Teatro/CRÍTICA
"Nós"
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A vital relevância do caos
Lionel Fischer
"Enquanto preparam a última sopa, sete pessoas partilham angústias, algumas esperanças e muitos nós. Gerada de um mergulho radical na experiência de mais de 30 anos do Galpão, a 23ª montagem da companhia debate questões atuais, como a violência, a intolerância, a convivência com a diferença, a partir de uma dimensão política".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza a proposta do grupo Galpão em seu mais recente trabalho, em cartaz no Teatro Sesc Ginástico. Convidado pela companhia, Marcio Abreu assina a direção do espetáculo e também a dramaturgia, esta em parceria com Eduardo Moreira. No elenco, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara.
Após a leitura do parágrafo inicial, dois pensamentos me ocorreram. O primeiro diz respeito a "enquanto preparam a última sopa". Imediatamente me veio a imagem de "A última ceia", afresco criado por Leonardo da Vinci para a igreja de seu protetor, o Duque Ludovivo Sforza. A cena retrata a última ceia de Jesus com os apóstolos, antes de ser preso e crucificado, de acordo com a Bíblia. Aqui Jesus não está presente, tampouco os apóstolos, mas a imagem de que a sopa em questão será a última sugere a iminência de uma ruptura, o que de fato quase se concretiza quando um dos integrantes do grupo é convidado a deixá-lo - inicialmente de forma educada, mas aos poucos com violência crescente.
O segundo pensamento prende-se à palavra nós. Ela tanto pode significar a primeira pessoa do plural quanto algo que pode ser desatado - o nó de uma gravata, por exemplo. Talvez o objetivo de "partilham muitos nós" seja o de explicitar que o grupo está vivendo conflitos que precisam ser resolvidos, posto que do contrário a convivência se tornará impossível. Mas "muitos nós" também pode significar a pluralidade de "eus" que todos contemos, sendo tal pluralidade o que confere ora beleza, ora tragicidade às relações humanas.
Seja como for, e ainda que os dois pensamentos que me ocorreram careçam de maior pertinência, o fato é que estamos diante de um texto de grande singularidade. A começar pela ausência de personagens - os atores não interpretam papéis, materializam as próprias personas. E os conflitos provêm das pressões exercidas pelo mundo sobre o grupo, acarretando proximidades e distanciamentos. Mas o texto deixa sempre implícita a possibilidade de convivência entre os contrários, desde que a tolerância seja considerada imprescindível para o entendimento entre os homens.
Com relação ao espetáculo, Marcio Abreu impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Há passagens em que o congraçamento é total - as ideias são formuladas com clareza, as reflexões soam pertinentes e a ocupação do espaço exibe coerência. Mas em outras a impressão que se tem é de que a desagregação total é iminente, pois nada do que é dito parece fazer sentido, ninguém se escuta e o caos se instala, física e emocionalmente. E é justamente nas passagens mais caóticas que o espetáculo adquire maior relevância, posto que propõe ao espectador uma relação que, por ignorar a razão, só pode existir se admitimos que o pandemônio cênico não deixa de espelhar, ao menos em alguma medida, nosso pandemônio interno. E se nos reconhecemos no outro, se com o outro nos sentimos irmanados, é possível que todas as distâncias possam ser aos poucos reduzidas. Já seria uma bela conquista para a espécie humana.
No que diz respeito ao elenco, composto não apenas por excelentes intérpretes, mas por intérpretes que refletem sobre sua arte e sobre o mundo em que vivem, nada me resta a não ser agradecer a dádiva que é poder assistir mais uma vez um espetáculo do Galpão, o mais importante grupo teatral deste país. E meu agradecimento, e encantamento, se estendem a todos os profissionais da equipe técnica, que muito colaboraram para o êxito incontestável de "Nós" - Marcelo Alvarenga (cenografia), Paulo André (figurino), Nadja Naira (iluminação), Felipe Storino (trilha e efeitos sonoros), Ernani Maletta (preparação musical e arranjos vocais/instrumentais), Babaya (preparação vocal e direção de texto) e Nadja Naira e João Santos (colaboração artística).
