Em cartaz no Teatro Poeirinha, a montagem - que conta com vídeos em que Domingos aparece e com sua voz em off - leva a assinatura de Fernando Philbert, cabendo a interpretação do monólogo a Priscila Steinman.
Para os que não tiveram o privilégio de viver no Rio de Janeiro nos anos 70, também incluindo o final dos 60, cumpre relembrar que foi uma época gloriosa. Quase que simultaneamente aportaram a mini-saia, os Beatles e os Roling Stones, a contracultura através do movimento hippie, o LSD e algumas outras drogas que, em nenhuma hipótese, geravam qualquer tipo de violência.
E por aqui surgiram poetas, músicos, cineastas e dramaturgos de primeira grandeza, e o teatro conheceu encenadores que haveriam de promover uma verdadeira revolução cênica, tendo José Celso Martinez Corrêa como um de seus expoentes. Enfim...em meio à bárbara ditadura militar, muitos acreditavam que a paz, o amor e a fraternidade haveriam de prevalecer. E que só a Arte poderia nos livrar de todas as mazelas.
É dentro deste contexto que se insere Rita Formiga. E por que essa mulher permanece tão atual? Porque queria ser independente, ganhar seu próprio dinheiro através de seu trabalho como atriz; porque não levava desaforo para casa; porque transava com quem lhe desse na telha; porque priorizava a sinceridade absoluta e abominava a hipocrisia. E, finalmente, porque acreditava no Amor e na Arte. Tais predicados me parecem suficientes para considerar Maria Gladys um exemplo de mulher, posto que, ainda que passando por múltiplos percalços, conseguiu manter-se totalmente íntegra, honesta consigo mesma e com os outros.
Na presente versão de "Rita Formiga", tudo começa com um engraçadíssimo vídeo em que Domingos Oliveira faz preciosas digressões sobre a burrice. E por que tais digressões estão aqui inseridas? Não sei exatamente por quê, mas é possível que possam ser encaradas como um alerta ao momento que vivemos, pois não resta a menor dúvida de que os burros e seus irmãos-gêmeos, os medíocres, tomaram o poder de assalto e só o império da inteligência pode nos salvar - ao contrário da burrice, como sustenta Domingos, a inteligência é generosa, amorosa e dispensa a inveja, que em minha opinião é a mais grave e letal dentre todas as moléstias infecto-contagiosas.
Texto delicioso, "Rita Formiga" recebeu ótima versão cênica de Fernando Philbert, que, abstendo-se de inócuas firulas formais, priorizou o que de fato importa: a performance da atriz - minha única ressalva fica por conta de eventuais deficiências de algumas projeções. Quanto a Priscila Steinman, trata-se de uma atriz de grande e diversificado potencial expressivo.
Na série "Questão de Família" (GNT), cuja terceira temporada acaba de se encerrar, Priscila vivia uma jovem desajustada em face de um passado aterrador e na maior parte de suas cenas prevalecia a dramaticidade - aliás, gostaria de registrar que tive o privilégio de contracenar com ela vivendo o médico que talvez pudesse curá-da das angústias que a afligiam, e pude sentir a força de sua presença e sua notável capacidade de entrega.
No entanto, em "Rita Formiga" dá-se o oposto: ainda que o texto contenha algumas passagens dolorosas, é o humor que predomina. Mas não um humor raso e banal, mas fruto de pertinentes observações sobre questões fundamentais inerentes ao ato de existir. E Priscila Steinman consegue extrair todo o potencial humorístico do texto, cabendo ainda ressaltar seu ótimo trabalho corporal e o propositadamente exagerado sotaque carioca. Em resumo: uma excelente performance de uma jovem atriz que reúne todas as condições para obter sucesso absoluto em sua trajetória artística.
Na equipe técnica, Natália Lana assina uma cenografia correta e belíssimos figurinos. A mesma eficiência se faz presente na iluminação de Vilmar Olos, na direção musical de Maíra Freitas, na direção de movimento de Marina Salomon e na preparação vocal de Edi Montecchi.
RITA FORMIGA - Texto de Domingos Oliveira. Direção de Fernando Philbert. Com Priscila Steinman. Teatro Poeirinha. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
Teatro/CRÍTICA
"Janis"
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Espetáculo arrebatador no Oi Futuro
Lionel Fischer
"O monólogo musical evoca a emblemática figura da cantora norte-americana Janis Joplin, falecida em 1970, aos 27 anos. A trama combina as canções mais icônicas de Joplin, fatos de sua biografia e o encontro com o público presente. Nesse encontro, temas como a fama e o sucesso, família, liberdade, o amor e a solidão, abrem uma reflexão sobre o ser humano, o seu estar no mundo e a importância de ser quem se é".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Janis", em cartaz no Oi Futuro Flamengo. Diogo Liberano assina a dramaturgia, com Sergio Módena respondendo pela direção. Carol Fazu, idealizadora do projeto, interpreta a cantora, dividindo o palco com os músicos Marcelo Muller (baixo), Arthur Martau (guitarra), Eduardo Rorato (bateria), Marcelo Cebukin (saxofone) e Antônio Van Ahn (teclado).
