O respeito pela Arte de Representar
Uta Hagen
Todos temos opiniões e crenças apaixonadas pela arte de representar. As minhas, só são novas até onde se cristalizaram em mim. Tenho passado grande parte da minha vida no teatro e sei que o processo de aprendizagem nunca acaba. As possibilidades de crescimento são ilimitadas. Eu costumava aceitar opiniões tais como: "você já nasceu para ser um ator"; "os atores não sabem realmente o que fazem quando estão em cena"; "atuar é questão de instinto, não se pode ensinar". Nesse pequeno período, durante o qual também acreditei nesse tipo de conversa, como qualquer outra pessoa que pensa dessa maneira, não tinha qualquer respeito pela arte de representar.
Muitas pessoas, inclusive alguns atores experientes, que expressam tais opiniões, talvez admirem o fato de um ator ter o corpo e a voz treinados, mas realmente acreditam que só se consegue uma experiência mais profunda através do contato com o público. Acho isso parecido com o método "nade ou afunde" usado com crianças em seu primeiro contato com a água. As crianças realmente afundam e não são todos os atores que conseguem evoluir somente com sua mera presença física no palco.
Um jovem pianista talentoso, bem treinado em improvisação, ou que toca de ouvido, poderia ser uma sensação momentânea numa boate ou na televisão, mas é melhor que não se aventure a tocar um concerto de Beethoven para piano. Seus dedos simplesmente não conseguirão. Um cantor pop que tem uma voz pouco trabalhada pode alcançar sucesso semelhante, mas não com uma cantata de Bach. Poderá romper suas cordas vocais. Uma bailarina sem treino não tem qualquer esperança de dançar "Giselle". Poderá distender os tendões. Se tentarem, eles mesmos estragarão o concerto, a cantata e "Giselle", porque se eventualmente estiverem prontos, só lembrarão de seus erros iniciais. Mas um jovem ator mergulhará num Hamlet impensadamente se tiver essa chance. Ele deve aprender que até que esteja pronto, estará prejudicando a si e ao papel da mesma maneira.
Mais do que em qualquer outra forma de arte, a falta de respeito pela arte de interpretar parece brotar do fato de que qualquer leigo se considera um crítico autorizado. Enquanto uma platéia de leigos não discute os movimentos de braço ou o estilo de tocar de um violinista, ou a palheta ou as pinceladas de um pintor, todos eles estarão prontos para dar fórmulas a um ator. Suas tias e os seus parentes vêm ao camarim para oferecer conselhos: "acho que você não chorou bastante"; "acho que sua Camille deveria usar mais rouge"; "você não acha que deveria soluçar mais?". E os atores os ouvem, e criam a noção criminosa de que não é preciso qualquer trabalho, conhecimento ou arte para se atuar.
Uns poucos gênios conseguiram abrir seus espaços nesse mundo do "nade ou afunde", mas eles eram gênios. Intuitivamente acharam uma forma de trabalhar que infelizmente, para eles próprios, seria difícil de definir. Mas mesmo que nem todos possamos ser tão dotados, podemos atingir um nível de interpretação mais desenvolvido do que uma pessoa que tenha vindo do antigo sistema "salve-se quem puder".
Uma da lições mais ricas que tive foi de um ator alemão chamado Albert Basserman. Eu trabalhei com ele como Hilde em "The master builder", de Ibsen. Ele já tinha mais e 80 anos, mas era tão "moderno" na sua concepção do personagem Solness e de suas técnicas quanto qualquer ator com quem eu tenha trabalhado ou assistido. Nos ensaios, adaptava seu jeito ao novo elenco (esse papel já fazia parte do seu repertório há 40 anos). Ele nos assistia, nos ouvia, ajustava-se a nós; entretanto, executava suas ações somente com pequena porção de sua energia cênica.
No primeiro ensaio com figurino, ele começou a atuar plenamente. Tinha uma realidade tão vibrante no ritmo das suas falas e do seu comportamento que eu me senti sumir com aquilo. Ficava esperando que ele chegasse ao final das suas intenções para que pudesse perceber a "minha vez". O resultado foi que, ou eu deixava um grande buraco no diálogo ou eu o cortava desesperadamente para evitar um novo buraco. Eu tinha esperado o trivial "minha vez, depois sua vez". No fim do primeiro ato fui para o seu camarim e disse: "Sr. Basserman, não tenho como me desculpar, mas nunca sei quando o senhor vai acabar!". E ele me olhou espantado e disse: "Eu nunca acabo! Nem você o deveria!"
As influências no meu crescimento, fora os artistas mestres que eu observava e com os quais eu trabalhava, foram muitas. Na casa de meus pais, os instintos criativos e a expressão eram considerados nobres e valiosos. O talento vinha acompanhado por sua devida responsabilidade. Eu fui educada a achar que o trabalho com concentração era uma coisa que trazia a sua própria alegria. Ambos, meus pais, viviam dessa forma e passaram-me esse exemplo. Eles também me mostraram que o amor pelo trabalho não depende do sucesso exterior.
Tive uma transição estranha do teatro amador para o profissional. A palavra "amador" originalmente era o "amante", ou alguém que buscava algo por amor. Agora é sinônimo de diletante; de ator não preparado, ou alguém que busca um hobby ou um passatempo. Quando eu era muito jovem, e mais tarde ainda jovem, era empegada no teatro; era uma amadora no sentido original da palavra. Eu buscava meu trabalho por amor. Depois, o fato de ser paga foi uma consequência desse amor. No mais, ser paga significava que eu estava sendo tratada com seriedade por esse meu amor pelo trabalho. Certamente não estava preparada. Minha força de atriz consistia na minha fé no faz-de-conta. Eu me fazia acreditar nos personagens que me deixavam atuar e nas circunstâncias de suas vidas dentro dos eventos da peça.
Inevitavelmente, no processo de transição e aprendizagem do amador para o profissional, perdi parte do meu amor e encontrei meu caminho adotando as atitudes e os métodos do "teatrão". Aprendi o que agora chamo de "truques", e ficava até orgulhosa de mim mesma. Percebi logo que se fizesse minha última entrada como Nina em "A gaivota" com toda minha atenção voltada para os porquês e finalmente na minha saída, sem dar qualquer atenção para a reação do público, haveria inquietação e lágrimas na platéia. Se, contudo, jogasse minha cabeça para trás bravamente assim que estivesse chegando à porta, receberia uma salva de palmas. Eu escolhi ficar com o truque que me daria os aplausos.
Poderia enumerar páginas de exemplos de como adquirir técnicas de "entradas perfeitas", "lágrimas e risos inventadas", "qualidades" líricas etc., tudo para produzir efeitos exteriores calculados. Achei que era uma genuína profissional que não tinha mais nada para aprender, a não ser fazer eficientemente outros papéis. Comecei a desgostar do teatro. Ir para o trabalho no teatro passou a ser uma obrigação, uma forma rotineira de arrecadar meu dinheiro e minhas críticas. Tinha perdido o amor no faz-de-conta. Tinha perdido a fé no personagem e no mundo no qual o personagem vivia.
Em 1947, trabalhei numa peça sob a direção de Harold Clurman. Ele abriu um mundo novo no teatro profissional para mim. Livrou-me dos truques. Ele não impôs nenhum gesto, nenhuma leitura de texto, nenhuma marcação de atores. No início, ficava completamente desnorteada porque por muitos anos tinha me acostumado a usar marcações exterio-específicas como material para construir a máscara do meu personagem, a máscara na qual eu me esconderia por toda a apresentação. O Sr. Clurman recusava-se a aceitar a máscara. Ele exigiu que eu estivesse no papel. Foi então que o meu amor pelo teatro foi lentamente sendo reaceso, sobretudo a partir do momento em que percebi que deveria renunciar a todas as formas preconcebidas e encontrar em mim mesma a essência do meu trabalho.
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Artigo extraído - e aqui um pouco reduzido - da revista Cadernos de Teatro nº 120/1989. O original foi publicado em "Respect for Acting", McMillan Pub. Co., 1972. Tradução de Gilbran Chalita.
quarta-feira, 28 de abril de 2010
terça-feira, 27 de abril de 2010
Atendendo a pedidos
Já o tinha colocado no blog, mas muitos seguidores talvez não tenham anotado meu e-mail.
Então, aí vai:
lionelfischer54@hotmail.com
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Desimpostando Shakespeare
Fernando Amaral
Montar Shakespeare é considerado uma audácia ou pretensão, o que atrapalha muito, e enche de medo até os que ousam falar no assunto. No entanto, como todo gênio, ele é simples, claro e direto. Pode ser entendido por crianças, analfabetos ou índios, sem muita reflexão, desde que traduzido em linguagem atual, própria para ser ouvida em teatro - sem a preocupação de "falar bonito", e sim com clareza. Escreveu há 400 anos, usou palavras que nem existem mais em todos os dicionários, o que não significa que em português também seja traduzido dessa forma, ou atores tenham de assumir posturas de quem está dizendo coisas que só os "eleitos" entendem.
O famoso monólogo "Ser nou não ser" já foi pensado por qualquer criança, e por isso tem seu valor de universalidade. É impossível não ser entendido por um analfabeto, se lhe for colocado na linguagem clara que Shakespeare sempre usou. No entanto, como o complicam! Ele mesmo escreveu pela boca de Hamlet, sobre o desprezo que sentia pelos impostados: "If you mouth it, as many of yours players do, I had as lief the town-crier spoke my lines". "To mouth" significa falar com afetação, e Hamlet diz aos atores que vieram representar no palácio, que se fizerem isso, ele prefere chamar o arauto da corte para dizer seu texto. Revela a seguir um profundo horror pelos pernósticos: "It offends me to the soul" (Isso me ofende na alma).
Em várias traduções, Marco Antônio diz que Cesar recusou a coroa de rei que lhe foi oferecida nos "Lupercais". Alguém no Brasil ou Portugal, sabe que diabo é Lupercais? É possível fazer teatro sem que o público entenda o que está ouvindo? "Lupercal" é a festa de todos os deuses ou do deus Pan, e só dicionários especiais trazem isso, mas o tradutor bota Lupercais, sabendo que o público não reclamará para não passar por ignorante. Até na Inglaterra, a maioria não sabe o que é Lupercal, mas em inglês não é possível mudar, pois isso seria deturpação do original. Mas em português, será que não se pode em certas passagens, traduzir "you" por "você"? Shakespeare ficaria chocado?
Detectei o seguinte absurdo num livro bem pomposo da Editora José Aguilar, lindamente encadernado, com letras douradas, papel de primeira, ilustrações etc; em "Ricardo II" havia uma profecia em que o herdeiro do Rei seria assassinado por alguém cujo nome começava com a letra G. Resolveram traduzir George, duque de Clarence, por "Jorge" com "J", sobre quem recaíam as suspeitas. Shakespeare tinha armado toda uma trama onde o real assassino era Ricardo, duque de Gloucester. Ricardo não começa com "G", mas seu título sim: Gloucester! O tradutor botou que a professia era com "J". A peça simplesmente perdeu o sentido.
Mas existem muitos exemplos como esse que acabam afugentando o público e realizadores. Vejamos a seguir uma cena de "Hamlet":
Ato III, cena II
Nesta cena o autor usa o personagem (Hamlet dando uma de diretor de cena) e através dele passa sua própria visão da arte de representar, como um "recado" aos atores, o que nos serve até hoje.
A pedido de Hamlet,uma trupe que era o "mambembe" da época, vai encenar uma peça escrita pelo próprio Hamlet, denunciando o assassinato de seu pai.
Hamlet - Digam o que está escrito, eu vos imploro. ("Speak the speach", poderia ser traduzido por "digam o discurso", mas seria confundido com os vários sentidos que tem a palavra "discurso". Refere-se ao conteúdo do texto. Cabe ao ator passar essa intenção. Se o autor se referisse apenas ao texto, teria escrito provavelmente: "Speak the lines".
Hamlet (continuando) - ...articulando com leveza, pois se falarem com afetação, prefiro chamar o arauto da corte para dizer meu texto. ("Town-crier", arauto da corte, que vemos muito em cinema, lendo mensagens, seria o antecessor do locutor de notícias que narra articuladamente, mas não "interpreta").
Hamlet (continuando) - ...Também não fiquem cortando o ar com as mãos; usem-nas com elegância, pois, mesmo numa tempestade ou turbilhão de paixões, é peciso adquirir uma sobriedade que lhes dê fluência. Ah, me ofende a alma, ouvir um camarada todo arrumadinho de peruca, estraçalhando uma paixão como se fosse um trapo, rachando os ouvidos da galera, que só faz barulho e arruaça. ("Galera" pode parecer um termo meio vulgar para Sjakespeare, mas "Groudlings" significa público de mau gosto. Talvez, e por que não, galera?)
Hamlet (continuando) - ...Eu mandaria açoitar esse sujeito por querer exagerar um deus da violência. ("Termagant", como está no original, é nome próprio desconhecido por nós, e não dá para traduzir. É um deus da mitologia árabe, de grande violência).
Hamlet (continuando) - ...por se fazer de mais tirano do que Herodes. Vos peço, evitem isso.
1º Ator - Eu garanto, senhor.
Hamlet - Também não sejam tímidos demais. Deixem-se guiar por sua própria discreção. Combinem ação com a palavra, e palavras com a ação. Lembro especialmente que não ultrapassem a simplicidade da natureza (No original está "modesty of nature", mas "modéstia da natureza" talvez não tenha o sentido do que o autor quis dizer, mas é preferível por sua simplicidade).
Outros exemplos podem ser estudados. Concluindo: talvez o que Shakespeare tenha tentado passar nesta cena, é que arte e cultura não são necessariamente pernósticas.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 123/1989.
Fernando Amaral
Montar Shakespeare é considerado uma audácia ou pretensão, o que atrapalha muito, e enche de medo até os que ousam falar no assunto. No entanto, como todo gênio, ele é simples, claro e direto. Pode ser entendido por crianças, analfabetos ou índios, sem muita reflexão, desde que traduzido em linguagem atual, própria para ser ouvida em teatro - sem a preocupação de "falar bonito", e sim com clareza. Escreveu há 400 anos, usou palavras que nem existem mais em todos os dicionários, o que não significa que em português também seja traduzido dessa forma, ou atores tenham de assumir posturas de quem está dizendo coisas que só os "eleitos" entendem.
O famoso monólogo "Ser nou não ser" já foi pensado por qualquer criança, e por isso tem seu valor de universalidade. É impossível não ser entendido por um analfabeto, se lhe for colocado na linguagem clara que Shakespeare sempre usou. No entanto, como o complicam! Ele mesmo escreveu pela boca de Hamlet, sobre o desprezo que sentia pelos impostados: "If you mouth it, as many of yours players do, I had as lief the town-crier spoke my lines". "To mouth" significa falar com afetação, e Hamlet diz aos atores que vieram representar no palácio, que se fizerem isso, ele prefere chamar o arauto da corte para dizer seu texto. Revela a seguir um profundo horror pelos pernósticos: "It offends me to the soul" (Isso me ofende na alma).
Em várias traduções, Marco Antônio diz que Cesar recusou a coroa de rei que lhe foi oferecida nos "Lupercais". Alguém no Brasil ou Portugal, sabe que diabo é Lupercais? É possível fazer teatro sem que o público entenda o que está ouvindo? "Lupercal" é a festa de todos os deuses ou do deus Pan, e só dicionários especiais trazem isso, mas o tradutor bota Lupercais, sabendo que o público não reclamará para não passar por ignorante. Até na Inglaterra, a maioria não sabe o que é Lupercal, mas em inglês não é possível mudar, pois isso seria deturpação do original. Mas em português, será que não se pode em certas passagens, traduzir "you" por "você"? Shakespeare ficaria chocado?
Detectei o seguinte absurdo num livro bem pomposo da Editora José Aguilar, lindamente encadernado, com letras douradas, papel de primeira, ilustrações etc; em "Ricardo II" havia uma profecia em que o herdeiro do Rei seria assassinado por alguém cujo nome começava com a letra G. Resolveram traduzir George, duque de Clarence, por "Jorge" com "J", sobre quem recaíam as suspeitas. Shakespeare tinha armado toda uma trama onde o real assassino era Ricardo, duque de Gloucester. Ricardo não começa com "G", mas seu título sim: Gloucester! O tradutor botou que a professia era com "J". A peça simplesmente perdeu o sentido.
Mas existem muitos exemplos como esse que acabam afugentando o público e realizadores. Vejamos a seguir uma cena de "Hamlet":
Ato III, cena II
Nesta cena o autor usa o personagem (Hamlet dando uma de diretor de cena) e através dele passa sua própria visão da arte de representar, como um "recado" aos atores, o que nos serve até hoje.