NÓS - Dramaturgia de Marcio Abreu e Eduardo Moreira. Direção de Marcio Abreu. Com o Grupo Galpão. Teatro Sesc Ginástico. Quarta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
terça-feira, 14 de junho de 2016
Vem aí n'O Tablado, curso “BENJAMINEANU” | Estudos com Walter Benjamin
Julia Carrera
|
ter 19:52
Olá,
estamos organizando um novo curso n'O Tablado e gostaríamos de contar com sua presença! :)
Caso você tenha interesse em participar, envie a ficha de inscrição anexa preenchida para admin@otablado.com.br e mandaremos as instruções para efetivar a inscrição.
Um abraço e até lá!
O Tablado
“BENJAMINEANU”
ESTUDOS COM WALTER BENJAMIN
“Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta,
tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada.”
Walter Benjamin
O Projeto BENJAMINEANU tem como proposta desenvolver uma série de estudos em torno do pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin [1892-1940]. O primeiro estudo, dividido em 4 encontros ministrados por Manoel Ricardo de Lima nas instalações do Teatro O Tablado, parte de uma leitura crítica da pequena reunião de textos da edição brasileira intitulada Rua de mão única [1987 – tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa] desdobrada às edições mais recentes traduzidas pelo crítico português João Barrento: Rua de mão única – Infância Berlinense: 1900 [2013] e Imagens de pensamento [2013].
Primeiro Estudo
Rua de mão única:
todos os sentidos com Walter Benjamin
- 2 de setembro, de 9 as 12 horas – Ler o que não foi escrito
- 7 de outubro, de 9 as 12 horas – Rua de mão única
- 4 de novembro, de 9 as 12 horas – Infância em Berlim, 1900
- 2 de dezembro, de 9 as 12 horas – Imagens do pensamento
Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor da Escola de Letras e do PPGMS na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. Publicou "Falas Inacabadas - objetos e um poema" [um livro-transparência com Elida Tessler, Tomo Editorial, 2000]; os livros de poemas: "Embrulho”[7Letras, 2000], "Quando todos os acidentes acontecem" [7Letras, 2009], "Geografia Aérea" [7Letras, 2014] e "Um tiro lento atingiu meu coração" [7Letras, 2015]; os livros de ensaio: "Entre Percurso e Vanguarda - alguma poesia de P. Leminski" [Annablume, 2002], "Fazer, Lugar - a poesia de Ruy Belo" [Lumme Editor, 2011] e "A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo" [EdUFSC, 2014]; "As Mãos" [romance, 7Letras, 2003/2012], "Jogo de Varetas" [narrativas, 7Letras, 2012] e "Maria quer o mundo" [para crianças, Edições SM, 2015]. Organizou as coletâneas "A visita" [com Isabella Marcatti, Barracuda, 2006] e "A nossos pés – poemas para Ana Cristina Cesar" [Editora da Casa, 2008]. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios para a Lumme Editor, SP.
Julia Carrera
Administração
O TABLADO
Avenida Lineu de Paula Machado, 795, Lagoa
CEP: 22470-040 - Rio de Janeiro - RJ
+ 55 21 2259-7857 - NOVO TELEFONE
+ 55 21 2294-7847
+ 55 21 99032-7864 - NOVO TELEFONE
segunda-feira, 13 de junho de 2016
FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA
Apresentaremos no dia 24 de junho, no FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA, o premiado filme espanhol: PELOS MEUS OLHOS (Te doy mis ojos) 2003, 100 min., da diretora Icíar Bollaín, de origem basca, reverenciada como uma das mais brilhantes criadoras de sua geração. O filme, que recebeu mais de 20 prêmios, foi lançado no Brasil em 2008, e até hoje é muito referenciado em artigos e livros de diversas áreas, como direito, sociologia e sobretudo psicologia e psicanálise.
A temática, infelizmente, continua de intensa atualidade, relatando a vida de Pillar, que, após anos de maus tratos, foge de casa levando o filho e alguns pertences, pedindo abrigo na casa de sua irmã. Apavorada pela possibilidade do marido procurá-la, ela resolve começar a trabalhar em uma loja de um museu, experiência que a torna mais fortalecida para superar a dor conjugal.
A conjunção de violência e humilhação resulta em uma realidade comum a vários países e diversas sociedades, sobretudo àquelas que têm um patriarcado estranhado em sua cultura. Assim, convidamos a todos para assistirmos a esse instigante filme que certamente provocará estimulante troca de ideia e caloroso debate.
Um abraço, Ana Lúcia, Neilton e Zusman.
SERVIÇO:
DATA: 24 DE JUNHO DE 2016.