Como se sabe, é extensa lista de astros do pop, rock ou blues que morreram aos 27 anos, e por razões idênticas: excessiva ingestão de álcool e drogas. Dentre os mais conhecidos, Brian Jones (fundador e guitarrista dos Rollig Stones), Jimi Hendrix (considerado o maior guitarrista de todos os tempos), Jim Morrison (poeta e vocalista do The Doors), Kurt Cobain (vocalista do Nirvana) e mais recentemente a cantora Amy Winehouse.
Mas se por um lado sabemos o que causou a morte precoce de artistas tão geniais, por outro nem sempre temos acesso à singularidade de cada um, em seu sentido mais profundo. Em todo caso, e ainda que levando em conta todas as variantes possíveis, acredito que todos padeceram de algo em comum que defino como "a dor de existir" - não me estenderei aqui sobre tal definição, pois isso me obrigaria à exposição de longas conjecturas. Vamos, pois, nos deter na personalidade em questão: Janis Joplin.
Nascida no Texas em uma família de classe média, Janis poderia ter se tornado mais uma figura medíocre em meio à mediocridade que a cercava. Mas o que a teria levado a se tornar o oposto das mocinhas bem-comportadas? Apenas sua paixão pela música? Não creio, pois ela poderia ter se tornado uma cantora bem-comportada. No entanto, é óbvio que nutria desprezo pelo mundo careta que a cercava, e isto fez toda a diferença - permitiu-se todas as liberdades em relação ao sexo, vestia-se como os poetas da geração beat, bebeu e se drogou o quanto quis e, graças ao imenso talento que possuía, provou que uma mulher branca poderia cantar blues e além disso se tornou o maior símbolo feminino do rock.
Ainda assim, e mesmo levando-se em conta o estrondoso sucesso que fazia, Janis parecia sempre carecer de algo que talvez nem soubesse definir. O que poderia ser? Um grande amor? É possível que um grande amor a salvasse, ao menos durante um tempo. Mas certamente não teria sido capaz de salvá-la de si mesma, da solidão que sentia mesmo quando cercada de amigos e consciente de que uma multidão de fãs a idolatrava.
Posso estar enganado, mas acredito que Janis apostou tudo na hipótese de que, se corresse todos os riscos, se conseguisse se entregar visceralmente a cada música que cantava e se empenhasse ao máximo em extrair tudo de cada momento, sua permanente frustração haveria de ser ao menos minimizada. Mas não foi isso que aconteceu. E é provável que tenha ensaiado várias vezes, ainda que inconscientemente, a própria morte. Até que um dia os ensaios se encerraram, e talvez ela tenha finalmente encontrado a paz que a vida sempre lhe negou.
Com relação ao ótimo texto de Diogo Liberano, estruturado na forma de monólogo, o autor propõe uma conversa direta da personagem com a plateia, entremeada por algumas de suas mais significativas canções, sempre inseridas em total sintonia com a narrativa, assim criando uma unidade entre o canto e as palavras. E quando estas se revelam insuficientes para expressar determinados sentimentos, a música as substitui - tal recurso, utilizado de forma extremamente sensível, deixa claro que era cantando que Janis conseguia realmente se posicionar perante o mundo.
No tocante ao espetáculo, a direção de Sergio Módena merece ser considerada primorosa, tanto pela expressividade e originalidade das marcações quanto por sua sua atuação junto à protagonista, cujos méritos serão analisados mais adiante. Mas por ora quero me deter no que o encenador conseguiu em sua parceria com toda a equipe, essencial para conferir perfeita unidade entre todos os elementos.
A cenografia de Marcelo Marques, composta basicamente por estruturas metálicas e um pequeno tablado, remete aos grandes shows de rock. Os figurinos, também de sua autoria, vestem os integrantes da banda enfatizando a época com psicodélico lirismo - quanto ao figurino da protagonista, creio que constituído de seda e veludo, é marcado por tonalidades quentes e virulentas, em total sintonia com a personalidade retratada.