A pedido de Hamlet,uma trupe que era o "mambembe" da época, vai encenar uma peça escrita pelo próprio Hamlet, denunciando o assassinato de seu pai.
Hamlet - Digam o que está escrito, eu vos imploro. ("Speak the speach", poderia ser traduzido por "digam o discurso", mas seria confundido com os vários sentidos que tem a palavra "discurso". Refere-se ao conteúdo do texto. Cabe ao ator passar essa intenção. Se o autor se referisse apenas ao texto, teria escrito provavelmente: "Speak the lines".
Hamlet (continuando) - ...articulando com leveza, pois se falarem com afetação, prefiro chamar o arauto da corte para dizer meu texto. ("Town-crier", arauto da corte, que vemos muito em cinema, lendo mensagens, seria o antecessor do locutor de notícias que narra articuladamente, mas não "interpreta").
Hamlet (continuando) - ...Também não fiquem cortando o ar com as mãos; usem-nas com elegância, pois, mesmo numa tempestade ou turbilhão de paixões, é peciso adquirir uma sobriedade que lhes dê fluência. Ah, me ofende a alma, ouvir um camarada todo arrumadinho de peruca, estraçalhando uma paixão como se fosse um trapo, rachando os ouvidos da galera, que só faz barulho e arruaça. ("Galera" pode parecer um termo meio vulgar para Sjakespeare, mas "Groudlings" significa público de mau gosto. Talvez, e por que não, galera?)
Hamlet (continuando) - ...Eu mandaria açoitar esse sujeito por querer exagerar um deus da violência. ("Termagant", como está no original, é nome próprio desconhecido por nós, e não dá para traduzir. É um deus da mitologia árabe, de grande violência).
Hamlet (continuando) - ...por se fazer de mais tirano do que Herodes. Vos peço, evitem isso.
1º Ator - Eu garanto, senhor.
Hamlet - Também não sejam tímidos demais. Deixem-se guiar por sua própria discreção. Combinem ação com a palavra, e palavras com a ação. Lembro especialmente que não ultrapassem a simplicidade da natureza (No original está "modesty of nature", mas "modéstia da natureza" talvez não tenha o sentido do que o autor quis dizer, mas é preferível por sua simplicidade).
Outros exemplos podem ser estudados. Concluindo: talvez o que Shakespeare tenha tentado passar nesta cena, é que arte e cultura não são necessariamente pernósticas.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 123/1989.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
O Diretor e o Ator
H. C. Heffner
O diretor, principalmente em um teatro não-comercial, embora interessado em todos que tenham uma parcela de responsabilidade na produção de um espetáculo, dispende a maior parte de tempo e energia com os atores. O bom diretor é um professor da arte de representar e um preceptor dos atores. Portanto, um diretor deve reconhecer a arte, as técnicas de representação e o modo de transmitir estas informações de modo a obter o máximo rendimento dos atores.
No mundo teatral o diretor deve ajudar o ator na criação do personagem e na aquisição e domínio das técnicas de representação, através das quais o personagem é formado. Já que considerável parte do tempo e da energia de um diretor é dedicada ao ensino da arte, à técnica de representação e ao monitoramento dos atores dentro destas técnicas, o assunto deverá ser explorado em todos os aspectos da direção.
Talvez não seja necessário comentar que esse tipo de abordagem não implica numa discussão completa sobre a arte de representar, mas os problemas básicos provenientes das relações de um diretor ao trabalhar com os atores devem ser resumidos. O trabalho do diretor naturalmente irá variar de ator para ator e dependerá do treinamento e da experiência do ator, do seu papel no espetáculo, da sua personalidade e atitudes. Um professor não conseguirá obter bons resultados utilizando o mesmo método com todos os alunos.
A arte e a técnica de representar é complexa e exige, além de aptidão, anos de treinamento e experiência. No curto período de ensaios, o diretor não pode esperar ensinar toda arte para uma pessoa inexperiente. Ele deve, portanto, concentrar-se em cada ator e nas técnicas essenciais para o papel e para superar as falhas de desempenho.
No teatro moderno realístico as técnicas de representação têm sido quase que suplantadas e descartadas para serem substituídas por um certo tipo de exibcionismo. Durante a distribuição dos papéis em peças e filmes, procura-se um indivíduo que possua exatamente o físico, a expressão facial e a personalidade adequada para cada papel; tão logo seja encontrado, simplesmente é treinado para apresentar suas próprias peculiaridades e excentricidades.
Se o que se quer é um gangster durão, procura-se alguém com traços e características semelhantes as de Humphrey Bogart. Se o que se quer é um homem idoso com modos educados e refinados, tal tipo de pessoa será encontrada. Às vezes, estas pessoas, que se adequam perfeitamente a um único papel devido a sua aparência e temperamento, não tiveram nenhum tipo de treinamento ou experiência anterior na arte de representar. Se obtêm sucesso neste tipo de papel, provavelmente continuarão a representá-lo em sucessivos espetáculos ou filmes.
Eles estão, em outras palavras, constantemente representando eles mesmos e seriam um total fracasso caso tivessem que interpretar um personagem de uma peça de Molière ou de Shakespeare. Este tipo de distribuição de papéis e representação, pode ser às vezes, e em certas peças o é, extremamente convincente e bem sucedida. Todo diretor, ao procurar atores para um espetáculo, emprega até certo ponto tais procedimentos para a distribuição dos papéis ao elenco.
Entretanto, tais procedimentos não produzirão um ator versátil com total domínio da arte, pois através de tal tipo de distribuição é difícil, senão impossível, desenvolver uma representação mais abrangente. Um ator que só sabe exibir suas características pessoais não conseguirá se adaptar aos diversos estilos de caracterização do drama grego, de Shakespeare, Molière e Ibsen.
Por outro lado, o ator-artista com o seu total treinamento e através do domínio da técnica está equipado para, dentro dos limites de variação, interpretar diversos personagens em muitos estilos diferentes. Até mesmo dentro de um restrito âmbito de realismo, a técnica é importante e essencial para uma boa representação.
Para obter sucesso em cada papel, o ator deve aprender os recursos e os métodos de sua profissão. A grande quantidade de pequenos recursos e técnicas promovem a certeza, a facilidade e o êxito na interpretação de um papel, e só são adquiridos através de um treinamento constante e da experiência. Não há uma fórmula-chave para a arte de ser ator e nenhum método que garanta o sucesso.
Além das técnicas de formação, o grande ator deve adestrar a imaginação, se ele já não a possui em boa dose; e se a possui, deve constantemente desenvolvê-la. A imaginação do ator é, antes de tudo, o dom de penetrar intuitivamente nas personalidades de muitos indivíduos diferentes; a técnica do ator se revela através dos recursos, dos meios pelos quais ele seleciona e aperfeiçoa o que é significativo para compor intuitivamente a personalidade imaginada para o papel. Junto com esta imaginação intuitiva é encontrado no grande ator um senso de estilo de caracterização que consegue discernir as diferenças, por exemplo, entre o Duque de Orsino em "Noite de reis" e Alceste em "O misantropo".
A arte de representar, tal como é discutida aqui, pode ser definida como a arte de compor um personagem através dos recursos vocais e visuais, a fim de convencer e sensibilizar a platéia. Os dois instrumentos da arte do ator no palco são sua voz e corpo. No cinema, a arte de representar possui um outro instrumento, a câmera, a qual de certo modo serve para diferenciar da representação no teatro; e as mesmas diferenças se aplicam, embora um tanto diferentemente, na representação na televisão.
Então, obviamente, na representação teatral, há duas categorias de técnicas, voz e corpo, as quais o ator deve dominar. Do mesmo modo que a câmera é um fator determinante na representação em um filme, o teatro e a platéia são determinantes no desempenho de um ator experiente. Este ator não representa simplesmente um papel; ele também "eleva" a sua interpretação às condições de um teatro específico. Um ator que interpreta um personagem dentro de um mesmo teatro da Broadway durante toda a temporada da peça ou que sempre atua em um mesmo teatro pode não perceber o nível para o qual a interpretação de um papel deve ser "elevado".
Se, entretanto, ele participa de uma turnê, representando em teatros diferentes durante semanas consecutivas, logo perceberá a influência do tamanho do teatro sobre a sua técnica. As intrínsecas e sutis técnicas convenientes para a projeção de um papel em um teatro com um palco central pequeno seriam totalmente perdidas em um teatro grande com mais de três mil lugares.
Um dos fatores que mantém um ator experiente sempre motivado em suas constantes interpretações, noite após noite, durante uma longa temporada de uma peça, é o conhecimento, a satisfação para com o seu papel e o prazer de atuar para uma platéia de teatro. Neste aspecto, ele pode ser comparado a um pescador experiente tentando fisgar uma truta grande com um caniço e um samburá. Um pescador sabe que não se pode segurar exatamente do mesmo modo nem dois peixes, nem dois potes d'água. Alguns são fáceis, enquanto outros exigem toda destreza, atenção e inteligência.
Do mesmo modo que, sem deixar transparecer, o ator observa as platéias, orienta as suas reações e as utiliza para construir outros efeitos. Este ator "sente" a platéia do mesmo modo que um orador público experiente sente a sua platéia. Esta representação para uma platéia e o sentir de suas reações são um grande estímulo para o ator em uma temporada. A falta desta capacidade é um dos fatores que diferencia o amador do profissional. O ator iniciante possui tantas dificuldades na simples interpretação de seu papel e no trabalho de palco que ele pode se esquecer completamente da existência da platéia, se o diretor não o relembra constantemente de que ele está representando para uma.
DOMÍNIO DA CARACTERIZAÇÃO
A primeira tarefa do ator é conhecer totalmente o personagem que ele irá representar e fazer com que este personagem pareça ser uma pessoa real. Para fazer isto ele deve criar mentalmente uma imagem do tipo de pessoa que está retratando, e identificar-se com esta pessoa. Os atores variam muito nos métodos utilizados para realizar esta tarefa. Alguns são altamente intuitivos e trabalham melhor através de sugestões do que por meio de uma análise direta; outros são mais intelectualizados: precisam primeiro analisar detalhadamente o papel que representarão antes de compô-lo.
O diretor pode ser útil para cada um destes tipos de ator ao esclarecer o máximo possível o tipo de personagem exigido para a ação na peça. Ele pode indicar os traços específicos com os quais o dramaturgo contemplou o personagem, tornando as suas ações verossímeis. À medida que o diretor conhece o ator, pode sugerir atributos subsidiários e maneirismos que possam melhorar a caracterização e ajudar a torná-los reais no palco. Entretanto, tem que ter o cuidado de não impor uma interpretação do papel rígida demais, pois deve encorajar o ator a desenvolver o personagem à medida que o vai incorporando.
Os traços externos de um personagem - idade, altura, postura, andar, vestir e maneirismos gestuais, e assim por diante - são relativamente fáceis de serem analisados, e não são difíceis de serem dominados. São os aspectos internos - atitude, emoção, pensamento e decisões que são mais difíceis de serem discernidos e transmitidos. Um bom conselho para se penetrar no interior de um personagem, por assim dizer, é, como já sugerimos, perguntar o que ele quer: Quais são os seus desejos? O que ele pretende? Qual é o desejo ou força que o impulsiona? Às vezes, este desejo ou força impulsora é facilmente verbalizável, mas é difícil identificá-la. O exemplo de "Fedra", de Racine, impulsionada por uma paixão proibida pelo seu enteado, ilustra bem este aspecto. Seu desejo proibido, como a ambição de Macbeth, a leva a seu terrível conflito interno.
Em certos casos, especialmente em personagens secundários,o desejo ou força propulsora não é o ponto central da caracterização. Às vezes, ajuda o ator imaginar uma força interna que o conduz para tal papel. É claro que esta força interna concedida ao personagem deve ser compatível com o papel na peça.
Outro recurso para dominar e penetrar em um personagem é o de construir ou inventar uma biografia para o mesmo. O diretor criativo ou o ator podem facilmente construir um esboço adequado ao passado de qualquer personagem, embora este passado apareça muito pouco ou nem mesmo apareça na peça. Sabemos que certos dramaturgos, inclusive Ibsen, trabalharam desta maneira ao desenvolverem seus personagens.
Ao delinear este esboço em cima dos seus conhecimentos, personagens de livros e romances, e através da livre imaginação, o ator pode cercar o seu papel com uma grande quantidade de detalhes que servem para conceder a este personagem estatura, peso e verossimilhança. Este recurso deve ser incentivado desde que os detalhes da biografia inventada estejam em total conformidade com o papel na peça. O objetivo é o de fazer com que o personagem da peça adquira vida no palco em toda a sua plenitude.
Outro recurso que auxilia o ator em seu trabalho de composição é determinar e identificar-se com as atitudes do personagem e com sua reações para com os outros personagens da peça. Com alguns ele pode ser totalmente indiferente; com outros pode ser abertamente ou secretamente hostil; enquanto que para com outros, ser em diversos níveis amigável e solidário. O ator deve procurar avaliar estes relacionamentos muito embora, às vezes, seja difícil declarar explicitamente o simples motivo de uma pessoa reagir de um ccerto modo para com outra.
Estas reações de um ser humano para com outro são material básico para a construção do drama; daí o ator ter que compreender, sentir e utilizar tais reações. Ele tem à sua disposição uma variedade de recursos - tom de voz, escolha das palavras, o modo que deve olhar outra pessoa, o balançar dos ombros, o gesto das mãos, a postura do corpo - através dos quais pode transmitir ao público a sua atitude para com outro personagem; mas primeiro ele deve "sentir" tal atitude.
Neste processo de reação para com os outros, o ator deve encontrar em seu papel um tipo de auto-justificação. Muito embora ele possa estar representando um completo vilão, do tipo Iago, deve encarar as atitudes e reações com os olhos de Iago. Não deve ver o Iago através dos olhos de um leitor objetivo da peça. Deve sim procurar sentir o ódio de Iago por Othelo e o prazer que sentia ao aprontar-lhe uma cilada. Representar Iago sem esta identificação e auto-justificação é apenas representá-lo externamente. Embora este retrato esteja tecnicamente perfeito, lhe faltará grandeza e convicção.
Nisto, como em outros recursos utilizados para dominar o personagem, o diretor pode ser de grande ajuda, especialmente para o ator inexperiente. Durante os ensaios ele pode repetidamente enfatizar as reações dos atores entre si. Outro recurso no início da criação do personagem é estudar o aspecto exterior do personagem. Geralmente ajuda o ator a penetrar no personagem - praticar o andar, tipos de postura, gestos, voz e o modo de vestir do personagem.
Ele poderá começar a captar a essência do papel através da postura, do modo de ficar em pé, de falar, tal como o personagem faria na vida real. Mas o ator não deve apenas se satisfazer com estes aspectos exteriores do personagem. Ele deve fazer com que estes aspectos exteriores o conduzam à natureza interior do personagem.
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Artigo extraído - e aqui um pouco reduzido - da revista Cadernos de Teatro nº 121/1989. O original está publicado em "Modern Theatre Practice", 6ºth ed. 1973, N.Y. Appleton Century. Tradução de Verônica E. Moura. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC/Rio.
H. C. Heffner
O diretor, principalmente em um teatro não-comercial, embora interessado em todos que tenham uma parcela de responsabilidade na produção de um espetáculo, dispende a maior parte de tempo e energia com os atores. O bom diretor é um professor da arte de representar e um preceptor dos atores. Portanto, um diretor deve reconhecer a arte, as técnicas de representação e o modo de transmitir estas informações de modo a obter o máximo rendimento dos atores.
No mundo teatral o diretor deve ajudar o ator na criação do personagem e na aquisição e domínio das técnicas de representação, através das quais o personagem é formado. Já que considerável parte do tempo e da energia de um diretor é dedicada ao ensino da arte, à técnica de representação e ao monitoramento dos atores dentro destas técnicas, o assunto deverá ser explorado em todos os aspectos da direção.
Talvez não seja necessário comentar que esse tipo de abordagem não implica numa discussão completa sobre a arte de representar, mas os problemas básicos provenientes das relações de um diretor ao trabalhar com os atores devem ser resumidos. O trabalho do diretor naturalmente irá variar de ator para ator e dependerá do treinamento e da experiência do ator, do seu papel no espetáculo, da sua personalidade e atitudes. Um professor não conseguirá obter bons resultados utilizando o mesmo método com todos os alunos.
A arte e a técnica de representar é complexa e exige, além de aptidão, anos de treinamento e experiência. No curto período de ensaios, o diretor não pode esperar ensinar toda arte para uma pessoa inexperiente. Ele deve, portanto, concentrar-se em cada ator e nas técnicas essenciais para o papel e para superar as falhas de desempenho.