HORÁRIO: FILME: 18h; ANÁLISE E DEBATE: 20h às 22h.
LOCAL: SALA VERA JANACÓPULOS – UNIRIO
ENDEREÇO: AV. PASTEUR, 296.
ANÁLISE CULTURAL: PROF. DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO
ANÁLISES PSICANALÍTCAS: DR. NEILTON SILVA E DR. WALDEMAR ZUSMAN
ENTRADA FRANCA
Ana Lúcia, Neilton e Zusman.
NOTA: Quem se interessar em adquirir o livro: Fórum de Psicanálise e Cinema: 20 filmes analisados, de autoria de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva, editado pela Letra Capital com apoio da UNIRIO, ele se encontra à venda nos dias do FÓRUM.
quinta-feira, 9 de junho de 2016
Teatro/CRÍTICA
"O camareiro"
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Ótima montagem de texto maravilhoso
Lionel Fischer
"Durante a Segunda Guerra Mundial, um ator de teatro à beira de um colapso nervoso luta no limite de suas forças para interpretar mais uma vez o Rei Lear, de Shakespeare. Mesmo senil e com sua saúde debilitada, o Sir, como é chamado por todos, lidera com tirania sua companhia, que começa a desmoronar. Ele conta com Norman, seu dedicado camareiro, que desdobra-se para atender às exigência do patrão, cuida de sua saúde e tenta ajudá-lo a lembrar suas falas, já que Sir encontra-se confuso e desorientado. A dedicação e o esforço de Norman, que faz qualquer coisa por este homem que ele aprendeu a amar e respeitar, mostra que existe uma forte ligação entre eles e que ambos, ator e camareiro, são servidores de algo maior que eles mesmos: o teatro".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "O camareiro", do autor britânico Ronald Harwood, em cartaz no Teatro Sesc Ginástico. Ulysses Cruz assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Tarcísio Meira (Sir), Kiko Mascarenhas (Norman), Lara Córdulla (Milady, atriz e esposa de Sir), Analu Prestes (Madge, assistente de direção), Ravel Cabral e Silvio Matos (atores Oxenby e Geoffrey) e Karen Coelho (Irene,atriz).
Como talvez tenha ficado implícito no parágrafo inicial, o grande personagem deste texto maravilhoso é o teatro. Sim, pois além de proporcionar entretenimento, reflexão e transformação, o teatro é também um poderoso elemento de resistência, tanto no que diz respeito a turbulências internas quanto àquelas vindas do exterior, como no presente caso - a ação se passa em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial, e a cidade está sendo bombardeada pelos nazistas. Apesar disto, o espetáculo não pode parar, não pode deixar de ser feito, mesmo quando o protagonista encontra-se debilitado e exista uma real e iminente possibilidade de destruição.
Contendo ótimos personagens, diálogos brilhantes e uma ação que alterna momentos altamente dramáticos com outros em que o humor predomina, "O camareiro" recebeu excelente versão cênica de Ulysses Cruz. Tal excelência pode ser aferida na expressividade do desenho cênico, na maestria dos tempos rítmicos e na capacidade do encenador de conferir grandeza e humanidade tanto às passagens mais trágicas como àquelas em que a banalidade das relações cotidianas predomina. Afora isso, o encenador extrai um rendimento impecável de todo o elenco.
Na pele de Sir, Tarcísio Meira exibe performance irrepreensível, valorizando em igual medida, e com a mesma excelência, o caráter despótico do personagem e sua atual fragilidade. Vivendo Norman, Kiko Mascarenhas apresenta um trabalho magistral, tanto do ponto de vista vocal como corporal. Afora isto, sua inteligência cênica o faz enveredar para soluções sempre imprevistas, o que constitui o cerne de todo intérprete de exceção. Encarnando personagens coadjuvantes, mas de grande importância para a narrativa, Lara Córdulla, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes valorizam ao máximo todas as suas participações.
Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de André Cortez (cenografia), Beth Filipecki e Renaldo Machado (figurinos), Domingos Quintiliano (iluminação), Rafael Langoni (trilha original) e Emi Sato e Rose Verçosa (visagismo).
O CAMAREIRO - Texto de Ronald Harwood. Direção de Ulysses Cruz. Com Tarcísio Meira, Kiko Mascarenhas, Lara Córdulla, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes. Teatro Sesc Ginástico. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.