A iluminação de Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani enfatiza maravilhosamente todos os climas emocionais em jogo, cabendo destacar a passagem em que a atriz, ao fundo e de perfil, canta Summertime - a luz etérea, como que impalpável, me deu a sensação de que, se viesse a falecer neste momento, o faria tomado pelo mais absoluto encantamento.
Finalmente, creio que a direção musical de Ricco Viana seja a melhor de sua brilhante carreira, pois ao mesmo tempo em que os arranjos remetem à época retratada, nem por isso deixam de exibir sutilezas harmônicas e de fraseado que estabelecem contrapontos tão surpreendentes quanto preciosos. E os músicos, todos de excelente nível, se integram à montagem com uma paixão equivalente à da protagonista.
No que se refere a Carol Fazu, não resta a menor dúvida de que é a mais impactante interpretação da presente temporada, cabendo registrar a declaração da atriz de que jamais se preocupou em fazer uma imitação de Janis Joplin, embora suas vozes obviamente se pareçam. Sábia postura, sem dúvida, pois se assim tivesse agido nos limitaríamos, no máximo, a admirar seus predicados de copista. Muito pelo contrário: o que assistimos no Oi Futuro me parece traduzir uma completa identificação entre as duas artistas, sendo arrebatadoras as interpretações de Carol Fazu e não menos arrebatadora a forma visceral com que se expressa através das palavras, cabendo igualmente registrar sua deslumbrante expressividade corporal, imenso carisma e fortíssima presença cênica. Sem nenhum temor de estar enganado, não hesito em afirmar que o teatro musical brasileiro acaba de ganhar uma artista de primeira grandeza. Assim, só me resta implorar aos sempre caprichosos deuses do teatro que abençoem sua trajetória.
JANIS - Texto de Diogo Liberano. Direção de Sergio Módena. Interpretação de Carol Fazu, também idealizadora do projeto. Oi Futuro do Flamengo. Quinta a domingo, 20h.
"Janis"
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Espetáculo arrebatador no Oi Futuro
Lionel Fischer
"O monólogo musical evoca a emblemática figura da cantora norte-americana Janis Joplin, falecida em 1970, aos 27 anos. A trama combina as canções mais icônicas de Joplin, fatos de sua biografia e o encontro com o público presente. Nesse encontro, temas como a fama e o sucesso, família, liberdade, o amor e a solidão, abrem uma reflexão sobre o ser humano, o seu estar no mundo e a importância de ser quem se é".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Janis", em cartaz no Oi Futuro Flamengo. Diogo Liberano assina a dramaturgia, com Sergio Módena respondendo pela direção. Carol Fazu, idealizadora do projeto, interpreta a cantora, dividindo o palco com os músicos Marcelo Muller (baixo), Arthur Martau (guitarra), Eduardo Rorato (bateria), Marcelo Cebukin (saxofone) e Antônio Van Ahn (teclado).
Como se sabe, é extensa lista de astros do pop, rock ou blues que morreram aos 27 anos, e por razões idênticas: excessiva ingestão de álcool e drogas. Dentre os mais conhecidos, Brian Jones (fundador e guitarrista dos Rollig Stones), Jimi Hendrix (considerado o maior guitarrista de todos os tempos), Jim Morrison (poeta e vocalista do The Doors), Kurt Cobain (vocalista do Nirvana) e mais recentemente a cantora Amy Winehouse.
Mas se por um lado sabemos o que causou a morte precoce de artistas tão geniais, por outro nem sempre temos acesso à singularidade de cada um, em seu sentido mais profundo. Em todo caso, e ainda que levando em conta todas as variantes possíveis, acredito que todos padeceram de algo em comum que defino como "a dor de existir" - não me estenderei aqui sobre tal definição, pois isso me obrigaria à exposição de longas conjecturas. Vamos, pois, nos deter na personalidade em questão: Janis Joplin.
Nascida no Texas em uma família de classe média, Janis poderia ter se tornado mais uma figura medíocre em meio à mediocridade que a cercava. Mas o que a teria levado a se tornar o oposto das mocinhas bem-comportadas? Apenas sua paixão pela música? Não creio, pois ela poderia ter se tornado uma cantora bem-comportada. No entanto, é óbvio que nutria desprezo pelo mundo careta que a cercava, e isto fez toda a diferença - permitiu-se todas as liberdades em relação ao sexo, vestia-se como os poetas da geração beat, bebeu e se drogou o quanto quis e, graças ao imenso talento que possuía, provou que uma mulher branca poderia cantar blues e além disso se tornou o maior símbolo feminino do rock.