No teatro moderno realístico as técnicas de representação têm sido quase que suplantadas e descartadas para serem substituídas por um certo tipo de exibcionismo. Durante a distribuição dos papéis em peças e filmes, procura-se um indivíduo que possua exatamente o físico, a expressão facial e a personalidade adequada para cada papel; tão logo seja encontrado, simplesmente é treinado para apresentar suas próprias peculiaridades e excentricidades.
Se o que se quer é um gangster durão, procura-se alguém com traços e características semelhantes as de Humphrey Bogart. Se o que se quer é um homem idoso com modos educados e refinados, tal tipo de pessoa será encontrada. Às vezes, estas pessoas, que se adequam perfeitamente a um único papel devido a sua aparência e temperamento, não tiveram nenhum tipo de treinamento ou experiência anterior na arte de representar. Se obtêm sucesso neste tipo de papel, provavelmente continuarão a representá-lo em sucessivos espetáculos ou filmes.
Eles estão, em outras palavras, constantemente representando eles mesmos e seriam um total fracasso caso tivessem que interpretar um personagem de uma peça de Molière ou de Shakespeare. Este tipo de distribuição de papéis e representação, pode ser às vezes, e em certas peças o é, extremamente convincente e bem sucedida. Todo diretor, ao procurar atores para um espetáculo, emprega até certo ponto tais procedimentos para a distribuição dos papéis ao elenco.
Entretanto, tais procedimentos não produzirão um ator versátil com total domínio da arte, pois através de tal tipo de distribuição é difícil, senão impossível, desenvolver uma representação mais abrangente. Um ator que só sabe exibir suas características pessoais não conseguirá se adaptar aos diversos estilos de caracterização do drama grego, de Shakespeare, Molière e Ibsen.
Por outro lado, o ator-artista com o seu total treinamento e através do domínio da técnica está equipado para, dentro dos limites de variação, interpretar diversos personagens em muitos estilos diferentes. Até mesmo dentro de um restrito âmbito de realismo, a técnica é importante e essencial para uma boa representação.
Para obter sucesso em cada papel, o ator deve aprender os recursos e os métodos de sua profissão. A grande quantidade de pequenos recursos e técnicas promovem a certeza, a facilidade e o êxito na interpretação de um papel, e só são adquiridos através de um treinamento constante e da experiência. Não há uma fórmula-chave para a arte de ser ator e nenhum método que garanta o sucesso.
Além das técnicas de formação, o grande ator deve adestrar a imaginação, se ele já não a possui em boa dose; e se a possui, deve constantemente desenvolvê-la. A imaginação do ator é, antes de tudo, o dom de penetrar intuitivamente nas personalidades de muitos indivíduos diferentes; a técnica do ator se revela através dos recursos, dos meios pelos quais ele seleciona e aperfeiçoa o que é significativo para compor intuitivamente a personalidade imaginada para o papel. Junto com esta imaginação intuitiva é encontrado no grande ator um senso de estilo de caracterização que consegue discernir as diferenças, por exemplo, entre o Duque de Orsino em "Noite de reis" e Alceste em "O misantropo".
A arte de representar, tal como é discutida aqui, pode ser definida como a arte de compor um personagem através dos recursos vocais e visuais, a fim de convencer e sensibilizar a platéia. Os dois instrumentos da arte do ator no palco são sua voz e corpo. No cinema, a arte de representar possui um outro instrumento, a câmera, a qual de certo modo serve para diferenciar da representação no teatro; e as mesmas diferenças se aplicam, embora um tanto diferentemente, na representação na televisão.
Então, obviamente, na representação teatral, há duas categorias de técnicas, voz e corpo, as quais o ator deve dominar. Do mesmo modo que a câmera é um fator determinante na representação em um filme, o teatro e a platéia são determinantes no desempenho de um ator experiente. Este ator não representa simplesmente um papel; ele também "eleva" a sua interpretação às condições de um teatro específico. Um ator que interpreta um personagem dentro de um mesmo teatro da Broadway durante toda a temporada da peça ou que sempre atua em um mesmo teatro pode não perceber o nível para o qual a interpretação de um papel deve ser "elevado".
Se, entretanto, ele participa de uma turnê, representando em teatros diferentes durante semanas consecutivas, logo perceberá a influência do tamanho do teatro sobre a sua técnica. As intrínsecas e sutis técnicas convenientes para a projeção de um papel em um teatro com um palco central pequeno seriam totalmente perdidas em um teatro grande com mais de três mil lugares.
Um dos fatores que mantém um ator experiente sempre motivado em suas constantes interpretações, noite após noite, durante uma longa temporada de uma peça, é o conhecimento, a satisfação para com o seu papel e o prazer de atuar para uma platéia de teatro. Neste aspecto, ele pode ser comparado a um pescador experiente tentando fisgar uma truta grande com um caniço e um samburá. Um pescador sabe que não se pode segurar exatamente do mesmo modo nem dois peixes, nem dois potes d'água. Alguns são fáceis, enquanto outros exigem toda destreza, atenção e inteligência.
Do mesmo modo que, sem deixar transparecer, o ator observa as platéias, orienta as suas reações e as utiliza para construir outros efeitos. Este ator "sente" a platéia do mesmo modo que um orador público experiente sente a sua platéia. Esta representação para uma platéia e o sentir de suas reações são um grande estímulo para o ator em uma temporada. A falta desta capacidade é um dos fatores que diferencia o amador do profissional. O ator iniciante possui tantas dificuldades na simples interpretação de seu papel e no trabalho de palco que ele pode se esquecer completamente da existência da platéia, se o diretor não o relembra constantemente de que ele está representando para uma.
DOMÍNIO DA CARACTERIZAÇÃO
A primeira tarefa do ator é conhecer totalmente o personagem que ele irá representar e fazer com que este personagem pareça ser uma pessoa real. Para fazer isto ele deve criar mentalmente uma imagem do tipo de pessoa que está retratando, e identificar-se com esta pessoa. Os atores variam muito nos métodos utilizados para realizar esta tarefa. Alguns são altamente intuitivos e trabalham melhor através de sugestões do que por meio de uma análise direta; outros são mais intelectualizados: precisam primeiro analisar detalhadamente o papel que representarão antes de compô-lo.
O diretor pode ser útil para cada um destes tipos de ator ao esclarecer o máximo possível o tipo de personagem exigido para a ação na peça. Ele pode indicar os traços específicos com os quais o dramaturgo contemplou o personagem, tornando as suas ações verossímeis. À medida que o diretor conhece o ator, pode sugerir atributos subsidiários e maneirismos que possam melhorar a caracterização e ajudar a torná-los reais no palco. Entretanto, tem que ter o cuidado de não impor uma interpretação do papel rígida demais, pois deve encorajar o ator a desenvolver o personagem à medida que o vai incorporando.
Os traços externos de um personagem - idade, altura, postura, andar, vestir e maneirismos gestuais, e assim por diante - são relativamente fáceis de serem analisados, e não são difíceis de serem dominados. São os aspectos internos - atitude, emoção, pensamento e decisões que são mais difíceis de serem discernidos e transmitidos. Um bom conselho para se penetrar no interior de um personagem, por assim dizer, é, como já sugerimos, perguntar o que ele quer: Quais são os seus desejos? O que ele pretende? Qual é o desejo ou força que o impulsiona? Às vezes, este desejo ou força impulsora é facilmente verbalizável, mas é difícil identificá-la. O exemplo de "Fedra", de Racine, impulsionada por uma paixão proibida pelo seu enteado, ilustra bem este aspecto. Seu desejo proibido, como a ambição de Macbeth, a leva a seu terrível conflito interno.
Em certos casos, especialmente em personagens secundários,o desejo ou força propulsora não é o ponto central da caracterização. Às vezes, ajuda o ator imaginar uma força interna que o conduz para tal papel. É claro que esta força interna concedida ao personagem deve ser compatível com o papel na peça.
Outro recurso para dominar e penetrar em um personagem é o de construir ou inventar uma biografia para o mesmo. O diretor criativo ou o ator podem facilmente construir um esboço adequado ao passado de qualquer personagem, embora este passado apareça muito pouco ou nem mesmo apareça na peça. Sabemos que certos dramaturgos, inclusive Ibsen, trabalharam desta maneira ao desenvolverem seus personagens.
Ao delinear este esboço em cima dos seus conhecimentos, personagens de livros e romances, e através da livre imaginação, o ator pode cercar o seu papel com uma grande quantidade de detalhes que servem para conceder a este personagem estatura, peso e verossimilhança. Este recurso deve ser incentivado desde que os detalhes da biografia inventada estejam em total conformidade com o papel na peça. O objetivo é o de fazer com que o personagem da peça adquira vida no palco em toda a sua plenitude.
Outro recurso que auxilia o ator em seu trabalho de composição é determinar e identificar-se com as atitudes do personagem e com sua reações para com os outros personagens da peça. Com alguns ele pode ser totalmente indiferente; com outros pode ser abertamente ou secretamente hostil; enquanto que para com outros, ser em diversos níveis amigável e solidário. O ator deve procurar avaliar estes relacionamentos muito embora, às vezes, seja difícil declarar explicitamente o simples motivo de uma pessoa reagir de um ccerto modo para com outra.
Estas reações de um ser humano para com outro são material básico para a construção do drama; daí o ator ter que compreender, sentir e utilizar tais reações. Ele tem à sua disposição uma variedade de recursos - tom de voz, escolha das palavras, o modo que deve olhar outra pessoa, o balançar dos ombros, o gesto das mãos, a postura do corpo - através dos quais pode transmitir ao público a sua atitude para com outro personagem; mas primeiro ele deve "sentir" tal atitude.
Neste processo de reação para com os outros, o ator deve encontrar em seu papel um tipo de auto-justificação. Muito embora ele possa estar representando um completo vilão, do tipo Iago, deve encarar as atitudes e reações com os olhos de Iago. Não deve ver o Iago através dos olhos de um leitor objetivo da peça. Deve sim procurar sentir o ódio de Iago por Othelo e o prazer que sentia ao aprontar-lhe uma cilada. Representar Iago sem esta identificação e auto-justificação é apenas representá-lo externamente. Embora este retrato esteja tecnicamente perfeito, lhe faltará grandeza e convicção.
Nisto, como em outros recursos utilizados para dominar o personagem, o diretor pode ser de grande ajuda, especialmente para o ator inexperiente. Durante os ensaios ele pode repetidamente enfatizar as reações dos atores entre si. Outro recurso no início da criação do personagem é estudar o aspecto exterior do personagem. Geralmente ajuda o ator a penetrar no personagem - praticar o andar, tipos de postura, gestos, voz e o modo de vestir do personagem.
Ele poderá começar a captar a essência do papel através da postura, do modo de ficar em pé, de falar, tal como o personagem faria na vida real. Mas o ator não deve apenas se satisfazer com estes aspectos exteriores do personagem. Ele deve fazer com que estes aspectos exteriores o conduzam à natureza interior do personagem.
________________________________
Artigo extraído - e aqui um pouco reduzido - da revista Cadernos de Teatro nº 121/1989. O original está publicado em "Modern Theatre Practice", 6ºth ed. 1973, N.Y. Appleton Century. Tradução de Verônica E. Moura. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC/Rio.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Dona Otilia e outras histórias"
.............................................
Montagem imperdível no Sesc
Lionel Fischer
Após se apresentar no Festival de Teatro de Curitiba desde ano, "Dona Otilia e outras histórias", de autoria de Vera Karan (1959-2003), vem cumprindo excelente temporada no Espaço Sesc. E nada mais justo, dada a excelência dos textos (exceção feita a um deles, bem inferior aos outros), da direção, da performance dos atores e do trabalho da reduzida equipe técnica.
Composto de três textos curtos - "Dona Otilia lamenta muito", "A florista e o visitante" e "Dá licença, por favor? - intercalados pelo monólogo de uma atriz ("Será que é o contráriio a vida da atriz") que, em seu camarim, tece considerações sobre a vida e o teatro, "Dona Otilia e outras histórias" chega à cena com direção de Gilberto Grawronski e elenco formado por Guida Vianna, Gilberto Gawronski, Sávio Moll e Letícia Isnard.
Em "Dona Otilia lamenta muito" tudo gira em torno de um casal que está comemorando 10 anos de casamento. Sem saber que o marido decidira deixá-la, a mulher prepara um jantar surpresa, para o qual convidou alguns amigos comuns. E por mais que o homem tente contar a novidade, esta só vem à tona perto do final, pois Otilia praticamente não o deixa falar. E mesmo quando é informada do desejo do marido de ir embora, não admite que ele o faça naquele momento, o que constituiria, segundo ela, uma imperdoável descortesia para com os convidados. O final, totalmente inesperado e hilário, me abstenho de revelar, pois não seria justo para com os espectadores que ainda não assistiram o espetáculo. Seja como for, trata-se de uma pequena jóia dramatúrgica, repleta de irresistível humor crítico.
O segundo texto, "A florista e o visitante", é o tal que considero bem inferior aos outros. Mas não porque seja inteiramente desprovido de qualidades, já que promove o encontro de duas personalidades bastante curiosas, que "ameaçam" todo o tempo chegarem a um entendimento que talvez pudesse conferir um novo rumo às suas vidas. Ocorre, porém, que o texto é muito longo, e em função deste detalhe seu potencial em muito se minimiza.
Já o terceiro, assim como o inicial, é absolutamente maravilhoso. Um homem chega a um teatro e quando se dirige à sua poltrona, vê nela a bolsa de uma senhora. E então, extremamente educado, pergunta a ela se o lugar "está ocupado". É óbvio que não, pois uma bolsa, ao menos em princípio, não assiste a um espetáculo. Trata-se, apenas, de uma maneira gentil de sugerir que aquele assento é o dele, estando implícita a retirada, pela dama em questão, da sua bolsa. Mas aí começa uma discussão que, crescendo pouco a pouco, atinge as raias do mais completo absurdo. Sem dúvida, uma obra-prima de humor, calcado na intolerância e na incapacidade dos personagens de se fazerem entender, graças à intempestiva e desvairada senhora.
Quanto aos monólogos da atriz, bem realizados por Letícia Isnard, estes explicitam, sempre de forma bem humorada e crítica, uma série de dúvidas e inquietações que fazem parte da ansiedade diária de todos os profissionais que se dedicam ao teatro, cabendo registrar que Letícia, logo no início do espetáculo, realiza, displicentemente, proezas corporais que - vejo-me obrigado a confessar - quase provocam em mim um colapso total, fruto de brutal inveja.
No que diz respeito ao espetáculo, Gilberto Gawronski impõe à cena uma dinâmica despojada e simples, sabiamente isenta de desnecessárias firulas formais e totalmente voltada para as relações estabelecidas entre os personagens. E estes são interpretados de forma irrepreensível por todo o elenco. A começar por Guida Vianna.
Protagonizando a primeira e a última história, a atriz demonstra uma vez mais seu enorme talento, aqui voltado para a comédia - mas Guida é uma atriz capaz de transitar, com o mesmo brilho, por todos os gêneros. E seu mérito reside, entre outras coisas, em sua capacidade de articular com perfeita clareza o texto, em sua notável noção de ritmo e na inteligência de suas escolhas. Trata-se de uma profissional exemplar, sem dúvida uma das melhores intérpretes do país.
Sávio Moll, parceiro de Guida na primeira história, convence plenamente na pele do coitado que, assolado pela avalanche de palavras da esposa e por seu bizarro raciocínio, só no final, como já foi dito, consegue verbalizar seu desejo. E o mesmo se dá no último quadro, sendo que aqui o ator tem maiores oportunidades de trabalhar, na medida certa, o progressivo descontrole do personagem. Gilberto Gawronski e Letícia Isnard também exibem ótimo desempenho na segunda história, ainda que lutando - ao menos em minha opinião - contra a excessiva duração do texto.
Com relação à equipe técnica, creio que a cenografia e figurinos (simples e eficientes) tenham ficado a cargo do grupo, cabendo destacar a excelente luz de Tomás Ribas e a apropriada trilha sonora criada pelo diretor.
DONA OTILIA E OUTRAS HISTÓRIAS - Textos de Vera Karan. Direção de Gilberto Gawronski. Com Guida Vianna, Gilberto Gawronski, Sávio Moll e Letícia Isnard. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
"Dona Otilia e outras histórias"
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Montagem imperdível no Sesc
Lionel Fischer
Após se apresentar no Festival de Teatro de Curitiba desde ano, "Dona Otilia e outras histórias", de autoria de Vera Karan (1959-2003), vem cumprindo excelente temporada no Espaço Sesc. E nada mais justo, dada a excelência dos textos (exceção feita a um deles, bem inferior aos outros), da direção, da performance dos atores e do trabalho da reduzida equipe técnica.