"O camareiro"
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Ótima montagem de texto maravilhoso
Lionel Fischer
"Durante a Segunda Guerra Mundial, um ator de teatro à beira de um colapso nervoso luta no limite de suas forças para interpretar mais uma vez o Rei Lear, de Shakespeare. Mesmo senil e com sua saúde debilitada, o Sir, como é chamado por todos, lidera com tirania sua companhia, que começa a desmoronar. Ele conta com Norman, seu dedicado camareiro, que desdobra-se para atender às exigência do patrão, cuida de sua saúde e tenta ajudá-lo a lembrar suas falas, já que Sir encontra-se confuso e desorientado. A dedicação e o esforço de Norman, que faz qualquer coisa por este homem que ele aprendeu a amar e respeitar, mostra que existe uma forte ligação entre eles e que ambos, ator e camareiro, são servidores de algo maior que eles mesmos: o teatro".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "O camareiro", do autor britânico Ronald Harwood, em cartaz no Teatro Sesc Ginástico. Ulysses Cruz assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Tarcísio Meira (Sir), Kiko Mascarenhas (Norman), Lara Córdulla (Milady, atriz e esposa de Sir), Analu Prestes (Madge, assistente de direção), Ravel Cabral e Silvio Matos (atores Oxenby e Geoffrey) e Karen Coelho (Irene,atriz).
Como talvez tenha ficado implícito no parágrafo inicial, o grande personagem deste texto maravilhoso é o teatro. Sim, pois além de proporcionar entretenimento, reflexão e transformação, o teatro é também um poderoso elemento de resistência, tanto no que diz respeito a turbulências internas quanto àquelas vindas do exterior, como no presente caso - a ação se passa em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial, e a cidade está sendo bombardeada pelos nazistas. Apesar disto, o espetáculo não pode parar, não pode deixar de ser feito, mesmo quando o protagonista encontra-se debilitado e exista uma real e iminente possibilidade de destruição.
Contendo ótimos personagens, diálogos brilhantes e uma ação que alterna momentos altamente dramáticos com outros em que o humor predomina, "O camareiro" recebeu excelente versão cênica de Ulysses Cruz. Tal excelência pode ser aferida na expressividade do desenho cênico, na maestria dos tempos rítmicos e na capacidade do encenador de conferir grandeza e humanidade tanto às passagens mais trágicas como àquelas em que a banalidade das relações cotidianas predomina. Afora isso, o encenador extrai um rendimento impecável de todo o elenco.
Na pele de Sir, Tarcísio Meira exibe performance irrepreensível, valorizando em igual medida, e com a mesma excelência, o caráter despótico do personagem e sua atual fragilidade. Vivendo Norman, Kiko Mascarenhas apresenta um trabalho magistral, tanto do ponto de vista vocal como corporal. Afora isto, sua inteligência cênica o faz enveredar para soluções sempre imprevistas, o que constitui o cerne de todo intérprete de exceção. Encarnando personagens coadjuvantes, mas de grande importância para a narrativa, Lara Córdulla, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes valorizam ao máximo todas as suas participações.
Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de André Cortez (cenografia), Beth Filipecki e Renaldo Machado (figurinos), Domingos Quintiliano (iluminação), Rafael Langoni (trilha original) e Emi Sato e Rose Verçosa (visagismo).
O CAMAREIRO - Texto de Ronald Harwood. Direção de Ulysses Cruz. Com Tarcísio Meira, Kiko Mascarenhas, Lara Córdulla, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes. Teatro Sesc Ginástico. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.
segunda-feira, 6 de junho de 2016
Teatro/CRÍTICA
"Auê"
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Divertido, comovente e inesquecível encontro
Lionel Fischer
Da mesma forma que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia (infelizmente, a frase não é minha...), existem espetáculos que ultrapassam as mais otimistas expectativas. É o caso de "Auê" (Teatro dos Quatro) pelas razões que detalharei mais adiante.
Criado pela companhia Barca dos Corações Partidos em parceria com a diretora Duda Maia, o espetáculo exibe 21 canções autorais e inéditas (quase todas versando sobre o amor), compostas pelos integrantes do grupo - Adren Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Renato Luciano e Rica Barros -, que contaram com a colaboração, dentre outros, de Moyseis Marques e Laila Garin.