Ainda assim, e mesmo levando-se em conta o estrondoso sucesso que fazia, Janis parecia sempre carecer de algo que talvez nem soubesse definir. O que poderia ser? Um grande amor? É possível que um grande amor a salvasse, ao menos durante um tempo. Mas certamente não teria sido capaz de salvá-la de si mesma, da solidão que sentia mesmo quando cercada de amigos e consciente de que uma multidão de fãs a idolatrava.
Posso estar enganado, mas acredito que Janis apostou tudo na hipótese de que, se corresse todos os riscos, se conseguisse se entregar visceralmente a cada música que cantava e se empenhasse ao máximo em extrair tudo de cada momento, sua permanente frustração haveria de ser ao menos minimizada. Mas não foi isso que aconteceu. E é provável que tenha ensaiado várias vezes, ainda que inconscientemente, a própria morte. Até que um dia os ensaios se encerraram, e talvez ela tenha finalmente encontrado a paz que a vida sempre lhe negou.
Com relação ao ótimo texto de Diogo Liberano, estruturado na forma de monólogo, o autor propõe uma conversa direta da personagem com a plateia, entremeada por algumas de suas mais significativas canções, sempre inseridas em total sintonia com a narrativa, assim criando uma unidade entre o canto e as palavras. E quando estas se revelam insuficientes para expressar determinados sentimentos, a música as substitui - tal recurso, utilizado de forma extremamente sensível, deixa claro que era cantando que Janis conseguia realmente se posicionar perante o mundo.
No tocante ao espetáculo, a direção de Sergio Módena merece ser considerada primorosa, tanto pela expressividade e originalidade das marcações quanto por sua sua atuação junto à protagonista, cujos méritos serão analisados mais adiante. Mas por ora quero me deter no que o encenador conseguiu em sua parceria com toda a equipe, essencial para conferir perfeita unidade entre todos os elementos.
A cenografia de Marcelo Marques, composta basicamente por estruturas metálicas e um pequeno tablado, remete aos grandes shows de rock. Os figurinos, também de sua autoria, vestem os integrantes da banda enfatizando a época com psicodélico lirismo - quanto ao figurino da protagonista, creio que constituído de seda e veludo, é marcado por tonalidades quentes e virulentas, em total sintonia com a personalidade retratada.
A iluminação de Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani enfatiza maravilhosamente todos os climas emocionais em jogo, cabendo destacar a passagem em que a atriz, ao fundo e de perfil, canta Summertime - a luz etérea, como que impalpável, me deu a sensação de que, se viesse a falecer neste momento, o faria tomado pelo mais absoluto encantamento.
Finalmente, creio que a direção musical de Ricco Viana seja a melhor de sua brilhante carreira, pois ao mesmo tempo em que os arranjos remetem à época retratada, nem por isso deixam de exibir sutilezas harmônicas e de fraseado que estabelecem contrapontos tão surpreendentes quanto preciosos. E os músicos, todos de excelente nível, se integram à montagem com uma paixão equivalente à da protagonista.
No que se refere a Carol Fazu, não resta a menor dúvida de que é a mais impactante interpretação da presente temporada, cabendo registrar a declaração da atriz de que jamais se preocupou em fazer uma imitação de Janis Joplin, embora suas vozes obviamente se pareçam. Sábia postura, sem dúvida, pois se assim tivesse agido nos limitaríamos, no máximo, a admirar seus predicados de copista. Muito pelo contrário: o que assistimos no Oi Futuro me parece traduzir uma completa identificação entre as duas artistas, sendo arrebatadoras as interpretações de Carol Fazu e não menos arrebatadora a forma visceral com que se expressa através das palavras, cabendo igualmente registrar sua deslumbrante expressividade corporal, imenso carisma e fortíssima presença cênica. Sem nenhum temor de estar enganado, não hesito em afirmar que o teatro musical brasileiro acaba de ganhar uma artista de primeira grandeza. Assim, só me resta implorar aos sempre caprichosos deuses do teatro que abençoem sua trajetória.
JANIS - Texto de Diogo Liberano. Direção de Sergio Módena. Interpretação de Carol Fazu, também idealizadora do projeto. Oi Futuro do Flamengo. Quinta a domingo, 20h.
quarta-feira, 7 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Ivanov"
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Ótima versão de um texto pouco encenado
Lionel Fischer
"Nicolai Ivanov é um homem ensimesmado com seus conflitos interiores, sufocado pelas pressões sociais e econômicas do mundo em que vive. Oprimido pelo amor de Anna, sua esposa doente, a quem não ama mais, e assustado com a paixão fulminante e envolvente da jovem Sacha, Ivanov, inerte e sem fé, não consegue escolher uma direção a seguir. Mais tarde, viúvo e prestes a se casar com Sacha, compreende que se deixou levar mais uma vez pelos acontecimentos, e decide dar um basta".