Composto de três textos curtos - "Dona Otilia lamenta muito", "A florista e o visitante" e "Dá licença, por favor? - intercalados pelo monólogo de uma atriz ("Será que é o contráriio a vida da atriz") que, em seu camarim, tece considerações sobre a vida e o teatro, "Dona Otilia e outras histórias" chega à cena com direção de Gilberto Grawronski e elenco formado por Guida Vianna, Gilberto Gawronski, Sávio Moll e Letícia Isnard.
Em "Dona Otilia lamenta muito" tudo gira em torno de um casal que está comemorando 10 anos de casamento. Sem saber que o marido decidira deixá-la, a mulher prepara um jantar surpresa, para o qual convidou alguns amigos comuns. E por mais que o homem tente contar a novidade, esta só vem à tona perto do final, pois Otilia praticamente não o deixa falar. E mesmo quando é informada do desejo do marido de ir embora, não admite que ele o faça naquele momento, o que constituiria, segundo ela, uma imperdoável descortesia para com os convidados. O final, totalmente inesperado e hilário, me abstenho de revelar, pois não seria justo para com os espectadores que ainda não assistiram o espetáculo. Seja como for, trata-se de uma pequena jóia dramatúrgica, repleta de irresistível humor crítico.
O segundo texto, "A florista e o visitante", é o tal que considero bem inferior aos outros. Mas não porque seja inteiramente desprovido de qualidades, já que promove o encontro de duas personalidades bastante curiosas, que "ameaçam" todo o tempo chegarem a um entendimento que talvez pudesse conferir um novo rumo às suas vidas. Ocorre, porém, que o texto é muito longo, e em função deste detalhe seu potencial em muito se minimiza.
Já o terceiro, assim como o inicial, é absolutamente maravilhoso. Um homem chega a um teatro e quando se dirige à sua poltrona, vê nela a bolsa de uma senhora. E então, extremamente educado, pergunta a ela se o lugar "está ocupado". É óbvio que não, pois uma bolsa, ao menos em princípio, não assiste a um espetáculo. Trata-se, apenas, de uma maneira gentil de sugerir que aquele assento é o dele, estando implícita a retirada, pela dama em questão, da sua bolsa. Mas aí começa uma discussão que, crescendo pouco a pouco, atinge as raias do mais completo absurdo. Sem dúvida, uma obra-prima de humor, calcado na intolerância e na incapacidade dos personagens de se fazerem entender, graças à intempestiva e desvairada senhora.
Quanto aos monólogos da atriz, bem realizados por Letícia Isnard, estes explicitam, sempre de forma bem humorada e crítica, uma série de dúvidas e inquietações que fazem parte da ansiedade diária de todos os profissionais que se dedicam ao teatro, cabendo registrar que Letícia, logo no início do espetáculo, realiza, displicentemente, proezas corporais que - vejo-me obrigado a confessar - quase provocam em mim um colapso total, fruto de brutal inveja.
No que diz respeito ao espetáculo, Gilberto Gawronski impõe à cena uma dinâmica despojada e simples, sabiamente isenta de desnecessárias firulas formais e totalmente voltada para as relações estabelecidas entre os personagens. E estes são interpretados de forma irrepreensível por todo o elenco. A começar por Guida Vianna.
Protagonizando a primeira e a última história, a atriz demonstra uma vez mais seu enorme talento, aqui voltado para a comédia - mas Guida é uma atriz capaz de transitar, com o mesmo brilho, por todos os gêneros. E seu mérito reside, entre outras coisas, em sua capacidade de articular com perfeita clareza o texto, em sua notável noção de ritmo e na inteligência de suas escolhas. Trata-se de uma profissional exemplar, sem dúvida uma das melhores intérpretes do país.
Sávio Moll, parceiro de Guida na primeira história, convence plenamente na pele do coitado que, assolado pela avalanche de palavras da esposa e por seu bizarro raciocínio, só no final, como já foi dito, consegue verbalizar seu desejo. E o mesmo se dá no último quadro, sendo que aqui o ator tem maiores oportunidades de trabalhar, na medida certa, o progressivo descontrole do personagem. Gilberto Gawronski e Letícia Isnard também exibem ótimo desempenho na segunda história, ainda que lutando - ao menos em minha opinião - contra a excessiva duração do texto.
Com relação à equipe técnica, creio que a cenografia e figurinos (simples e eficientes) tenham ficado a cargo do grupo, cabendo destacar a excelente luz de Tomás Ribas e a apropriada trilha sonora criada pelo diretor.
DONA OTILIA E OUTRAS HISTÓRIAS - Textos de Vera Karan. Direção de Gilberto Gawronski. Com Guida Vianna, Gilberto Gawronski, Sávio Moll e Letícia Isnard. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Açaí e dedos"
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Ausência, conflitos e questionamentos
Lionel Fischer
Casada com um professor de português, mãe de dois filhos e de uma filha adotada, Laura é uma sexagenária como outra qualquer, moradora de Copacabana. Um dia, sai para fazer compras num supermercado, atividade que exercia regularmente, e não volta para casa. Está desaparecida há uma semana. Sua filha, que há quatro anos mora no exterior, regressa e toda a família se empenha em tentar descobrir o que acontecera.
Eis, em resumo, o enredo de "Açaí e dedos", em cartaz no Oi Futuro. De autoria de Carla Faour, a peça chega à cena com direção de Henrique Tavares e elenco formado por Carla Faour (Regina, a filha de criação), Ivan de Almeida (Otávio, marido de Laura), Sheron Menezes (Alice, filha de Otávio e Laura), Babu Santana (Júnior, irmão de Alice) e Thaís Garayp (Laura).
Como dito no parágrafo inicial, um dos aspectos óbvios do texto é a tentativa da família de descobrir o que acontecera com Laura - poderia ter sido vítima de um assalto seguido de sequestro, poderia ter sofrido um acidente, ter tido um ataque cardíaco fulminante e assim por diante. No entanto, todas essas possibilidades são checadas, sem que se chegue a nenhum resultado.
Portanto, tudo me leva a crer que a autora pretendeu "investigar" não tanto o desaparecimento físico e inesperado de uma pessoa, mas suas consequências sobre seus familiares. Aliás, isto me parece bastante evidente na peça, pois a ausência da matriarca dispara conflitos e questionamentos que, de outra forma, não teriam ocorrido. Trata-se, assim, de uma proposta inteiramente válida.
Ocorre, porém, que a opção da autora de colocar em cena, ainda que em outro "espaço" e talvez em um outro "tempo", a personagem desaparecida - que justifica seu sumiço narrando para a platéia a felicidade que sentiu ao viver inesperados momentos de grande plenitude - isto de certa forma minimiza a possibilidade de maior identificação com o drama e os conflitos dos demais personagens, ainda que tal contraste não deixe de ser potencialmente interessante.
No entanto, se a estrutura narrativa fosse menos fragmentada - ou não fragmentada - e a mãe permanecesse no palco imóvel e silenciosa (como o faz, em muitos momentos), mas só no final nos contasse sua experiência, é possível que o texto nos gerasse um impacto ainda maior, e também um maior desconforto e estranhamento diante de uma figura imóvel, envolta numa penumbra, que nada diz e sobre quem são tecidas as mais variadas hipóteses.
Seja como for, em seu segundo texto (o primeiro foi "A arte de escutar") Carla Four reafirma seu grande potencial como dramaturga, já que, apesar das ressalvas feitas, constrói bons personagens e diálogos fluentes, afora abordar temas da maior pertinência.
Quanto ao espetáculo, Henrique Tavares trabalha a cena de forma sóbria e eficiente, valendo-se de marcações que contribuem para ressaltar os principais conteúdos em jogo. E no tocante ao elenco, todos exibem atuações seguras, com algum destaque para Thaís Garayp, sempre convincente em seus vários monólogos. Na equipe técnica, são corretos os figurinos de Ney Madeira, a cenografia de José Dias e a iluminação de Aurélio de Simoni.
AÇAÍ E DEDOS - Texto de Carla Faour. Direção de Henrique Tavares. Com Carla Faour, Babu Santana, Ivan de Almeida, Sheron Menezes e Thaís Garayp. Oi Futuro. Sexta às 19h30, sábado às 19h30 e 21h30, domingo às 19h30.
"Açaí e dedos"
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Ausência, conflitos e questionamentos
Lionel Fischer
Casada com um professor de português, mãe de dois filhos e de uma filha adotada, Laura é uma sexagenária como outra qualquer, moradora de Copacabana. Um dia, sai para fazer compras num supermercado, atividade que exercia regularmente, e não volta para casa. Está desaparecida há uma semana. Sua filha, que há quatro anos mora no exterior, regressa e toda a família se empenha em tentar descobrir o que acontecera.
Eis, em resumo, o enredo de "Açaí e dedos", em cartaz no Oi Futuro. De autoria de Carla Faour, a peça chega à cena com direção de Henrique Tavares e elenco formado por Carla Faour (Regina, a filha de criação), Ivan de Almeida (Otávio, marido de Laura), Sheron Menezes (Alice, filha de Otávio e Laura), Babu Santana (Júnior, irmão de Alice) e Thaís Garayp (Laura).
Como dito no parágrafo inicial, um dos aspectos óbvios do texto é a tentativa da família de descobrir o que acontecera com Laura - poderia ter sido vítima de um assalto seguido de sequestro, poderia ter sofrido um acidente, ter tido um ataque cardíaco fulminante e assim por diante. No entanto, todas essas possibilidades são checadas, sem que se chegue a nenhum resultado.
Portanto, tudo me leva a crer que a autora pretendeu "investigar" não tanto o desaparecimento físico e inesperado de uma pessoa, mas suas consequências sobre seus familiares. Aliás, isto me parece bastante evidente na peça, pois a ausência da matriarca dispara conflitos e questionamentos que, de outra forma, não teriam ocorrido. Trata-se, assim, de uma proposta inteiramente válida.
Ocorre, porém, que a opção da autora de colocar em cena, ainda que em outro "espaço" e talvez em um outro "tempo", a personagem desaparecida - que justifica seu sumiço narrando para a platéia a felicidade que sentiu ao viver inesperados momentos de grande plenitude - isto de certa forma minimiza a possibilidade de maior identificação com o drama e os conflitos dos demais personagens, ainda que tal contraste não deixe de ser potencialmente interessante.
No entanto, se a estrutura narrativa fosse menos fragmentada - ou não fragmentada - e a mãe permanecesse no palco imóvel e silenciosa (como o faz, em muitos momentos), mas só no final nos contasse sua experiência, é possível que o texto nos gerasse um impacto ainda maior, e também um maior desconforto e estranhamento diante de uma figura imóvel, envolta numa penumbra, que nada diz e sobre quem são tecidas as mais variadas hipóteses.
Seja como for, em seu segundo texto (o primeiro foi "A arte de escutar") Carla Four reafirma seu grande potencial como dramaturga, já que, apesar das ressalvas feitas, constrói bons personagens e diálogos fluentes, afora abordar temas da maior pertinência.
Quanto ao espetáculo, Henrique Tavares trabalha a cena de forma sóbria e eficiente, valendo-se de marcações que contribuem para ressaltar os principais conteúdos em jogo. E no tocante ao elenco, todos exibem atuações seguras, com algum destaque para Thaís Garayp, sempre convincente em seus vários monólogos. Na equipe técnica, são corretos os figurinos de Ney Madeira, a cenografia de José Dias e a iluminação de Aurélio de Simoni.
AÇAÍ E DEDOS - Texto de Carla Faour. Direção de Henrique Tavares. Com Carla Faour, Babu Santana, Ivan de Almeida, Sheron Menezes e Thaís Garayp. Oi Futuro. Sexta às 19h30, sábado às 19h30 e 21h30, domingo às 19h30.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Teatro/CRÍTICA
"As pontes de Madison"
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Belíssima história de amor
Lionel Fischer
Em uma de suas muitas frases imortais, Shakespeare um dia formulou a conhecidíssima "há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia". Concordo inteiramente com o fabuloso bardo e dentre essas "coisas" considero o acaso uma das mais misteriosas, posto que fruto de algo que poderíamos chamar de Destino. E me parece ser ele que determina a materialização de certos momentos em nossa vida capazes de transformá-la ou de pelo menos nos levar a encará-la sob uma nova perspectiva. É o que ocorre no presente texto.
Fotógrafo da revista National Geographic, Robert Kincaid viaja há anos pelo mundo e num dado momento é incumbido de fotografar as famosas pontes cobertas de Madison, em Iowa/EUA. Lá chegando, o acaso o leva a bater à porta de Francesca Johnson, uma professora de literatura casada e mãe de dois filhos, a fim de obter informações sobre como chegar às tais pontes. O marido de Francesca e seus dois filhos adolescentes estão ausentes, numa feira agropecuária, e só retornarão quatro dias depois. Pois bem: o que poderia limitar-se a um breve encontro se converte no encontro mais importante da vida dos dois personagens, que jamais poderiam imaginá-lo e muito menos as consequências que geraria em ambos.
Eis, em resumo, o enredo de "As pontes de Madison", baseada no romance de Robert James Waller e narrada em flashbacks pelo casal de filhos de Francesca, agora adultos, a partir de uma carta que ela deixa para ambos. Após cumprir bem sucedida temporada em São Paulo, o texto chega à cena (Teatro dos Quatro) com tradução e adaptação de Alexandre Tenório, direção de Regina Galdino e elenco formado por Marcos Caruso (Robert), Denise Del Vecchio (Francesca), Adriana Londoño (Caroline) e Marcos Damigo (Michael).
Como já foi dito acima, o que poderia ter-se se limitado a um breve encontro converte-se em um divisor de águas na vida dos protagonistas. Ela, desde que se casou, se viu obrigada a conviver com um marido que nada entende de poesia ou literatura, e com pessoas absolutamente provincianas, unicamente preocupadas com problemas de colheita e gado. Era, ainda que não o admitisse abertamente, ou sequer o percebesse, uma pessoa inteiramente deslocada. Então surge em sua vida um homem "do mundo", ligado a cores e aromas, apaixonado por registrar com sua câmera toda a beleza e mistério da natureza. E que logo percebe que Francesca não é feliz e que ele também não, pois ambos carecem do essencial: o verdadeiro encontro entre duas almas que, mesmo não sendo gêmeas, foram feitas para constituir um entidade indissolúvel. Mas tudo dura apenas quatro dias...ou será que não?
Aí cabe a cada espectador fazer sua leitura desta breve e apaixonante história de amor, chegar à conclusão sobre sua maior ou menor validade etc. Quanto a mim, fiquei emocionadíssimo e se tivesse que escolher entre viver uma relação morna com alguém durante 30 anos ou uma paixão avassaladora que durasse apenas quatro dias (ou aé mesmo quatro horas), não hesitaria um segundo em optar pela segunda hipótese, mesmo que a partir daí jamais viesse a me ligar profundamente a alguém.
Contendo ótimos personagens, diálogos mais do que pertinentes sobre o amor e muitos outros temas, "As pontes de Madison" chega à cena em ótima versão de Regina Galdino. Optando por um desenho cênico simples, completamente isento de desnecessárias firulas formais, a diretora consegue materializar todos os conteúdos propostos pelo autor, valorizando com a mesma eficiência tanto as passagens mais amargas quanto aquelas em que a paixão, o humor e o lirismo predominam. E Regina Galdino exibe o mérito suplementar de haver extraído maravilhosas atuações dos protagonistas - em papéis com menores oportunidades, Adriana Londoño e Marcos Damigo têm atuações convincentes.
Na pele de Robert, Marcos Caruso reitera o que todos já sabemos: trata-se de um dos melhores atores do país, capaz de transitar com o mesmo brilho tanto na comédia como no drama. E aqui os risos e as lágrimas se fazem presente, mas sempre na medida certa, sem qualquer caráter apelativo. Caruso constrói seu personagem enfatizando tanto sua fortaleza como sua fragilidade, e por isso Robert se torna tão cativante. E a mesma eficiência se faz presente na performance de Denise Del Vecchio, e praticamente pelas mesmas razões. Para quem aprecia a dificílima arte de representar, Denise nos dá uma verdadeira aula de como ir, pouco a pouco, "descontruindo" seu papel, permitindo o lento aflorar de carências, desejos e sentimentos há tanto tempo adormecidos. De início uma caipira típica, mais adiante ela se torna uma mulher de irresistível sensualidade, entregando-se sem reservas a uma paixão que jamais imaginara viver.