Diante do exposto, um espectador apressado poderia perguntar se o espetáculo seria efetivamente teatro ou na realidade um show, dada a inexistência de um texto. Tal questão não seria nada desprezível, posto que a maioria das pessoas só consegue entender teatro desde que o fenômeno teatral se dê a partir de um texto. E aqui reside um dos mais poderosos trunfos de "Auê". Embora em dado momento um longo texto seja dito, o belíssimo e comovente "Doideira de amor" (Eduardo Rios), são as canções que constituem a dramaturgia, tanto por seu conteúdo como pela forma com que são encadeadas e teatralizadas.
E já que falamos em teatralização, é realmente arrebatadora a direção de Duda Maia, uma das mais brilhantes diretoras de movimento do teatro brasileiro. A começar pela relação que extrai dos músicos/atores com seus instrumentos. Muito mais do que simplesmente pegá-los e tocá-los, os atores os incorporam de tal forma que se tornam indissociáveis dos personagens que interpretam - sim, personagens, posto que todos agem em total consonância com os conteúdos das canções.
Outro ponto admirável da direção diz respeito às relações entre os atores e destes com o espaço, relações sempre imprevistas e criativas, muitas delas envolvendo os espectadores, que logo se sentem totalmente integrados à montagem e são estimulados a liberar suas mais preciosas emoções. No meu caso específico, devo confessar que passei do riso às lágrimas com uma constância que jamais me aconteceu em nenhum outro espetáculo.
E isto se deve, obviamente, não apenas à dinâmica cênica, mas também à beleza das músicas e das letras, e também à forma como são interpretadas e vivenciadas em cena. Assim, só me resta agradecer a Adren Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Renato Luciano e Rica Barros - e também ao excelente e simpático baterista Rick de La Torre, artista convidado - pela maravilhosa e inesquecível noite que me proporcionaram.
Na equipe técnica, Alfredo Del Penho e Beto Lemos respondem por irrepreensíveis direção musical e arranjos. Renato Machado ilumina a cena valorizando todos os climas emocionais em jogo. Kika Lopes, que assina a direção de arte, ao que tudo indica é a responsável pelo encantador cenário e pelos mais belos e expressivos figurinos da atual temporada.
AUÊ - Direção de Duda Maia. Com a companhia Barca dos Corações Partidos. Teatro dos Quatro. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
"Auê"
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Divertido, comovente e inesquecível encontro
Lionel Fischer
Da mesma forma que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia (infelizmente, a frase não é minha...), existem espetáculos que ultrapassam as mais otimistas expectativas. É o caso de "Auê" (Teatro dos Quatro) pelas razões que detalharei mais adiante.
Criado pela companhia Barca dos Corações Partidos em parceria com a diretora Duda Maia, o espetáculo exibe 21 canções autorais e inéditas (quase todas versando sobre o amor), compostas pelos integrantes do grupo - Adren Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Renato Luciano e Rica Barros -, que contaram com a colaboração, dentre outros, de Moyseis Marques e Laila Garin.
Diante do exposto, um espectador apressado poderia perguntar se o espetáculo seria efetivamente teatro ou na realidade um show, dada a inexistência de um texto. Tal questão não seria nada desprezível, posto que a maioria das pessoas só consegue entender teatro desde que o fenômeno teatral se dê a partir de um texto. E aqui reside um dos mais poderosos trunfos de "Auê". Embora em dado momento um longo texto seja dito, o belíssimo e comovente "Doideira de amor" (Eduardo Rios), são as canções que constituem a dramaturgia, tanto por seu conteúdo como pela forma com que são encadeadas e teatralizadas.
E já que falamos em teatralização, é realmente arrebatadora a direção de Duda Maia, uma das mais brilhantes diretoras de movimento do teatro brasileiro. A começar pela relação que extrai dos músicos/atores com seus instrumentos. Muito mais do que simplesmente pegá-los e tocá-los, os atores os incorporam de tal forma que se tornam indissociáveis dos personagens que interpretam - sim, personagens, posto que todos agem em total consonância com os conteúdos das canções.
Outro ponto admirável da direção diz respeito às relações entre os atores e destes com o espaço, relações sempre imprevistas e criativas, muitas delas envolvendo os espectadores, que logo se sentem totalmente integrados à montagem e são estimulados a liberar suas mais preciosas emoções. No meu caso específico, devo confessar que passei do riso às lágrimas com uma constância que jamais me aconteceu em nenhum outro espetáculo.