Extraído do excelente release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Ivanov", primeiro texto longo de Anton Tchecov (1860-1904), raramente encenado por razões que desconheço. Em cartaz no Teatro Ipanema, a montagem leva a assinatura de Ary Coslov, também responsável pela adaptação. No elenco, Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes.
A maior parte dos críticos, ensaístas e literatos do século passado considera que Tchecov escreveu apenas três obras-primas: "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota". No entanto, esta última, quando de sua estreia, em 1896, foi detonada tanto pelos que se julgam especialistas quanto pelo público, que brindou o autor com impiedosa vaia. Curiosamente, quando voltou a ser encenada dois anos depois, tanto os especialistas (não sei se todos) quanto o público (disto estou certo) adoraram a peça. O que terá ocorrido? A segunda montagem seria tão melhor do que a primeira? Ou será que tanto o público como os especialistas renderam-se a méritos já existentes e que por um desses mistérios insondáveis não foram percebidos?
Com esta breve digressão pretendo dizer o seguinte: no tocante à arte, tanto as opiniões supostamente mais abalizadas quanto as mais singelas devem ser encaradas com cautela, já que podem mudar em função de inúmeros fatores. E mais: embora também considere magistrais "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota", não vejo por quê encarar como menos relevantes "O jardim das cerejeiras" e "Ivanov", posto que em ambas também se faz presente a genialidade do autor russo.
Quem é Ivanov? Um homem atordoado com questões inerentes apenas ao final do século XIX? É óbvio que não: as angústias de Ivanov, suas frustrações, suas indecisões amorosas, a consciência que possui de que o tempo passa muito rápido, sua exasperação pelo que acredita que ainda possa realizar e não realiza em face da própria inércia, a sensação de vazio que sente e que não consegue explicar, dentre muitas outras características, o convertem em um homem atemporal, que poderia ter vivido em qualquer época. E ainda que a presente adaptação priorize as questões do protagonista, nem por isso desprezou as que envolvem os demais personagens, por sinal também maravilhosamente construídos.
Com relação ao espetáculo, Ary Coslov deixa claro que estamos em um teatro e diante de atores que irão representar um texto - há uma espécie de aquecimento inicial, breves passagens são ensaiadas sem que se escute o que os intérpretes dizem, estes permanecem visíveis nas coxias quando não estão em cena e no centro desta há um tablado, onde ocorrem as principais cenas. Qual a razão desta opção? Talvez o objetivo do encenador tenha sido o de evitar que a plateia se identificasse com os personagens, envolvendo-se com eles e com a trama a ponto de relegar a um plano secundário as indispensáveis reflexões sobre as questões abordadas.
Seja como for, não hesito em afirmar que Ary Coslov criou uma excelente versão de "Ivanov". A começar pela trilha sonora, também de sua responsabilidade, que mescla temas populares russos, Chet Baker, Nina Simone, um chorinho de Paulinho da Viola e especialmente trechos da angustiante e melancólica "Balada em Sol Menor", opus 23, de Chopin.
Quanto à dinâmica cênica, o diretor explora com grande sensibilidade a despojada e expressiva cenografia de Marcos Flaksman, composta pelo já mencionado tablado e por três tapadeiras que indicam que a trama acontece no campo. Além disso, Coslov se mostra, como de hábito, um mestre no tocante ao tempo, seja o de uma cena, seja o tempo interior dos personagens. E, também como de hábito, consegue extrair ótimas atuações do elenco.
Na pele de Ivanov, Isio Guelman (o ator mais elegante do teatro brasileiro) exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira, tanto nas passagens mais explosivas quanto naquelas em que o desespero como que o petrifica - quando imóvel e em silêncio, Isio materializa toda a devastação causada por angústias que nenhuma palavra é capaz de ao menos minimizar. Marcelo Aquino, que vive o médico Lvov, explora de forma convincente o caráter de um homem indignado com a frieza do protagonista com relação à esposa. Marcio Vito (Lebedev) está irretocável vivendo um personagem totalmente dominado pela mulher (que aqui não aparece) e incapaz de tomar decisões. Mario Borges está exuberante encarnando o prolixo, divertido e não raro embriagado Borkine. Mayara Travassos vive a apaixonada Sacha com a pulsão que caracteriza aqueles que se mostram dispostos a tudo por amor. Finalmente, Sheron Menezzes valoriza ao extremo o caráter de uma mulher que se vê obrigada a lidar com a morte que se avizinha, o desprezo do marido e a traição que ele perpetra com Sacha.