Na equipe técnica, destacamos a sobriedade e eficiência dos trabalhos de todos s profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna produção - Marco Lima (cenário), Fábio Namatame (figurinos), Ney Bonfante (iluminação), Mario Manga (música original), Johannes Freiberg (preparação corporal) e Alexandre Tenório (tradução e adaptação).
AS PONTES DE MADISON - Texto de Robert James Waller. Tradução e adaptação de Alexandre Tenório. Direção de Regina Galdino. Com Marcos Caruso, Denise Del Vecchio, Adriana Londoño e Marcos Damigo. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
"As pontes de Madison"
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Belíssima história de amor
Lionel Fischer
Em uma de suas muitas frases imortais, Shakespeare um dia formulou a conhecidíssima "há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia". Concordo inteiramente com o fabuloso bardo e dentre essas "coisas" considero o acaso uma das mais misteriosas, posto que fruto de algo que poderíamos chamar de Destino. E me parece ser ele que determina a materialização de certos momentos em nossa vida capazes de transformá-la ou de pelo menos nos levar a encará-la sob uma nova perspectiva. É o que ocorre no presente texto.
Fotógrafo da revista National Geographic, Robert Kincaid viaja há anos pelo mundo e num dado momento é incumbido de fotografar as famosas pontes cobertas de Madison, em Iowa/EUA. Lá chegando, o acaso o leva a bater à porta de Francesca Johnson, uma professora de literatura casada e mãe de dois filhos, a fim de obter informações sobre como chegar às tais pontes. O marido de Francesca e seus dois filhos adolescentes estão ausentes, numa feira agropecuária, e só retornarão quatro dias depois. Pois bem: o que poderia limitar-se a um breve encontro se converte no encontro mais importante da vida dos dois personagens, que jamais poderiam imaginá-lo e muito menos as consequências que geraria em ambos.
Eis, em resumo, o enredo de "As pontes de Madison", baseada no romance de Robert James Waller e narrada em flashbacks pelo casal de filhos de Francesca, agora adultos, a partir de uma carta que ela deixa para ambos. Após cumprir bem sucedida temporada em São Paulo, o texto chega à cena (Teatro dos Quatro) com tradução e adaptação de Alexandre Tenório, direção de Regina Galdino e elenco formado por Marcos Caruso (Robert), Denise Del Vecchio (Francesca), Adriana Londoño (Caroline) e Marcos Damigo (Michael).
Como já foi dito acima, o que poderia ter-se se limitado a um breve encontro converte-se em um divisor de águas na vida dos protagonistas. Ela, desde que se casou, se viu obrigada a conviver com um marido que nada entende de poesia ou literatura, e com pessoas absolutamente provincianas, unicamente preocupadas com problemas de colheita e gado. Era, ainda que não o admitisse abertamente, ou sequer o percebesse, uma pessoa inteiramente deslocada. Então surge em sua vida um homem "do mundo", ligado a cores e aromas, apaixonado por registrar com sua câmera toda a beleza e mistério da natureza. E que logo percebe que Francesca não é feliz e que ele também não, pois ambos carecem do essencial: o verdadeiro encontro entre duas almas que, mesmo não sendo gêmeas, foram feitas para constituir um entidade indissolúvel. Mas tudo dura apenas quatro dias...ou será que não?
Aí cabe a cada espectador fazer sua leitura desta breve e apaixonante história de amor, chegar à conclusão sobre sua maior ou menor validade etc. Quanto a mim, fiquei emocionadíssimo e se tivesse que escolher entre viver uma relação morna com alguém durante 30 anos ou uma paixão avassaladora que durasse apenas quatro dias (ou aé mesmo quatro horas), não hesitaria um segundo em optar pela segunda hipótese, mesmo que a partir daí jamais viesse a me ligar profundamente a alguém.
Contendo ótimos personagens, diálogos mais do que pertinentes sobre o amor e muitos outros temas, "As pontes de Madison" chega à cena em ótima versão de Regina Galdino. Optando por um desenho cênico simples, completamente isento de desnecessárias firulas formais, a diretora consegue materializar todos os conteúdos propostos pelo autor, valorizando com a mesma eficiência tanto as passagens mais amargas quanto aquelas em que a paixão, o humor e o lirismo predominam. E Regina Galdino exibe o mérito suplementar de haver extraído maravilhosas atuações dos protagonistas - em papéis com menores oportunidades, Adriana Londoño e Marcos Damigo têm atuações convincentes.
Na pele de Robert, Marcos Caruso reitera o que todos já sabemos: trata-se de um dos melhores atores do país, capaz de transitar com o mesmo brilho tanto na comédia como no drama. E aqui os risos e as lágrimas se fazem presente, mas sempre na medida certa, sem qualquer caráter apelativo. Caruso constrói seu personagem enfatizando tanto sua fortaleza como sua fragilidade, e por isso Robert se torna tão cativante. E a mesma eficiência se faz presente na performance de Denise Del Vecchio, e praticamente pelas mesmas razões. Para quem aprecia a dificílima arte de representar, Denise nos dá uma verdadeira aula de como ir, pouco a pouco, "descontruindo" seu papel, permitindo o lento aflorar de carências, desejos e sentimentos há tanto tempo adormecidos. De início uma caipira típica, mais adiante ela se torna uma mulher de irresistível sensualidade, entregando-se sem reservas a uma paixão que jamais imaginara viver.
Na equipe técnica, destacamos a sobriedade e eficiência dos trabalhos de todos s profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna produção - Marco Lima (cenário), Fábio Namatame (figurinos), Ney Bonfante (iluminação), Mario Manga (música original), Johannes Freiberg (preparação corporal) e Alexandre Tenório (tradução e adaptação).
AS PONTES DE MADISON - Texto de Robert James Waller. Tradução e adaptação de Alexandre Tenório. Direção de Regina Galdino. Com Marcos Caruso, Denise Del Vecchio, Adriana Londoño e Marcos Damigo. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Do fundo do lago escuro"
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Comovente e hilariante autobiografia
Lionel Fischer
"O Brasil de 1950 visto através do espelho de uma família carioca, regida por uma severa matriarca, ouvinte assídua dos discursos de Carlos Lacerda. A peça narra um dia na infância de Rodriguinho, filho de Conceição, neto de D. Mocinha, matriarca exemplar. Seu pai, Henrique, é o rapaz pobre que entrou para a família. Seu único pecado é a ambição. Orlando é o tio, bêbado e lúcido. Embora com 40 anos, vive às custas da mãe. No mesmo dia em que morre a cachorrinha de Rodrigo, que comeu as naftalinas que a avó insiste em botar nos armários, vem à tona o fato de que Henrique, como procurador de D. Mocinha, vendeu sem permissão dois terrenos da severa senhora. Tudo ocorre sob a expectativa do discurso de Carlos Lacerda, em meio às tensões do momento que precedeu a queda de Getúlio Vargas".
Extraída do ótimo e abrangente release que nos foi enviado, a sinopse acima retrata com precisão o contexto essencial de "Do fundo do lago escuro", de autoria de Domingos Oliveira. A peça, em cartaz no Teatro das Artes, chega à cena com direção do autor e elenco formado por Paulo Betti (Henrique), Domingos Oliveira (D. Mocinha), Priscilla Rozenbaum (Conceição), Ricardo Kosovski (Orlando), Fernando Gomes (Manoel), Renata Tobelem (Iracema) - os dois últimos empregados da casa - José Roberto Oliveira (Pinheiro, amigo da família), Victor Navega Motta (Rodrigo) e João Vithor Oliveira (Ricardo, primo de Rodrigo).
Domingos Oliveira supõe ser esta sua melhor peça. Quanto a mim, não tenho a menor dúvida. E minha opinião não se prende tanto a possíveis paralelos - certamente pertinentes - entre a família em questão e o momento vivido pelo país na época, mas à capacidade do autor de materializar suas recordações a elas conferindo um caráter universal. Partindo-se da premissa de que não escolhemos nossa própria família, torna-se inevitável conviver com diferenças mais difíceis de administrar do que aquelas que ocorrem em um outro contexto. Pode-se, por exemplo, mandar às favas um patrão autoritário que nos maltrata, mas é bem mais complexo fazer o mesmo com alguém com quem temos laços de sangue, com alguém que fez parte da nossa história desde sempre, ainda que essa história possa eventualmente conter mais lágrimas do que risos.
E o que me parece mais contundente e emocionante neste texto é que ele mostra, por um lado, que todos os personagens (ou a maioria) têm seus conflitos internos, assim como conflitos com os demais personagens, mas ainda assim, em meio a tantas diferenças, fica evidente a força dos sentimentos que os une, capaz de ao menos apaziguar temporariamente as muitas contradições e ameaças de ruptura. Não estamos, evidentemente, diante de uma família abençoada com permanente felicidade, plena de harmonia e que possa servir de exemplo. Mas será que alguém possui uma com tais predicados?
É óbvio que não. Mas isso não significa que a convivência familiar seja sempre um martírio, que não contenha momentos de cumplicidade e parceria, amor e compaixão, solidariedade e identificação. E negar essa possibilidade equivale a acreditar ser possível levar um barco sem temporais, ou imprecar contra o oceano pela inconstância de suas marés. A vida, seja em família ou não, possui uma dialética que pressupõe alternâncias de múltiplas naturezas, que muitas vezes escapam ao nosso controle, mas são elas - sobretudo as mais amargas - que possibilitam salutares transformações.
Contendo ótimos personagens, temas de grande pertinência e uma trama que prende a atenção do espectador desde o início, "Do fundo do lago escuro" chega à cena com ótima versão de Domingos Oliveira, cabendo destacar a fluidez da encenação, o preciso trabalho no tocante aos tempos rítmicos e a capacidade do autor/diretor de extrair irrepreensíveis atuações de todo o elenco. Mas antes de esmiuçá-las, cabe uma breve reflexão sobre a opção de Domingos de representar D. Mocinha.
A primeira hipótese (risível) seria a de que não encontrou uma atriz capaz de interpretar a personagem, pois todos sabemos que podemos carecer de tudo, menos de grandes intérpretes - de ambos os sexos. A segunda hipótese (também risível) seria a de que Domingos, na qualidade de autor/diretor, "resolveu fazer a personagem e pronto". Restaria uma terceira: o desejo de encarnar uma mulher de suma importância em sua vida, enxergando-a agora de dentro e não de fora, como fizera em sua infância. Trata-se, sem dúvida, de uma escolha corajosa, sujeita a múltiplos "bombardeios". Seja como for, tudo o que tenho a dizer sobre tal opção é que Domingos está engraçadíssimo no papel, sem com isso deixar de valorizar suas demais características, dentre elas o curioso pragmatismo de D. Mocinha e sua nostalgia de um tempo menos conflituoso do que aquele que vive no presente.
Com relação aos demais atores, Paulo Betti, Priscilla Rozenbaum, Fernando Gomes, Tatiana Muniz, José Roberto Oliveira, Victor Navega Motta e João Vithor Oliveira exibem atuações seguras e convincentes. Mas gostaria de ressaltar a excelente performance de Ricardo Kosovski, que esgota todas as possibilidades de seu amargo, cínico e lírico pesonagem, assim como a de Renata Tobelem, absolutamente hilariante na pele da criada.
Na equipe técnica, Ronald Teixeira assina uma cenografia expressiva e funcional, a mesma expressividade presente na sensível luz de Maneco Quinderé, nos figurinos de Kika Lopes e na trilha sonora do diretor. Gostaria ainda de registrar o excelente trabalho de preparação corporal feito por Joana Ribeiro e Marito Olsson-Gorsberg com Ricardo Kosovski, certamente determinante para que o ator exibisse uma performance tão brilhante.
DO FUNDO DO LAGO ESCURO - Texto e direção de Domingos Oliveira. Com Domingos, Priscilla Rozenbaum e outros. Teatro das Artes. Segunda a quarta, 21h. Quinta, 21h30.
"Do fundo do lago escuro"
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Comovente e hilariante autobiografia
Lionel Fischer
"O Brasil de 1950 visto através do espelho de uma família carioca, regida por uma severa matriarca, ouvinte assídua dos discursos de Carlos Lacerda. A peça narra um dia na infância de Rodriguinho, filho de Conceição, neto de D. Mocinha, matriarca exemplar. Seu pai, Henrique, é o rapaz pobre que entrou para a família. Seu único pecado é a ambição. Orlando é o tio, bêbado e lúcido. Embora com 40 anos, vive às custas da mãe. No mesmo dia em que morre a cachorrinha de Rodrigo, que comeu as naftalinas que a avó insiste em botar nos armários, vem à tona o fato de que Henrique, como procurador de D. Mocinha, vendeu sem permissão dois terrenos da severa senhora. Tudo ocorre sob a expectativa do discurso de Carlos Lacerda, em meio às tensões do momento que precedeu a queda de Getúlio Vargas".
Extraída do ótimo e abrangente release que nos foi enviado, a sinopse acima retrata com precisão o contexto essencial de "Do fundo do lago escuro", de autoria de Domingos Oliveira. A peça, em cartaz no Teatro das Artes, chega à cena com direção do autor e elenco formado por Paulo Betti (Henrique), Domingos Oliveira (D. Mocinha), Priscilla Rozenbaum (Conceição), Ricardo Kosovski (Orlando), Fernando Gomes (Manoel), Renata Tobelem (Iracema) - os dois últimos empregados da casa - José Roberto Oliveira (Pinheiro, amigo da família), Victor Navega Motta (Rodrigo) e João Vithor Oliveira (Ricardo, primo de Rodrigo).
Domingos Oliveira supõe ser esta sua melhor peça. Quanto a mim, não tenho a menor dúvida. E minha opinião não se prende tanto a possíveis paralelos - certamente pertinentes - entre a família em questão e o momento vivido pelo país na época, mas à capacidade do autor de materializar suas recordações a elas conferindo um caráter universal. Partindo-se da premissa de que não escolhemos nossa própria família, torna-se inevitável conviver com diferenças mais difíceis de administrar do que aquelas que ocorrem em um outro contexto. Pode-se, por exemplo, mandar às favas um patrão autoritário que nos maltrata, mas é bem mais complexo fazer o mesmo com alguém com quem temos laços de sangue, com alguém que fez parte da nossa história desde sempre, ainda que essa história possa eventualmente conter mais lágrimas do que risos.
E o que me parece mais contundente e emocionante neste texto é que ele mostra, por um lado, que todos os personagens (ou a maioria) têm seus conflitos internos, assim como conflitos com os demais personagens, mas ainda assim, em meio a tantas diferenças, fica evidente a força dos sentimentos que os une, capaz de ao menos apaziguar temporariamente as muitas contradições e ameaças de ruptura. Não estamos, evidentemente, diante de uma família abençoada com permanente felicidade, plena de harmonia e que possa servir de exemplo. Mas será que alguém possui uma com tais predicados?
É óbvio que não. Mas isso não significa que a convivência familiar seja sempre um martírio, que não contenha momentos de cumplicidade e parceria, amor e compaixão, solidariedade e identificação. E negar essa possibilidade equivale a acreditar ser possível levar um barco sem temporais, ou imprecar contra o oceano pela inconstância de suas marés. A vida, seja em família ou não, possui uma dialética que pressupõe alternâncias de múltiplas naturezas, que muitas vezes escapam ao nosso controle, mas são elas - sobretudo as mais amargas - que possibilitam salutares transformações.
Contendo ótimos personagens, temas de grande pertinência e uma trama que prende a atenção do espectador desde o início, "Do fundo do lago escuro" chega à cena com ótima versão de Domingos Oliveira, cabendo destacar a fluidez da encenação, o preciso trabalho no tocante aos tempos rítmicos e a capacidade do autor/diretor de extrair irrepreensíveis atuações de todo o elenco. Mas antes de esmiuçá-las, cabe uma breve reflexão sobre a opção de Domingos de representar D. Mocinha.
A primeira hipótese (risível) seria a de que não encontrou uma atriz capaz de interpretar a personagem, pois todos sabemos que podemos carecer de tudo, menos de grandes intérpretes - de ambos os sexos. A segunda hipótese (também risível) seria a de que Domingos, na qualidade de autor/diretor, "resolveu fazer a personagem e pronto". Restaria uma terceira: o desejo de encarnar uma mulher de suma importância em sua vida, enxergando-a agora de dentro e não de fora, como fizera em sua infância. Trata-se, sem dúvida, de uma escolha corajosa, sujeita a múltiplos "bombardeios". Seja como for, tudo o que tenho a dizer sobre tal opção é que Domingos está engraçadíssimo no papel, sem com isso deixar de valorizar suas demais características, dentre elas o curioso pragmatismo de D. Mocinha e sua nostalgia de um tempo menos conflituoso do que aquele que vive no presente.