E isto se deve, obviamente, não apenas à dinâmica cênica, mas também à beleza das músicas e das letras, e também à forma como são interpretadas e vivenciadas em cena. Assim, só me resta agradecer a Adren Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Renato Luciano e Rica Barros - e também ao excelente e simpático baterista Rick de La Torre, artista convidado - pela maravilhosa e inesquecível noite que me proporcionaram.
Na equipe técnica, Alfredo Del Penho e Beto Lemos respondem por irrepreensíveis direção musical e arranjos. Renato Machado ilumina a cena valorizando todos os climas emocionais em jogo. Kika Lopes, que assina a direção de arte, ao que tudo indica é a responsável pelo encantador cenário e pelos mais belos e expressivos figurinos da atual temporada.
AUÊ - Direção de Duda Maia. Com a companhia Barca dos Corações Partidos. Teatro dos Quatro. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
sexta-feira, 3 de junho de 2016
Teatro/CRÍTICA
"O corpo da mulher como campo de batalha"
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Dolorosa e comovente valorização da vida
Lionel Fischer
Refugiada bósnia vítima de estupro coletivo, a jovem Dorra está internada em uma clínica e tudo leva a crer que não mais estabelecerá nenhum contato com o mundo exterior, não só em função da violência que sofreu como também pelo fato de estar grávida de um bebê que não admite ter em hipótese alguma. No entanto, através de seu relacionamento com Kate, psicoterapeuta norte-americana que trabalha como voluntária, Dorra vai pouco a pouco renunciando à sua dor e revolta. E graças à sua progressiva consciência de que, apesar de tudo, nada pode ser maior do que a vida, ela se dispõe a renascer.
Eis, em resumo, o enredo de "O corpo da mulher como campo de batalha", de Matei Visniec, em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc. Fernando Philbert assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Ester Jablonski (Kate) e Fernanda Nobre (Dorra).
Um dos aspectos mais interessantes do texto de Visniec diz respeito à trajetória de Kate. Se ela fosse apenas uma terapeuta diante de uma mulher dilacerada, já teríamos material suficiente para o estabelecimento de uma forte relação. Entretanto, Kate é também uma mulher dilacerada, pois sua atividade inicial na Bósnia consistia em trabalhar junto às equipes que abrem valas comuns, aonde corpos das vítimas de execuções em massa foram jogados. Não suportando mais a crueza de uma realidade insuportável, ela pede transferência para a clínica situada entre a Alemanha e a Suíça, na qual passa a se relacionar com Dorra.
Estamos, portanto, diante de duas mulheres terrivelmente marcadas pela guerra, ainda que de maneiras diferentes. E o tratamento acaba funcionando não apenas porque Kate é uma excelente terapeuta, mas sobretudo porque ela também precisa se curar. Isso significa que seu empenho, ainda que de forma indireta, tem também como alvo ela própria. O renascimento de uma está inteiramente atrelado ao renascimento da outra. E quando ambas finalmente começam a se recuperar dos respectivos traumas, é muito provável que os espectadores sintam internamente que, se ainda restam forças, mesmo que ínfimas, é sempre possível recomeçar. Porque a vida sempre vale a pena. Porque a vida é uma dádiva.
Com relação ao espetáculo, Fernando Philbert impõe à cena uma dinâmica que, sem deixar de ser expressiva, prioriza o que de fato importa em um texto dessa natureza: o embate entre as duas personagens. Neste sentido, sua atuação merece ser considerada excelente, já que são irrepreensíveis as performances das duas atrizes.
Na pela de Kate, Ester Jablonski exibe aqui a melhor performance de sua carreira, convencendo plenamente tanto nas passagens em que sua personagem exibe doce firmeza quanto naquelas em que, completamente transtornada, se deixa tomar por todo o horror que sua antiga atividade lhe causava. A mesma eficiência se faz presente na atuação de Fernanda Nobre, que desenha de maneira irretocável a penosa trajetória da jovem que, aparentemente condenada a um destino trágico, consegue finalmente transcendê-lo. Cabe também registrar a ótima contracena entre as duas atrizes e sua visceral capacidade de entrega. Sem dúvida, as atuações de Ester Jablonski e Fernanda Nobre constituem um presente para aqueles que amam a arte de representar.