No complemento da ficha técnica, Beth Filipecki responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas, cabendo também ressaltar a expressividade da iluminação de Aurélio de Simoni, que, como de hábito e sempre sutilmente, consegue valorizar ao extremo todos os climas emocionais em jogo.
IVANOV - Texto de Tchecov. Direção e adaptação de Ary Coslov. Com Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes. Teatro Ipanema. Sábado e segunda às 21h. Domingo, 20h.
"Ivanov"
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Ótima versão de um texto pouco encenado
Lionel Fischer
"Nicolai Ivanov é um homem ensimesmado com seus conflitos interiores, sufocado pelas pressões sociais e econômicas do mundo em que vive. Oprimido pelo amor de Anna, sua esposa doente, a quem não ama mais, e assustado com a paixão fulminante e envolvente da jovem Sacha, Ivanov, inerte e sem fé, não consegue escolher uma direção a seguir. Mais tarde, viúvo e prestes a se casar com Sacha, compreende que se deixou levar mais uma vez pelos acontecimentos, e decide dar um basta".
Extraído do excelente release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Ivanov", primeiro texto longo de Anton Tchecov (1860-1904), raramente encenado por razões que desconheço. Em cartaz no Teatro Ipanema, a montagem leva a assinatura de Ary Coslov, também responsável pela adaptação. No elenco, Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes.
A maior parte dos críticos, ensaístas e literatos do século passado considera que Tchecov escreveu apenas três obras-primas: "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota". No entanto, esta última, quando de sua estreia, em 1896, foi detonada tanto pelos que se julgam especialistas quanto pelo público, que brindou o autor com impiedosa vaia. Curiosamente, quando voltou a ser encenada dois anos depois, tanto os especialistas (não sei se todos) quanto o público (disto estou certo) adoraram a peça. O que terá ocorrido? A segunda montagem seria tão melhor do que a primeira? Ou será que tanto o público como os especialistas renderam-se a méritos já existentes e que por um desses mistérios insondáveis não foram percebidos?
Com esta breve digressão pretendo dizer o seguinte: no tocante à arte, tanto as opiniões supostamente mais abalizadas quanto as mais singelas devem ser encaradas com cautela, já que podem mudar em função de inúmeros fatores. E mais: embora também considere magistrais "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota", não vejo por quê encarar como menos relevantes "O jardim das cerejeiras" e "Ivanov", posto que em ambas também se faz presente a genialidade do autor russo.
Quem é Ivanov? Um homem atordoado com questões inerentes apenas ao final do século XIX? É óbvio que não: as angústias de Ivanov, suas frustrações, suas indecisões amorosas, a consciência que possui de que o tempo passa muito rápido, sua exasperação pelo que acredita que ainda possa realizar e não realiza em face da própria inércia, a sensação de vazio que sente e que não consegue explicar, dentre muitas outras características, o convertem em um homem atemporal, que poderia ter vivido em qualquer época. E ainda que a presente adaptação priorize as questões do protagonista, nem por isso desprezou as que envolvem os demais personagens, por sinal também maravilhosamente construídos.
Com relação ao espetáculo, Ary Coslov deixa claro que estamos em um teatro e diante de atores que irão representar um texto - há uma espécie de aquecimento inicial, breves passagens são ensaiadas sem que se escute o que os intérpretes dizem, estes permanecem visíveis nas coxias quando não estão em cena e no centro desta há um tablado, onde ocorrem as principais cenas. Qual a razão desta opção? Talvez o objetivo do encenador tenha sido o de evitar que a plateia se identificasse com os personagens, envolvendo-se com eles e com a trama a ponto de relegar a um plano secundário as indispensáveis reflexões sobre as questões abordadas.
Seja como for, não hesito em afirmar que Ary Coslov criou uma excelente versão de "Ivanov". A começar pela trilha sonora, também de sua responsabilidade, que mescla temas populares russos, Chet Baker, Nina Simone, um chorinho de Paulinho da Viola e especialmente trechos da angustiante e melancólica "Balada em Sol Menor", opus 23, de Chopin.
Quanto à dinâmica cênica, o diretor explora com grande sensibilidade a despojada e expressiva cenografia de Marcos Flaksman, composta pelo já mencionado tablado e por três tapadeiras que indicam que a trama acontece no campo. Além disso, Coslov se mostra, como de hábito, um mestre no tocante ao tempo, seja o de uma cena, seja o tempo interior dos personagens. E, também como de hábito, consegue extrair ótimas atuações do elenco.
