quarta-feira, 21 de junho de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Hamlet"


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Obra-prima em belíssima versão




Lionel Fischer



Em recente ocasião, no intervalo de uma aula, uma aluna me fez a seguinte pergunta: "Por que as obras dos compositores clássicos são tocadas na íntegra e no teatro, sobretudo quando se trata de Shakespeare, suas peças quase sempre são cortadas e adaptadas?". Como sabia que ela adora Beethoven, disse que a execução da mais longa de suas sinfonias, a Nona, dura em torno de 65 minutos. 

E aproveitando que Shakespeare estava em questão, perguntei se ela achava que um espectador contemporâneo teria disposição para assistir uma versão integral de "Hamlet", que levaria em torno de cinco horas. Ela me pediu um tempo para pensar e eu o concedi - mas até hoje não obtive a tão almejada resposta...Seja como for, o que me parece relevante não é por que se encenar Shakespeare, mas como fazê-lo. 

Por tratar-se do maior dramaturgo que já existiu, discutir a validade de sua obra configura imperdoável leviandade. Contudo, excetuando-se plateias constituídas por especialistas - e por especialistas entenda-se puristas que se consideram detentores do poder de decidir o que pode ou não ser feito com os clássicos -, a mim parece inquestionável que uma tragédia como "Hamlet", a mais longa dentre todas as escritas pelo fabuloso bardo, se encenada na íntegra dificilmente poderia ser plenamente usufruída por uma plateia normal contemporânea. 

Assim sendo, julgo plenamente válido que a dita peça possa ser reduzida e adaptada, desde que tal redução e adaptação não desfigurem a essência do texto original. E estou plenamente convicto de que a presente versão de "Hamlet" se insere entre as mais brilhantes e dignas já levadas à cena no Rio de Janeiro.

Projeto da Armazém Companhia de Teatro, "Hamlet", em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, tem versão dramatúrgica assinada por Maurício Arruda de Mendonça, estando a direção a cargo de Paulo de Moraes. No elenco, Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius/Coveiro), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes/Guildenstern/Ator), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio/Rosencranz/Loba). A montagem também conta com a participação, em vídeo, de Adriano Garib, vivendo o Espectro.

Por tratar-se de obra por demais conhecida, não vejo a necessidade de resumir seu enredo. No entanto, acho procedentes as seguintes indagações, que fiz a mim mesmo: em que medida os pensamentos e reflexões de Hamlet, assim como as atitudes que toma, contribuem para alargar a consciência que possuo de mim mesmo e do mundo no qual estou inserido? Existiria a possibilidade de se estabelecer um paralelo entre uma Dinamarca inventada e um Brasil real que parece fadado a um trágico destino?

Quanto à última questão, acredito que sim, pois ao constatar que a corrupção moral, ética e política tomara conta do país, Hamlet afirma que "Há algo de podre no reino da Dinamarca". E quanto a nós? Seria nossa atual podridão menos abjeta e desesperadora? Acredito que não. A diferença é que, salvo engano de minha parte, nos falta um Hamlet que pense e, além de pensar, se disponha a agir.

Com relação à consciência, e como aqui não cabe explicitar a importância do personagem na minha vida, proponho uma brevíssima reflexão sobre o processo de conscientização de Hamlet, que talvez possa ser útil a alguém. Como ocorre em todas as tragédias, inclusive as gregas, aqui tudo parte de um desequilíbrio, de um acontecimento que detona um período catártico de transformação. Mas que transformação seria essa?

Mesmo que informado pelo fantasma de seu pai a respeito da tragédia que o vitimara, Hamlet poderia perfeitamente ter encarado tal informação como fruto de um delírio, e optado pela aceitação de um fato cuja natureza criminosa jamais poderia comprovar. No entanto, ele não se conforma e se propõe a agir, assim afirmando o seu EU. E aqui se inicia seu processo de transformação.

Mas como poderia obter êxito em sua empreitada? Tentando ser o mais verdadeiro possível? Isso de nada adiantaria, pois quase todos à sua volta mentem e ele não seria levado a sério. A verdade não imperava na corte de Elsinore. É então que Shakespeare lança mão de um estratagema genial: Hamlet se faz de louco, porque aos loucos é sempre facultado o direito de dizer o que pensam. 

Entretanto, e ainda que a aparente loucura de Hamlet provoque alguns abalos, estes não se mostram totalmente eficientes e então Shakespeare propõe um novo e igualmente genial estratagema: Hamlet, atuando como ator e junto a outros intérpretes, encena diante da corte o assassinato de seu pai, agora sim gerando fortíssimo abalo tanto em sua mãe Gertrudes como no usurpador Claudius. E a partir daí as ações se sucedem, de forma avassaladora, conduzindo ao trágico desfecho.

Com relação ao espetáculo, este se estrutura a partir de ótima versão de Maurício Arruda de Mendonça, cuja adaptação, ainda que obviamente suprimindo cenas e personagens, mantém o que o texto possui de mais essencial. E, mesmo correndo o risco de estar enganado, tenho a impressão de que a montagem de Paulo de Moraes enfatiza não apenas a semelhança entre a Dinamarca da ficção e o Brasil atual, mas também o poder letal daqueles que conseguem superar a melancolia e o desespero e resolvem agir. E tal superação, na presente montagem, transcende o pessoal e se afigura como um gesto político. 

Valendo-se, como de hábito, de uma dinâmica cênica em que imperam soluções criativas, imprevistas e da mais alta expressividade, além disso o encenador conseguiu extrair uma das mais brilhantes performances de Patrícia Selonk. Na pele de Hamlet, a atriz potencializa ao máximo toda a fragilidade e potência do personagem, tornando verossímeis tanto a melancolia e inércia do personagem no início quanto a fúria devastadora que o domina a partir do momento em que decide efetivamente agir. E no que se refere ao célebre monólogo "Ser ou não ser", proferido em voz baixa e impregnado de uma dor que chega a ser exasperante, bastaria este breve e sublime momento para ratificar o que todos já sabem: Patrícia Selonk é uma das melhores intérpretes do país. 

No que concerne ao restante do elenco, todos exibem atuações à altura dos personagens que interpretam, cabendo salientar sua visceral capacidade de entrega e a ótima contracena que materializam, o que só se torna possível quando existe mútua confiança, sólida parceria e uma crença absoluta no projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo, aí incluindo-se, evidentemente, a bela participação em vídeo de Adriano Garib.

Na equipe técnica, considero preciosas e irretocáveis as contribuições de Carla Berri e Paulo de Moraes (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), João Marcelino e Carol Lobato (figurinos), Ricco Viana (música), Patrícia Selonk (preparação corporal), Toni Rodrigues (coreografias) e Rodrigo Fontes (preparador de esgrima).

HAMLET - Texto de Shakespeare. Versão dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Marcos Martins, Lisa Eiras, Jopa Moraes, Isabel Pacheco e Luiz Felipe Leprevost. Espetáculo da Armazém Companhia de Teatro. Quarta a domingo, às 19h. Teatro I do CCBB.     














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