Na equipe técnica, Alexandre David responde por magnífica tradução, com Natália Lima assinando expressiva cenografia e figurinos em total consonância com o contexto e a personalidade das personagens. Vilmar Olos ilumina a cena com sensibilidade, cabendo ainda destacar a ótima trilha sonora e música original de Tato Taborda, e a impecável direção de movimento de Marina Salomon.
O CORPO DA MULHER COMO CAMPO DE BATALHA - Texto de Matei Visniec. Direção de Fernando Philbert. Com Ester Jablonski e Fernanda Nobre. Sala Multiuso do Espaço Sesc. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
"O corpo da mulher como campo de batalha"
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Dolorosa e comovente valorização da vida
Lionel Fischer
Refugiada bósnia vítima de estupro coletivo, a jovem Dorra está internada em uma clínica e tudo leva a crer que não mais estabelecerá nenhum contato com o mundo exterior, não só em função da violência que sofreu como também pelo fato de estar grávida de um bebê que não admite ter em hipótese alguma. No entanto, através de seu relacionamento com Kate, psicoterapeuta norte-americana que trabalha como voluntária, Dorra vai pouco a pouco renunciando à sua dor e revolta. E graças à sua progressiva consciência de que, apesar de tudo, nada pode ser maior do que a vida, ela se dispõe a renascer.
Eis, em resumo, o enredo de "O corpo da mulher como campo de batalha", de Matei Visniec, em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc. Fernando Philbert assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Ester Jablonski (Kate) e Fernanda Nobre (Dorra).
Um dos aspectos mais interessantes do texto de Visniec diz respeito à trajetória de Kate. Se ela fosse apenas uma terapeuta diante de uma mulher dilacerada, já teríamos material suficiente para o estabelecimento de uma forte relação. Entretanto, Kate é também uma mulher dilacerada, pois sua atividade inicial na Bósnia consistia em trabalhar junto às equipes que abrem valas comuns, aonde corpos das vítimas de execuções em massa foram jogados. Não suportando mais a crueza de uma realidade insuportável, ela pede transferência para a clínica situada entre a Alemanha e a Suíça, na qual passa a se relacionar com Dorra.
Estamos, portanto, diante de duas mulheres terrivelmente marcadas pela guerra, ainda que de maneiras diferentes. E o tratamento acaba funcionando não apenas porque Kate é uma excelente terapeuta, mas sobretudo porque ela também precisa se curar. Isso significa que seu empenho, ainda que de forma indireta, tem também como alvo ela própria. O renascimento de uma está inteiramente atrelado ao renascimento da outra. E quando ambas finalmente começam a se recuperar dos respectivos traumas, é muito provável que os espectadores sintam internamente que, se ainda restam forças, mesmo que ínfimas, é sempre possível recomeçar. Porque a vida sempre vale a pena. Porque a vida é uma dádiva.
Com relação ao espetáculo, Fernando Philbert impõe à cena uma dinâmica que, sem deixar de ser expressiva, prioriza o que de fato importa em um texto dessa natureza: o embate entre as duas personagens. Neste sentido, sua atuação merece ser considerada excelente, já que são irrepreensíveis as performances das duas atrizes.
Na pela de Kate, Ester Jablonski exibe aqui a melhor performance de sua carreira, convencendo plenamente tanto nas passagens em que sua personagem exibe doce firmeza quanto naquelas em que, completamente transtornada, se deixa tomar por todo o horror que sua antiga atividade lhe causava. A mesma eficiência se faz presente na atuação de Fernanda Nobre, que desenha de maneira irretocável a penosa trajetória da jovem que, aparentemente condenada a um destino trágico, consegue finalmente transcendê-lo. Cabe também registrar a ótima contracena entre as duas atrizes e sua visceral capacidade de entrega. Sem dúvida, as atuações de Ester Jablonski e Fernanda Nobre constituem um presente para aqueles que amam a arte de representar.
Na equipe técnica, Alexandre David responde por magnífica tradução, com Natália Lima assinando expressiva cenografia e figurinos em total consonância com o contexto e a personalidade das personagens. Vilmar Olos ilumina a cena com sensibilidade, cabendo ainda destacar a ótima trilha sonora e música original de Tato Taborda, e a impecável direção de movimento de Marina Salomon.
O CORPO DA MULHER COMO CAMPO DE BATALHA - Texto de Matei Visniec. Direção de Fernando Philbert. Com Ester Jablonski e Fernanda Nobre. Sala Multiuso do Espaço Sesc. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
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