Na pele de Ivanov, Isio Guelman (o ator mais elegante do teatro brasileiro) exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira, tanto nas passagens mais explosivas quanto naquelas em que o desespero como que o petrifica - quando imóvel e em silêncio, Isio materializa toda a devastação causada por angústias que nenhuma palavra é capaz de ao menos minimizar. Marcelo Aquino, que vive o médico Lvov, explora de forma convincente o caráter de um homem indignado com a frieza do protagonista com relação à esposa. Marcio Vito (Lebedev) está irretocável vivendo um personagem totalmente dominado pela mulher (que aqui não aparece) e incapaz de tomar decisões. Mario Borges está exuberante encarnando o prolixo, divertido e não raro embriagado Borkine. Mayara Travassos vive a apaixonada Sacha com a pulsão que caracteriza aqueles que se mostram dispostos a tudo por amor. Finalmente, Sheron Menezzes valoriza ao extremo o caráter de uma mulher que se vê obrigada a lidar com a morte que se avizinha, o desprezo do marido e a traição que ele perpetra com Sacha.
No complemento da ficha técnica, Beth Filipecki responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas, cabendo também ressaltar a expressividade da iluminação de Aurélio de Simoni, que, como de hábito e sempre sutilmente, consegue valorizar ao extremo todos os climas emocionais em jogo.
IVANOV - Texto de Tchecov. Direção e adaptação de Ary Coslov. Com Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes. Teatro Ipanema. Sábado e segunda às 21h. Domingo, 20h.
terça-feira, 6 de junho de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Estranhos.com"
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Pertinente discussão sobre o que une e o que separa
Lionel Fischer
"Ele é um jovem blogueiro que faz estrondoso sucesso na internet com relatos sobre suas experiências sexuais. Ela, um pouco mais velha, é professora de literatura e escritora talentosa avessa ao mundo digital e das celebridades. Numa pousada no campo, Olivia e William se conhecem. Obra do acaso? Não, ato premeditado. William vai à procura de Olivia. Papo interessante sobre literatura. Ele sabe algumas coisas sobre ela. Ela sabe pouco sobre ele, já viu alguns de seus livros na livraria. Atração imediata. Mas os desejos deles caminham em direções opostas. Para onde a ambição os leva?"
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Estranhos.com", da autora norte-americana Laura Eason. Em cartaz no Teatro das Artes, a montagem tem direção assinada por Emílio de Mello, estando o elenco formado por Deborah Evelyn e Johnny Massaro.
Muitas questões estão em jogo no presente texto, sendo a menos importante a atração entre os personagens e a breve história de amor que vivem - a menos que alguém encare o texto como uma comédia romântica e apenas isto. Em meu entendimento, os personagens poderiam ou não se relacionar amorosamente, pois o que realmente importa não é o que os une, mas o que os separa.
Objetivando sucesso como escritor, mas consciente das inevitáveis dificuldades, William cria um blog em que relata suas experiências sexuais e outras que inventa. Sua pretensão é óbvia: tornar-se uma celebridade e a partir daí despertar o interesse de uma editora importante. Olivia, ao contrário, nutre total aversão pelo universo virtual e por todas as trapaças a ele inerentes. Ela quer, sim, terminar seu novo livro (ainda que esteja insegura quanto à sua qualidade) e publicá-lo, mas não a qualquer preço.
Assim, são as discussões que os personagens travam sobre os mecanismos capazes de retirar alguém do anonimato e conferir a esse alguém uma visibilidade que lhe permita materializar seus objetivos que me pareceu da mais alta pertinência. Como todos sabemos, o mundo está abarrotado de mediocridades que, mesmo assim, possuem milhões de seguidores nas redes sociais, ainda que nada do que dizem ou fazem tenha a menor importância. Não é o caso de William, que embora tenha vendido sua alma à tecnologia, não é desprovido de talento e por isso seus embates com Olivia não carecem de consistência.
Exibindo ótimos diálogos, personagens muito bem estruturados e uma ação que prende a atenção do espectador ao longo de toda a montagem, "Estranhos.com" recebeu excelente versão cênica de Emílio de Mello. Neste sentido, cabe valorizar a criatividade das marcações, a precisão dos tempos rítmicos e, acima de tudo, a capacidade do encenador de extrair maravilhosas atuações do elenco.