Com relação aos demais atores, Paulo Betti, Priscilla Rozenbaum, Fernando Gomes, Tatiana Muniz, José Roberto Oliveira, Victor Navega Motta e João Vithor Oliveira exibem atuações seguras e convincentes. Mas gostaria de ressaltar a excelente performance de Ricardo Kosovski, que esgota todas as possibilidades de seu amargo, cínico e lírico pesonagem, assim como a de Renata Tobelem, absolutamente hilariante na pele da criada.
Na equipe técnica, Ronald Teixeira assina uma cenografia expressiva e funcional, a mesma expressividade presente na sensível luz de Maneco Quinderé, nos figurinos de Kika Lopes e na trilha sonora do diretor. Gostaria ainda de registrar o excelente trabalho de preparação corporal feito por Joana Ribeiro e Marito Olsson-Gorsberg com Ricardo Kosovski, certamente determinante para que o ator exibisse uma performance tão brilhante.
DO FUNDO DO LAGO ESCURO - Texto e direção de Domingos Oliveira. Com Domingos, Priscilla Rozenbaum e outros. Teatro das Artes. Segunda a quarta, 21h. Quinta, 21h30.
terça-feira, 13 de abril de 2010
Atores e antropólogos:
observadores do mundo
Maria Cláudia Pereira Coelho
Em 1980, Alan Parker retratou em seu filme "Fame" o cotidiano de uma escola de performing arts. Através da trajetória de alguns alunos típicos - a judia reprimida pela mãe, o homossexual enrustido, o tímido talentoso, o negro sensual, talentoso e analfabeto, a moça rica e carente, a cantora pseudo-liberada e o porto-riquenho agressivo porém sensível - o cineasta mostra, acompanhando seus passos desde os testes de admissão até a formatura, o que é tornar-se um artista. E tornar-se um artista é algo mais do que aprender uma profissão artística, seja música, teatro ou dança. É, como diz a professora de dança, um "modo de vida". Um modo de vida dramatizado em pequenas situações do cotidiano, e aprendido nos mínimos detalhes.
Tornar-se artista quer dizer, em primeiro lugar, aderir a um novo estilo de vida, expresso na recusa dos valores das famílias de origem. Doris, a moça judia, é um exemplo típico; quer passar a chamar-se "Dominique", no que enfrenta a oposição da mãe; para esta, "Dominique" simboliza noites fora de casa, o risco de engravidar, em suma, as transformações por que passa Doris e que ela não quer ver consolidadas na mudança de nome. A temática da liberação sexual aparece também no drama do rapaz que decide falar durante um exercício de seus medos e complexos por ser homossexual. Diante do espanto de Doris, justifica-se afirmando que o ator tem que se expor. E ser artista é aprender a se expor e também a se liberar sexualmente, como mostra o caso de Coco: convidada por um falso cineasta francês para um teste de câmera, apavora-se quando ele lhe pede que tire a blusa, e só cede quando ele lhe diz, aborrecido, que a convidara pensando que ela era profissional.
A escola é também cenário da primeira experiência com drogas, no contato com colegas mais experimentados; é o campo onde se dá o confronto entre as cadeiras artísticas, espaço para sensibilidade, intuição e sensualidade, e as teóricas, "matérias chatas", que puxam pelo intelecto; este é menosprezado em favor de categorias subjetivas de avaliação do real - o que mais agrada a Ralph quando sobe num palco pela primeira vez é a troca de energia ao vivo com o público. E é também na escola que surge o que parece ser a questão mais fundamental deste meio artístico para A. Parker: a busca da fama, embasada na crença do próprio talento, ou seja, a crença no ser único.
Na cena final da formatura, em que os alunos apresentam um grande show, o drama escondido daqueles que querem e julgam poder protagonizar o "star system" aparece claramente: um grande coral canta a música-tema, que, entre outras coisas, diz o seguinte: "I sing the body eletric/ I celebrate the me yet to come/ I toast to my own reunion/ When I become one with the sun/ And I'll burn vith the fire of ten million satars / And in time, and in time/ We will all be stars".
Posta em contraste com a cena em que os alunos encontram, trabalhando como garçom, aquele que fora o astro da escola anos atrás, a cena final é um nítido retrato desse drama: todos crêem no seu potencial de estrelas; todos sabem que todos crêem nisto; todos sabem que pouquíssimos serão bem sucedidos; e ainda assim, devido à crença no próprio talento (que de resto todos crêem ter, porque acreditam ser únicos), todos têm certeza de que serão os escolhidos.
O que podem ter em comum um filme e uma tese sobre uma escola de teatro? Na estética, nada; no conteúdo, tudo. Em uma pesquisa realizada em 1988-1999 sobre uma escola de teatro no Rio de Janeiro, procurei mostrar de que maneira os alunos escaravam a profissão de ator, para através disto compreender qual o estilo de vida e a visão de mundo que caracterizam o meio teatral. Os traços mais marcantes que encontrei foram a recusa do mundo "burguês", identificado com hipocrisia, preconceitos, apego a valores materiais, monotonia, rotina etc.
Este mundo burguês era personificado pelas famílias dos estudantes; estes procuravam desenvolver um estilo de vida "alternativo", caracterizado pela preocupação em manter a "cabeça aberta", ou seja, livrar-se de preconceitos, experimentar de tudo, fugir das rotinas de trabalho e da preocupação com a estabilidade material etc. Por isso, era importante ter uma profissão que não precisasse ser dicotomizada em relação à vida pessoal, que pudesse ser exercida "24 horas por dia" - a profissão de ator, prazeirosa, alternativa e procurada por pessoas de "cabeça aberta".
Assim, o aprendizado da profissão de ator realizava-se paralelamente ao aprendizado de uma nova forma de viver. Além de ser "alternativo" e "cabeça aberta", os estudantes entram em contato com um código que valoriza o hedonismo e as formas sensoriais, não racionais de percepção da realidade. Assim, dá-se mais atenção ao corpo do que à mente, e a emoção e a intuição são muito mais valorizadas do que a razão, que num extremo pode até ser vista como repressora daquilo que é mais genuíno no trabalho do ator: sua sensibilidade e intuição.
Da conjunção destas várias características - a busca do prazer, a importância do sensorial e do corpo, o desejo de ser "alternativo" e "cabeça aberta" - surge um dos traços mais típicos daquele grupo de estudantes de teatro: a valorização da liberação sexual, a importância de estar aberto a qualquer tipo de experiência, sem preconceitos.
Por sua vez, do peso conferido à emoção surge a necessidade de auto-conhecimento. É assim que muitos exercícios de teatro assemelhavam-se a sessões terapêuticas, e a possibilidade de auto-conhecimento oferecida pelo trabalho de ator aparecia como um dos maiores atrativos desta profissão. Esta valorização do íntimo, da subjetividade, era contraposta à técnica, que, a exemplo da razão, era muitas vezes encarada como repressora do prazer de se estar no palco.
Este desprezo pela técnica, aliado à crença nas emoções como capazes de resolverem tudo, engendra uma das situações mais típicas das aulas de teatro: a do aluno que, surpreso com a crítica do professor por não ter expresso adequadamente uma emoção, alega em sua defesa tê-la sentido.
Finalmente, um último traço muito marcante deste universo é a crença no talento, definido como uma qualidade inata que habilita o ator a criar um canal de comunicação com o público que não passa pelo racional - um ator talentoso, pelo seu "brilho", seu "peso", sua "energia". Sendo inato e subjetivo, é portanto individualizante: um ator talentoso é um ator que não pode ser substituído, pois impõe sua marca pessoal ao personagem.
Todas estas características apreendidas pela observação antropológica combinam com aquela descrição do universo artístico de A. Parker: a escola que observei estava cheia de Doris, Ralphs e Cocos. Isto sugere que, por distantes que estes mundos pareçam, existem alguns momentos em que o trabalho do antropólogo e o do ator se tangenciam.
Quando Regina Casé, em um quadro da "TV Pirata", faz uma socióloga, utilizando uma série de termos do jargão científico, um gestual típico do meio acadêmico, idéias e maneiras de olhar não menos características, ela está lançando sobre os intelectuais um tipo de olhar semelhante àquele que lancei sobre os estudantes de teatro: um olhar que estranha aquilo que é familiar e próximo, e que ao fazê-lo permite decupar a realidade observada nos seus menores traços, permitindo um processo de reconstrução minucioso que recupera o real observado acrescentando-lhe uma nova dimensão - a intepretativa.
O olhar antropológico é exatamente isto: estranhar para conhecer melhor. H. Minner, num artigo clássico da antropologia, faz um estranho exercício: descreve a sociedade Nacirema, uma sociedade obcecada pela crença na doença e fealdade intrínsecas do corpo humano, e dominada pelos cuidados para com ele. Assim, desenvolvem os mais estranhos rituais, tais como a laceração diária da face com um instrumento cortante, para os homens; a introdução de um feixe de cerdas de porco untadas com uma substância mágica na boca, várias vezes ao dia, a falta da qual implica no abandono por parte de amigos e amantes; a existência de uma instituição especial em que se vai para morrer, o latipsoh; a consulta ao "escutador", uma espécie de feiticeiro que cura através de um suposto desenlace dos maus tratos infligidos pela mãe ao filho ainda em tenra idade; e muitos outros estranhos hábitos, que ao observador faziam supor que o traço mais característico da tribo fosse o sadomasoquismo, única explicação possível para os maus tratos a que estes nativos voluntariamente se submetiam em nome da saúde e da beleza.
O olhar antropológico treinado logo reconhece nesta descrição uma brincadeira: quantos homens não "laceram a face diariamente" (fazer a barba), quem não introduz cerdas de porco na boca com uma substância mágica para não perder amigos e amantes (escovar os dentes para evitar mau-hálito) e quem não conhece o latipsoh (hospital ao contrário) e o "escutador" (o psicanalista e seu complexo de Édipo)? Aliás, "nacirema" é "american" ao contrário...
Ângulo novo, realidade nova. É este estranhamento voluntário, controlado, marca registrada do olhar antropológico, que permite perceber facetas essenciais da realidade, a que estamos excessivamente acostumados para conhecer bem.É é esta observação cuidadosa do mundo, uma observação que estranha, decupa e recupera renovado o real que se exige do artista.
Por falar nisto, não é outra coisa que faz Tardieu em dois textos muito representativos do Teatro do Absurdo: "Um gesto por outro" e "Uma palavra por outra", duas verdadeiras teses antropológicas ambulantes. O que me faz pensar que talvez o teatro e a antropologia sejam como aqueles irmãos gêmeos separados as nascer, muito diferentes na educação que tiveram, mas portadores de uma semelhança essencial.
Mas a semelhança entre o teatro e a antropologia não se esgota no jeito de olhar o mundo, mesmo porque os atores e antropólogos não são apenas voyeurs, mas intérpretes que mergulham em mundos desconhecidos para apreendê-los de dentro. Esta viagem ao universo do outro, contudo, se tem encantos, também oferece riscos.
A antropologia batizou estes riscos de anthropological blues; para Roberto da Matta, anthropological blues é a sensação de solidão absoluta que toma conta do antropólogo quando, no processo de investigação do outro, sente-se temporariamente um exilado cultural, nem antropólogo, nem nativo, um híbrido perdido na fronteira de dois mundos culturais. Conhecer o outro é penetrar em outra lógica sem abrir mão da sua: paradoxo delicado, pois o movimento deve ter mão dupla. O antropólogo que vira índio para melhor fazer o seu trabalho não é mais que um antropólogo, portanto não fez o seu trabalho. Que o diga Carlos Castañeda...
A clássica associação entre arte e loucura é uma versão individualizada deste dilema cultural. O ator precisa compreender as motivações de um outro indivíduo, um ser fictício a quem precisa tornar real; para isso, deve empreender também uma viagem a um outro mundo, desta vez mais psíquico do que cultural., mas igualmente capaz de aprisionar o viajante. O ator que se metamorfoseia no personagem precisa ter absoluto controle sobre este processo, poder voltar a ser ator a qualquer momento. Caso contrário, não é mais um ser de mil faces, pois para trocar de máscaras é necessário um rosto que a envergue.
Uma arte e uma ciência; dois interesses, dois mundos, o mesmo olhar, o mesmo risco. Com contornos tão díspares, há muito em comum entre o teatro e a antropologia. Quando A. Parker olha para uma escola de teatro, ele faz um filme; posso olhar para este filme como sendo uma etnografia; Regina Casé transforma esta etnografia num quadro humorístico, e a sua forma de fazer teatro/televisão pode por sua vez ser objeto de uma tese antropológica. O jogo poderia prosseguir indefinidamente.
Mas, a cada início, é sempre bom lembrar que o filme e a tese sobre a escola de teatro viram de saída a mesma coisa. A sensibilidade artística apreende facetas sutis do real que se perdem nos hiatos da rigidez dos conceitos científicos, mas por sua vez impede que outras facetas, talvez grandes demais para a malha fina das coisas intuitivas, cheguem a ser consideradas. O método antropológico de observação do mundo tem muito de uma técnica que pode ser usada no aperfeiçoamento do mundo do ator.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 124/1990. A autora é Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ e do Curso de Formação de Atores da Faculdade da Cidade.
observadores do mundo
Maria Cláudia Pereira Coelho
Em 1980, Alan Parker retratou em seu filme "Fame" o cotidiano de uma escola de performing arts. Através da trajetória de alguns alunos típicos - a judia reprimida pela mãe, o homossexual enrustido, o tímido talentoso, o negro sensual, talentoso e analfabeto, a moça rica e carente, a cantora pseudo-liberada e o porto-riquenho agressivo porém sensível - o cineasta mostra, acompanhando seus passos desde os testes de admissão até a formatura, o que é tornar-se um artista. E tornar-se um artista é algo mais do que aprender uma profissão artística, seja música, teatro ou dança. É, como diz a professora de dança, um "modo de vida". Um modo de vida dramatizado em pequenas situações do cotidiano, e aprendido nos mínimos detalhes.
Tornar-se artista quer dizer, em primeiro lugar, aderir a um novo estilo de vida, expresso na recusa dos valores das famílias de origem. Doris, a moça judia, é um exemplo típico; quer passar a chamar-se "Dominique", no que enfrenta a oposição da mãe; para esta, "Dominique" simboliza noites fora de casa, o risco de engravidar, em suma, as transformações por que passa Doris e que ela não quer ver consolidadas na mudança de nome. A temática da liberação sexual aparece também no drama do rapaz que decide falar durante um exercício de seus medos e complexos por ser homossexual. Diante do espanto de Doris, justifica-se afirmando que o ator tem que se expor. E ser artista é aprender a se expor e também a se liberar sexualmente, como mostra o caso de Coco: convidada por um falso cineasta francês para um teste de câmera, apavora-se quando ele lhe pede que tire a blusa, e só cede quando ele lhe diz, aborrecido, que a convidara pensando que ela era profissional.
A escola é também cenário da primeira experiência com drogas, no contato com colegas mais experimentados; é o campo onde se dá o confronto entre as cadeiras artísticas, espaço para sensibilidade, intuição e sensualidade, e as teóricas, "matérias chatas", que puxam pelo intelecto; este é menosprezado em favor de categorias subjetivas de avaliação do real - o que mais agrada a Ralph quando sobe num palco pela primeira vez é a troca de energia ao vivo com o público. E é também na escola que surge o que parece ser a questão mais fundamental deste meio artístico para A. Parker: a busca da fama, embasada na crença do próprio talento, ou seja, a crença no ser único.
Na cena final da formatura, em que os alunos apresentam um grande show, o drama escondido daqueles que querem e julgam poder protagonizar o "star system" aparece claramente: um grande coral canta a música-tema, que, entre outras coisas, diz o seguinte: "I sing the body eletric/ I celebrate the me yet to come/ I toast to my own reunion/ When I become one with the sun/ And I'll burn vith the fire of ten million satars / And in time, and in time/ We will all be stars".
Posta em contraste com a cena em que os alunos encontram, trabalhando como garçom, aquele que fora o astro da escola anos atrás, a cena final é um nítido retrato desse drama: todos crêem no seu potencial de estrelas; todos sabem que todos crêem nisto; todos sabem que pouquíssimos serão bem sucedidos; e ainda assim, devido à crença no próprio talento (que de resto todos crêem ter, porque acreditam ser únicos), todos têm certeza de que serão os escolhidos.