Johnny Massaro está impecável na pele do jovem disposto a tudo para obter sucesso, cabendo ressaltar a forma como valoriza tanto o pragmatismo, arrogância e cinismo do personagem como sua eventual fragilidade e desproteção. O mesmo se aplica a Deborah Evelyn, certamente em uma de suas melhores performances. A Olivia que materializa convence em todas as passagens, seja naquelas em que a indignação a domina quanto em outras em que a insegurança e o desalento predominam. Cabe também ressaltar a ótima contracena entre os dois intérpretes, o que só se torna possível quando os atores se respeitam, confiam um no outro e no projeto em que estão inseridos.
Com relação à equipe técnica, considero irrepreensível a contribuição de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Marcelo Escuñuela (cenário), Carla Garan (figurinos), Tomás Ribas (iluminação), Ivo Senra (trilha musical) e Sergio Flaksman (tradução).
ESTRANOS.COM - Texto de Laura Eason. Direção de Emílio de Mello. Com Deborah Evelyn e Johnny Massaro. Teatro das Artes. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
"Estranhos.com"
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Pertinente discussão sobre o que une e o que separa
Lionel Fischer
"Ele é um jovem blogueiro que faz estrondoso sucesso na internet com relatos sobre suas experiências sexuais. Ela, um pouco mais velha, é professora de literatura e escritora talentosa avessa ao mundo digital e das celebridades. Numa pousada no campo, Olivia e William se conhecem. Obra do acaso? Não, ato premeditado. William vai à procura de Olivia. Papo interessante sobre literatura. Ele sabe algumas coisas sobre ela. Ela sabe pouco sobre ele, já viu alguns de seus livros na livraria. Atração imediata. Mas os desejos deles caminham em direções opostas. Para onde a ambição os leva?"
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Estranhos.com", da autora norte-americana Laura Eason. Em cartaz no Teatro das Artes, a montagem tem direção assinada por Emílio de Mello, estando o elenco formado por Deborah Evelyn e Johnny Massaro.
Muitas questões estão em jogo no presente texto, sendo a menos importante a atração entre os personagens e a breve história de amor que vivem - a menos que alguém encare o texto como uma comédia romântica e apenas isto. Em meu entendimento, os personagens poderiam ou não se relacionar amorosamente, pois o que realmente importa não é o que os une, mas o que os separa.
Objetivando sucesso como escritor, mas consciente das inevitáveis dificuldades, William cria um blog em que relata suas experiências sexuais e outras que inventa. Sua pretensão é óbvia: tornar-se uma celebridade e a partir daí despertar o interesse de uma editora importante. Olivia, ao contrário, nutre total aversão pelo universo virtual e por todas as trapaças a ele inerentes. Ela quer, sim, terminar seu novo livro (ainda que esteja insegura quanto à sua qualidade) e publicá-lo, mas não a qualquer preço.
Assim, são as discussões que os personagens travam sobre os mecanismos capazes de retirar alguém do anonimato e conferir a esse alguém uma visibilidade que lhe permita materializar seus objetivos que me pareceu da mais alta pertinência. Como todos sabemos, o mundo está abarrotado de mediocridades que, mesmo assim, possuem milhões de seguidores nas redes sociais, ainda que nada do que dizem ou fazem tenha a menor importância. Não é o caso de William, que embora tenha vendido sua alma à tecnologia, não é desprovido de talento e por isso seus embates com Olivia não carecem de consistência.
Exibindo ótimos diálogos, personagens muito bem estruturados e uma ação que prende a atenção do espectador ao longo de toda a montagem, "Estranhos.com" recebeu excelente versão cênica de Emílio de Mello. Neste sentido, cabe valorizar a criatividade das marcações, a precisão dos tempos rítmicos e, acima de tudo, a capacidade do encenador de extrair maravilhosas atuações do elenco.
Johnny Massaro está impecável na pele do jovem disposto a tudo para obter sucesso, cabendo ressaltar a forma como valoriza tanto o pragmatismo, arrogância e cinismo do personagem como sua eventual fragilidade e desproteção. O mesmo se aplica a Deborah Evelyn, certamente em uma de suas melhores performances. A Olivia que materializa convence em todas as passagens, seja naquelas em que a indignação a domina quanto em outras em que a insegurança e o desalento predominam. Cabe também ressaltar a ótima contracena entre os dois intérpretes, o que só se torna possível quando os atores se respeitam, confiam um no outro e no projeto em que estão inseridos.
Com relação à equipe técnica, considero irrepreensível a contribuição de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Marcelo Escuñuela (cenário), Carla Garan (figurinos), Tomás Ribas (iluminação), Ivo Senra (trilha musical) e Sergio Flaksman (tradução).
ESTRANOS.COM - Texto de Laura Eason. Direção de Emílio de Mello. Com Deborah Evelyn e Johnny Massaro. Teatro das Artes. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
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