O que podem ter em comum um filme e uma tese sobre uma escola de teatro? Na estética, nada; no conteúdo, tudo. Em uma pesquisa realizada em 1988-1999 sobre uma escola de teatro no Rio de Janeiro, procurei mostrar de que maneira os alunos escaravam a profissão de ator, para através disto compreender qual o estilo de vida e a visão de mundo que caracterizam o meio teatral. Os traços mais marcantes que encontrei foram a recusa do mundo "burguês", identificado com hipocrisia, preconceitos, apego a valores materiais, monotonia, rotina etc.
Este mundo burguês era personificado pelas famílias dos estudantes; estes procuravam desenvolver um estilo de vida "alternativo", caracterizado pela preocupação em manter a "cabeça aberta", ou seja, livrar-se de preconceitos, experimentar de tudo, fugir das rotinas de trabalho e da preocupação com a estabilidade material etc. Por isso, era importante ter uma profissão que não precisasse ser dicotomizada em relação à vida pessoal, que pudesse ser exercida "24 horas por dia" - a profissão de ator, prazeirosa, alternativa e procurada por pessoas de "cabeça aberta".
Assim, o aprendizado da profissão de ator realizava-se paralelamente ao aprendizado de uma nova forma de viver. Além de ser "alternativo" e "cabeça aberta", os estudantes entram em contato com um código que valoriza o hedonismo e as formas sensoriais, não racionais de percepção da realidade. Assim, dá-se mais atenção ao corpo do que à mente, e a emoção e a intuição são muito mais valorizadas do que a razão, que num extremo pode até ser vista como repressora daquilo que é mais genuíno no trabalho do ator: sua sensibilidade e intuição.
Da conjunção destas várias características - a busca do prazer, a importância do sensorial e do corpo, o desejo de ser "alternativo" e "cabeça aberta" - surge um dos traços mais típicos daquele grupo de estudantes de teatro: a valorização da liberação sexual, a importância de estar aberto a qualquer tipo de experiência, sem preconceitos.
Por sua vez, do peso conferido à emoção surge a necessidade de auto-conhecimento. É assim que muitos exercícios de teatro assemelhavam-se a sessões terapêuticas, e a possibilidade de auto-conhecimento oferecida pelo trabalho de ator aparecia como um dos maiores atrativos desta profissão. Esta valorização do íntimo, da subjetividade, era contraposta à técnica, que, a exemplo da razão, era muitas vezes encarada como repressora do prazer de se estar no palco.
Este desprezo pela técnica, aliado à crença nas emoções como capazes de resolverem tudo, engendra uma das situações mais típicas das aulas de teatro: a do aluno que, surpreso com a crítica do professor por não ter expresso adequadamente uma emoção, alega em sua defesa tê-la sentido.
Finalmente, um último traço muito marcante deste universo é a crença no talento, definido como uma qualidade inata que habilita o ator a criar um canal de comunicação com o público que não passa pelo racional - um ator talentoso, pelo seu "brilho", seu "peso", sua "energia". Sendo inato e subjetivo, é portanto individualizante: um ator talentoso é um ator que não pode ser substituído, pois impõe sua marca pessoal ao personagem.
Todas estas características apreendidas pela observação antropológica combinam com aquela descrição do universo artístico de A. Parker: a escola que observei estava cheia de Doris, Ralphs e Cocos. Isto sugere que, por distantes que estes mundos pareçam, existem alguns momentos em que o trabalho do antropólogo e o do ator se tangenciam.
Quando Regina Casé, em um quadro da "TV Pirata", faz uma socióloga, utilizando uma série de termos do jargão científico, um gestual típico do meio acadêmico, idéias e maneiras de olhar não menos características, ela está lançando sobre os intelectuais um tipo de olhar semelhante àquele que lancei sobre os estudantes de teatro: um olhar que estranha aquilo que é familiar e próximo, e que ao fazê-lo permite decupar a realidade observada nos seus menores traços, permitindo um processo de reconstrução minucioso que recupera o real observado acrescentando-lhe uma nova dimensão - a intepretativa.
O olhar antropológico é exatamente isto: estranhar para conhecer melhor. H. Minner, num artigo clássico da antropologia, faz um estranho exercício: descreve a sociedade Nacirema, uma sociedade obcecada pela crença na doença e fealdade intrínsecas do corpo humano, e dominada pelos cuidados para com ele. Assim, desenvolvem os mais estranhos rituais, tais como a laceração diária da face com um instrumento cortante, para os homens; a introdução de um feixe de cerdas de porco untadas com uma substância mágica na boca, várias vezes ao dia, a falta da qual implica no abandono por parte de amigos e amantes; a existência de uma instituição especial em que se vai para morrer, o latipsoh; a consulta ao "escutador", uma espécie de feiticeiro que cura através de um suposto desenlace dos maus tratos infligidos pela mãe ao filho ainda em tenra idade; e muitos outros estranhos hábitos, que ao observador faziam supor que o traço mais característico da tribo fosse o sadomasoquismo, única explicação possível para os maus tratos a que estes nativos voluntariamente se submetiam em nome da saúde e da beleza.
O olhar antropológico treinado logo reconhece nesta descrição uma brincadeira: quantos homens não "laceram a face diariamente" (fazer a barba), quem não introduz cerdas de porco na boca com uma substância mágica para não perder amigos e amantes (escovar os dentes para evitar mau-hálito) e quem não conhece o latipsoh (hospital ao contrário) e o "escutador" (o psicanalista e seu complexo de Édipo)? Aliás, "nacirema" é "american" ao contrário...
Ângulo novo, realidade nova. É este estranhamento voluntário, controlado, marca registrada do olhar antropológico, que permite perceber facetas essenciais da realidade, a que estamos excessivamente acostumados para conhecer bem.É é esta observação cuidadosa do mundo, uma observação que estranha, decupa e recupera renovado o real que se exige do artista.
Por falar nisto, não é outra coisa que faz Tardieu em dois textos muito representativos do Teatro do Absurdo: "Um gesto por outro" e "Uma palavra por outra", duas verdadeiras teses antropológicas ambulantes. O que me faz pensar que talvez o teatro e a antropologia sejam como aqueles irmãos gêmeos separados as nascer, muito diferentes na educação que tiveram, mas portadores de uma semelhança essencial.
Mas a semelhança entre o teatro e a antropologia não se esgota no jeito de olhar o mundo, mesmo porque os atores e antropólogos não são apenas voyeurs, mas intérpretes que mergulham em mundos desconhecidos para apreendê-los de dentro. Esta viagem ao universo do outro, contudo, se tem encantos, também oferece riscos.
A antropologia batizou estes riscos de anthropological blues; para Roberto da Matta, anthropological blues é a sensação de solidão absoluta que toma conta do antropólogo quando, no processo de investigação do outro, sente-se temporariamente um exilado cultural, nem antropólogo, nem nativo, um híbrido perdido na fronteira de dois mundos culturais. Conhecer o outro é penetrar em outra lógica sem abrir mão da sua: paradoxo delicado, pois o movimento deve ter mão dupla. O antropólogo que vira índio para melhor fazer o seu trabalho não é mais que um antropólogo, portanto não fez o seu trabalho. Que o diga Carlos Castañeda...
A clássica associação entre arte e loucura é uma versão individualizada deste dilema cultural. O ator precisa compreender as motivações de um outro indivíduo, um ser fictício a quem precisa tornar real; para isso, deve empreender também uma viagem a um outro mundo, desta vez mais psíquico do que cultural., mas igualmente capaz de aprisionar o viajante. O ator que se metamorfoseia no personagem precisa ter absoluto controle sobre este processo, poder voltar a ser ator a qualquer momento. Caso contrário, não é mais um ser de mil faces, pois para trocar de máscaras é necessário um rosto que a envergue.
Uma arte e uma ciência; dois interesses, dois mundos, o mesmo olhar, o mesmo risco. Com contornos tão díspares, há muito em comum entre o teatro e a antropologia. Quando A. Parker olha para uma escola de teatro, ele faz um filme; posso olhar para este filme como sendo uma etnografia; Regina Casé transforma esta etnografia num quadro humorístico, e a sua forma de fazer teatro/televisão pode por sua vez ser objeto de uma tese antropológica. O jogo poderia prosseguir indefinidamente.
Mas, a cada início, é sempre bom lembrar que o filme e a tese sobre a escola de teatro viram de saída a mesma coisa. A sensibilidade artística apreende facetas sutis do real que se perdem nos hiatos da rigidez dos conceitos científicos, mas por sua vez impede que outras facetas, talvez grandes demais para a malha fina das coisas intuitivas, cheguem a ser consideradas. O método antropológico de observação do mundo tem muito de uma técnica que pode ser usada no aperfeiçoamento do mundo do ator.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 124/1990. A autora é Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ e do Curso de Formação de Atores da Faculdade da Cidade.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Os signos no teatro:
introdução à semiologia
da arte do espetáculo
Tadeuz Kowzan
(Devido à sua extensão, o artigo original está aqui um pouco reduzido e "editado", tendo sido extraído do livro "Semiologia do Teatro" - Editora Perspectiva, 1978).
* * *
A arte do espetáculo é, entre todas as artes e, talvez, entre todos os domínios da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza, variedade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação linguística, isto é, ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as quais o autor do texto quis evocar. Mas a palavra pode mudar seu valor. Quão inúmeras maneiras de pronunciar as palavras "eu te amo" podem significar tanto a paixão, quanto a indiferença, a ironia como a piedade! A mímica do rosto e o gesto da mão podem sublinhar a significação das palavras, desmenti-la, dar-lhe uma nuança particular. Isto não é tudo. Muita coisa depende da atitude corporal do ator, e de sua posição em relação aos coadjuvantes.
As palavras "eu te amo" possuem um valor emotivo e signicativo diferente, segundo sejam pronunciadas por uma pessoa negligentemente sentada em sua poltrona, um cigarro na boca (papel significativo suplementar do acessório), por um homem que abraça uma mulher, ou que está de costas para a pessoa a quem dirige estas palavras.
Tudo é signo na representação teatral. Uma coluna de papelão significa que a cena se desenrola diante de um palácio. A luz do projetor destaca um trono e ei-nos no interior do palácio. A coroa sobre a cabeça do ator é o signo da realeza, enquanto que as rugas e a brancura de seu rosto, obtidas graças à maquilagem, e sua caminhada arrastada, são signos de velhice. Enfim, o galope de cavalos intensificando-se nos bastidores é o signo de que um viajante se aproxima.
O espetáculo serve-se tanto da palavra como de sistemas de significação não-linguística. Utiliza-se tanto de signos auditivos como visuais. Aproveita os sistemas de signos destinados à comunicação entre os homens e os sistemas criados em função da atividade artística. Utiliza-se de signos tomados em toda parte: na natureza, na vida social, nas diferentes ocupações, em todos os domínios da Arte.
Se examinarmos, por curiosidade, a lista das artes "maiores" e artes "menores", em número de cem, estabelecida por Thomas Munro, é fácil constatar que cada uma delas pode encontrar seu lugar em uma representação teatral, aí desempenhando um papel semântico e que mais ou menos trinta, entre elas, ligam-se diretamente ao espetáculo. Praticamente, não há sistema de significação, não existe signo que não possa ser utilizado no espetáculo. A riqueza semiológica da arte do espetáculo explica, ao mesmo tempo, por que este domínio foi, de preferência, evitado pelos teóricos do signo. É por que riqueza e variedade querem dizer, neste caso, complexidade.
Os signos, no teatro, raramente se manifestam em estado puro. O simples exemplo das palavras "eu te amo" acabou de dizer-nos que o signo linguístico é acompanhado frequentemente do signo da entonação, do signo mímico, dos signos do movimento, e que todos os outros meios de expressão cênica - cenário,vestuário, maquilagem, ruídos etc. - atuam simultaneamente sobre o espectador, na qualidade de combinações de signos que se completam, se reforçam, se especificam mutuamente ou, então, que se contradizem.
A análise de um espetáculo, do ponto de vista semiológico, apresenta sérias dificuldades. Deve-se proceder a cortes horizontais ou verticais? Trata-se, antes de tudo, de separar-se os signos superpostos de diferentes sistemas, ou de dividir o espetáculo em unidades no seu desenvolvimento linear? Mas o espetáculo, e a maioria das combinações de signos, situam-se tanto no tempo como no espaço, o que torna a análise e a sistematização ainda mais complicadas.
Enfim...não procuraremos criar nomenclaturas e definições novas. Tentaremos escolher as nomenclaturas e definições que nos parecem mais racionais e, ao mesmo tempo, mais adaptadas ao nosso assunto, a saber, a semiologia do espetáculo.
1) Aceitamos o termo sem recorrer a outros termos do mesmo campo nocional;
2) Adotamos o esquema sassuriano significado e significante, dois componentes do signo (o significado corresponde ao conteúdo, o significante à expressão;
3) Quanto a classificação dos signos, aceitamos aquela que os divide em signos naturais e signos artificiais.
Este último ponto requer alguns comentários. A distinção citada aparece no "Vocabulário técnico e crítico da filosofia", de André Lalande (1ª ed., 1917). Eis o essencial de suas definições:
Signos naturais são aqueles onde a relação com a coisa significada não resulta senão das leis da natureza: por exemplo, a fumaça, signo de fogo. Signos artificiais, aqueles onde a relação com a coisa significada repousa numa decisão voluntária e, frequentemente, coletiva.
Esta distinção fundamental entre signos naturais e signos artificiais, adotada por vários autores, repousa num princípio bastante claro. Tudo é signo de qualquer coisa, em nós mesmos e no mundo que nos rodeia, na natureza e na atividade dos seres vivos. Os signos naturais são aqueles que nascem e existem sem participação da vontade; eles têm caráter de signos para aquele que os recebe, que os interpreta, mas são emitidos involuntariamente. Esta categoria abarca principalmente os fenômenos da natureza (relâmpago: signo de tempestade; febre: signo de uma doença; cor da pele: signo de uma raça) e as ações dos seres vivos não destinadas a significar (reflexos).
Os signos artificiais são criados pelo homem ou pelo animal, voluntariamente, para assinalar qualquer coisa, para comunicar com alguém. Modificando um pouco as definições de Lalande, pode-se afirmar que é ao nível da emissão, e não da percepção, que se situa a diferença essencial entre signos naturais e signos artificiais, e que esta diferença é determinada pela ausência ou existência da vontade de emitir um signo. Mas, apesar de bastante clara, esta distinção não resolve todos os problemas práticos.
Tomemos um exemplo de signo linguístico. A exlamação "ai", de um fumante que queimou a mão com seu cigarro, é um signo natural. Mas seu xingamento, enunciado na ocasião, é um signo natural ou artificial? Isto depende de certas circunstâncias, como os hábitos linguísticos daquele que os pronuncia, a presença ou ausência de testemunhas. Tomemos um signo procedente da mímica. Em que medida uma expressão de desgosto é um signo natural (reflexo involuntário) ou um signo artificial (ato voluntário para comunicar o desgosto)?
Os signos de que se serve a arte teatral pertencem todos à categoria dos signos artificiais. São signos artificiais por excelência. Resultam de um processo voluntário, são criados, geralmente, com premeditação, sua finalidade é a de comunicar no próprio instante. Isto não é nada extraordinário numa arte que não pode existir sem público. Emitidos voluntariamente, com plena consciência de comunicar, os signos teatrais são plenamente funcionais. A arte teatral faz uso dos signos extraídos de todas as manifestações da natureza e de todas as atividades humanas.
Mas, uma vez utilizados no teatro, cada um destes signos obtém um valor significativo bem mais pronunciado que no seu emprego primitivo. O espetáculo transforma os signos naturais em signos artificiais (o relâmpago); daí seu poder de "artificializar" os signos. Mesmo que eles não sejam, na vida, senão simples reflexos, tornam-se, no teatro, signos voluntários. Mesmo que na vida não tenham função comunicativa, obtém esta função, necessariamente, em cena.
Por exemplo: o solilóquio de um sábio que procura formular seus pensamentos, ou de uma pessoa em um estado de superexcitação nervosa, compõe-se de signos linguísticos. Logo, de signos artificiais, mas sem intenção de comunicar. Pronunciadas em cena, as mesmas palavras reencontram seu papel comunicativo, o monólogo do sábio ou da personagem, em estado de raiva, não tem outra intenção senão a de comunicar aos espectadores os seus pensamentos ou seu estado emotivo.
Acabamos de afirmar que todos os signos de que a arte teatral se serve são signos artificiais. Isto não exclui a existência, em uma representação teatral, de signos naturais. Os meios e as técnicas do teatro estão demasiadamente enraizados na vida para que os signos naturais possam ser inteiramente eliminados. Na dicção e na mímica de um ator, os hábitos estritamente pessoais são vizinhos das nuanças criadas voluntariamente e os gestos conscientes mesclados de movimentos reflexos. Os signos naturais confundem-se, neste caso, com os signos artificiais. Mas as complicações para o teórico vão ainda mais longe.
A voz trêmula de um jovem ator interpretando um velho é um signo artificial. Contrariamente, a voz trêmula de um ator octagenário, não tendo sido criada voluntariamente, é um signo natural tanto na vida como na cena. Mas ela é, ao mesmo tempo, um signo empregado voluntária e conscientemente na medida em que este ator interpreta uma personagem muito idosa. Esta voz está presente não pela vontade do ator, que não pode falar de outro modo; sua voz torna-se signo artificial pela vontade do diretor que escolheu esse ator para este papel. Vemos então que a escolha do ator para um papel ou a escolha da peça em função de um ator, escolha efetuada pelo seu físico (expressão do olhar, voz, idade, porte, constitução, temperamento, tudo aquilo que entra na noção de emprego) já é um ato semântico, visando obter os valores mais adequados às intenções do autor ou do diretor.
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introdução à semiologia
da arte do espetáculo
Tadeuz Kowzan
(Devido à sua extensão, o artigo original está aqui um pouco reduzido e "editado", tendo sido extraído do livro "Semiologia do Teatro" - Editora Perspectiva, 1978).
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A arte do espetáculo é, entre todas as artes e, talvez, entre todos os domínios da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza, variedade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação linguística, isto é, ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as quais o autor do texto quis evocar. Mas a palavra pode mudar seu valor. Quão inúmeras maneiras de pronunciar as palavras "eu te amo" podem significar tanto a paixão, quanto a indiferença, a ironia como a piedade! A mímica do rosto e o gesto da mão podem sublinhar a significação das palavras, desmenti-la, dar-lhe uma nuança particular. Isto não é tudo. Muita coisa depende da atitude corporal do ator, e de sua posição em relação aos coadjuvantes.
As palavras "eu te amo" possuem um valor emotivo e signicativo diferente, segundo sejam pronunciadas por uma pessoa negligentemente sentada em sua poltrona, um cigarro na boca (papel significativo suplementar do acessório), por um homem que abraça uma mulher, ou que está de costas para a pessoa a quem dirige estas palavras.
Tudo é signo na representação teatral. Uma coluna de papelão significa que a cena se desenrola diante de um palácio. A luz do projetor destaca um trono e ei-nos no interior do palácio. A coroa sobre a cabeça do ator é o signo da realeza, enquanto que as rugas e a brancura de seu rosto, obtidas graças à maquilagem, e sua caminhada arrastada, são signos de velhice. Enfim, o galope de cavalos intensificando-se nos bastidores é o signo de que um viajante se aproxima.
O espetáculo serve-se tanto da palavra como de sistemas de significação não-linguística. Utiliza-se tanto de signos auditivos como visuais. Aproveita os sistemas de signos destinados à comunicação entre os homens e os sistemas criados em função da atividade artística. Utiliza-se de signos tomados em toda parte: na natureza, na vida social, nas diferentes ocupações, em todos os domínios da Arte.
Se examinarmos, por curiosidade, a lista das artes "maiores" e artes "menores", em número de cem, estabelecida por Thomas Munro, é fácil constatar que cada uma delas pode encontrar seu lugar em uma representação teatral, aí desempenhando um papel semântico e que mais ou menos trinta, entre elas, ligam-se diretamente ao espetáculo. Praticamente, não há sistema de significação, não existe signo que não possa ser utilizado no espetáculo. A riqueza semiológica da arte do espetáculo explica, ao mesmo tempo, por que este domínio foi, de preferência, evitado pelos teóricos do signo. É por que riqueza e variedade querem dizer, neste caso, complexidade.
Os signos, no teatro, raramente se manifestam em estado puro. O simples exemplo das palavras "eu te amo" acabou de dizer-nos que o signo linguístico é acompanhado frequentemente do signo da entonação, do signo mímico, dos signos do movimento, e que todos os outros meios de expressão cênica - cenário,vestuário, maquilagem, ruídos etc. - atuam simultaneamente sobre o espectador, na qualidade de combinações de signos que se completam, se reforçam, se especificam mutuamente ou, então, que se contradizem.
A análise de um espetáculo, do ponto de vista semiológico, apresenta sérias dificuldades. Deve-se proceder a cortes horizontais ou verticais? Trata-se, antes de tudo, de separar-se os signos superpostos de diferentes sistemas, ou de dividir o espetáculo em unidades no seu desenvolvimento linear? Mas o espetáculo, e a maioria das combinações de signos, situam-se tanto no tempo como no espaço, o que torna a análise e a sistematização ainda mais complicadas.
Enfim...não procuraremos criar nomenclaturas e definições novas. Tentaremos escolher as nomenclaturas e definições que nos parecem mais racionais e, ao mesmo tempo, mais adaptadas ao nosso assunto, a saber, a semiologia do espetáculo.
1) Aceitamos o termo sem recorrer a outros termos do mesmo campo nocional;
2) Adotamos o esquema sassuriano significado e significante, dois componentes do signo (o significado corresponde ao conteúdo, o significante à expressão;
3) Quanto a classificação dos signos, aceitamos aquela que os divide em signos naturais e signos artificiais.
Este último ponto requer alguns comentários. A distinção citada aparece no "Vocabulário técnico e crítico da filosofia", de André Lalande (1ª ed., 1917). Eis o essencial de suas definições:
Signos naturais são aqueles onde a relação com a coisa significada não resulta senão das leis da natureza: por exemplo, a fumaça, signo de fogo. Signos artificiais, aqueles onde a relação com a coisa significada repousa numa decisão voluntária e, frequentemente, coletiva.
Esta distinção fundamental entre signos naturais e signos artificiais, adotada por vários autores, repousa num princípio bastante claro. Tudo é signo de qualquer coisa, em nós mesmos e no mundo que nos rodeia, na natureza e na atividade dos seres vivos. Os signos naturais são aqueles que nascem e existem sem participação da vontade; eles têm caráter de signos para aquele que os recebe, que os interpreta, mas são emitidos involuntariamente. Esta categoria abarca principalmente os fenômenos da natureza (relâmpago: signo de tempestade; febre: signo de uma doença; cor da pele: signo de uma raça) e as ações dos seres vivos não destinadas a significar (reflexos).
Os signos artificiais são criados pelo homem ou pelo animal, voluntariamente, para assinalar qualquer coisa, para comunicar com alguém. Modificando um pouco as definições de Lalande, pode-se afirmar que é ao nível da emissão, e não da percepção, que se situa a diferença essencial entre signos naturais e signos artificiais, e que esta diferença é determinada pela ausência ou existência da vontade de emitir um signo. Mas, apesar de bastante clara, esta distinção não resolve todos os problemas práticos.
Tomemos um exemplo de signo linguístico. A exlamação "ai", de um fumante que queimou a mão com seu cigarro, é um signo natural. Mas seu xingamento, enunciado na ocasião, é um signo natural ou artificial? Isto depende de certas circunstâncias, como os hábitos linguísticos daquele que os pronuncia, a presença ou ausência de testemunhas. Tomemos um signo procedente da mímica. Em que medida uma expressão de desgosto é um signo natural (reflexo involuntário) ou um signo artificial (ato voluntário para comunicar o desgosto)?
Os signos de que se serve a arte teatral pertencem todos à categoria dos signos artificiais. São signos artificiais por excelência. Resultam de um processo voluntário, são criados, geralmente, com premeditação, sua finalidade é a de comunicar no próprio instante. Isto não é nada extraordinário numa arte que não pode existir sem público. Emitidos voluntariamente, com plena consciência de comunicar, os signos teatrais são plenamente funcionais. A arte teatral faz uso dos signos extraídos de todas as manifestações da natureza e de todas as atividades humanas.
Mas, uma vez utilizados no teatro, cada um destes signos obtém um valor significativo bem mais pronunciado que no seu emprego primitivo. O espetáculo transforma os signos naturais em signos artificiais (o relâmpago); daí seu poder de "artificializar" os signos. Mesmo que eles não sejam, na vida, senão simples reflexos, tornam-se, no teatro, signos voluntários. Mesmo que na vida não tenham função comunicativa, obtém esta função, necessariamente, em cena.
Por exemplo: o solilóquio de um sábio que procura formular seus pensamentos, ou de uma pessoa em um estado de superexcitação nervosa, compõe-se de signos linguísticos. Logo, de signos artificiais, mas sem intenção de comunicar. Pronunciadas em cena, as mesmas palavras reencontram seu papel comunicativo, o monólogo do sábio ou da personagem, em estado de raiva, não tem outra intenção senão a de comunicar aos espectadores os seus pensamentos ou seu estado emotivo.
Acabamos de afirmar que todos os signos de que a arte teatral se serve são signos artificiais. Isto não exclui a existência, em uma representação teatral, de signos naturais. Os meios e as técnicas do teatro estão demasiadamente enraizados na vida para que os signos naturais possam ser inteiramente eliminados. Na dicção e na mímica de um ator, os hábitos estritamente pessoais são vizinhos das nuanças criadas voluntariamente e os gestos conscientes mesclados de movimentos reflexos. Os signos naturais confundem-se, neste caso, com os signos artificiais. Mas as complicações para o teórico vão ainda mais longe.
A voz trêmula de um jovem ator interpretando um velho é um signo artificial. Contrariamente, a voz trêmula de um ator octagenário, não tendo sido criada voluntariamente, é um signo natural tanto na vida como na cena. Mas ela é, ao mesmo tempo, um signo empregado voluntária e conscientemente na medida em que este ator interpreta uma personagem muito idosa. Esta voz está presente não pela vontade do ator, que não pode falar de outro modo; sua voz torna-se signo artificial pela vontade do diretor que escolheu esse ator para este papel. Vemos então que a escolha do ator para um papel ou a escolha da peça em função de um ator, escolha efetuada pelo seu físico (expressão do olhar, voz, idade, porte, constitução, temperamento, tudo aquilo que entra na noção de emprego) já é um ato semântico, visando obter os valores mais adequados às intenções do autor ou do diretor.
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sexta-feira, 9 de abril de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Colapso"
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A lama que emerge
Lionel Fischer
Presidente da Morvhan & Calidh, Bonaldo Calidh (Osmar Prado) é um dos homens mais poderosos do país, pretende negociar armas com os iraquianos e cultiva o hábito de matar baleias azuis. Tuta Morvahn (Lena Brito), senhora da alta sociedade, é casada com o embaixador Wallace Morvhan (André Mattos), sócio da Morvhan & Calidh. Atriz, modelo e manequim, Cizâniaa (Emanuelle Araújo) namora Tim Alessandra (Ricardo Tozzi), autor de duas peças jamais encenadas e que, por intermédio de Cizâniia, torna-se biógrafo de Bonaldo Calidh. Cumpre ainda registrar que Bonaldo é amante de Tuta, que por sua vez torna-se amante de Cizâniaa, enquanto Wallace tenta seduzir o jovem Tim, sendo tais "deslizes" do conhecimento geral.
Embora promíscuo, tal contexto nada teria de muito especial, posto que os ricos e poderosos, de uma maneira geral, seguem códigos de conduta muito mais em consonância com seus impulsos do que com os valores éticos e morais supostamente imprescindíveis a qualquer sociedade. No entanto, assim como a superfície de um lago de cristalinas águas não exclui a possibilidade de ocultar, em suas profundezas, densas camadas de lodo, aqui ocorre exatamente um progressivo mergulho em algumas das áreas mais pútridas da natureza humana, tais como a hipocrisia, a desmedida ambição e uma completa indiferença no tocante ao outro, pouco importando os meios desde que o objetivo pretendido seja consumado.
Eis o que me parece essencial destacar em "Colapso", pois ir além privaria o espectador de muitas surpresas contidas na peça de Hamilton Vaz Pereira, que acaba de estrear no Teatro Poeira. Dividido em nove cenas - "R.S.V.P", "Jacinto De Thormes", "Manhã seguinte", "Aula de dança", "Na cama de Cizâniaa", "Locomotivas", "Pink, xadrez e shamú", "O velório de W. Morvhan" e "A nave de Caronte", o texto chega ao palco com direção de Hamilton, também responsável pela música.
Tendo assistido a 99% dos textos de Hamilton por ele encenados, este me parece ser o mais surpreendente, já que empreende uma espécie de radiografia de nossa sociedade ao longo do século XX, ao invés de investir "apenas" em temas intrinsicamente ligados às suas questões pessoais. Isto não significa, em absoluto, que até agora Hamilton tenha tido uma relação alienada com o mundo, priorizando somente suas aspirações, inquietações e perplexidades, ainda que as mesmas tenham sido compartilhadas por milhares de espectadores ao londo de quase quatro décadas de trabalho. Mas aqui torna-se evidente que o autor alargou seu universo temático, ao enveredar por um caminho mais politizado, mas sem renunciar ao humor crítico sempre presente em seus textos.
Contendo ótimos personagens, diálogos ferinos e uma trama repleta de surpresas, não raro desconcertantes, "Colapso" recebeu ótima versão cênica de Hamilton Vaz Pereira, o que não chega a causar nenhuma surpresa, pois estamos diante de um dos mais brilhantes encenadores nacionais. Valendo-se de marcas tão criativas quanto imprevistas, Hamilton exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco.
Na pele de Bonaldo, Osmar Prado consegue materializar, de forma irrepreensível, o que de mais abjeto pode haver em alguém que se julga superior a tudo que o cerca e, portanto, considera-se imune a qualquer tipo de punição por seus delitos. Possuidor de uma retórica falaciosa e de uma simpatia contagiante, trata-se de um tipo realmente muito perigoso. André Mattos exibe a mesma eficiência vivendo Wallace, outro ser abjeto, tão corrupto quanto seu sócio, e cujo cinismo e lubricidade só não nos provocam total repulsa graças à habilidade do ator em manipular tais predicados valendo-se de divertido cinismo. Eis outro tipo igualmente perigoso. Lena Brito constrói uma Tuta hilariante, aparentemente parva e subjugada pelos acontecimentos, quando no fundo tem uma visão bastante precisa da lama que a certa. De novo, um tipo muito perigoso. E a mesma periculosidade está presente nas personalidades de Cizâniaa e Tim, interpretados com vigor e sensibilidade por Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi.
Com relação à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a música de Hamilton, a iluminação de Jorginho de Carvalho, a cenografia de Fernando Mello da Costa, os figurinos de Inês Salgado e a trilha sonora criada por Mário Manga em parceria com o encenador, certamente determinantes para o êxito do presente espetáculo.
COLAPSO - Texto e direção de Hamilton Vaz Pereira. Com Osmar Prado, André Mattos, Lena Brito, Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
"Colapso"
...............................
A lama que emerge
Lionel Fischer
Presidente da Morvhan & Calidh, Bonaldo Calidh (Osmar Prado) é um dos homens mais poderosos do país, pretende negociar armas com os iraquianos e cultiva o hábito de matar baleias azuis. Tuta Morvahn (Lena Brito), senhora da alta sociedade, é casada com o embaixador Wallace Morvhan (André Mattos), sócio da Morvhan & Calidh. Atriz, modelo e manequim, Cizâniaa (Emanuelle Araújo) namora Tim Alessandra (Ricardo Tozzi), autor de duas peças jamais encenadas e que, por intermédio de Cizâniia, torna-se biógrafo de Bonaldo Calidh. Cumpre ainda registrar que Bonaldo é amante de Tuta, que por sua vez torna-se amante de Cizâniaa, enquanto Wallace tenta seduzir o jovem Tim, sendo tais "deslizes" do conhecimento geral.
Embora promíscuo, tal contexto nada teria de muito especial, posto que os ricos e poderosos, de uma maneira geral, seguem códigos de conduta muito mais em consonância com seus impulsos do que com os valores éticos e morais supostamente imprescindíveis a qualquer sociedade. No entanto, assim como a superfície de um lago de cristalinas águas não exclui a possibilidade de ocultar, em suas profundezas, densas camadas de lodo, aqui ocorre exatamente um progressivo mergulho em algumas das áreas mais pútridas da natureza humana, tais como a hipocrisia, a desmedida ambição e uma completa indiferença no tocante ao outro, pouco importando os meios desde que o objetivo pretendido seja consumado.
Eis o que me parece essencial destacar em "Colapso", pois ir além privaria o espectador de muitas surpresas contidas na peça de Hamilton Vaz Pereira, que acaba de estrear no Teatro Poeira. Dividido em nove cenas - "R.S.V.P", "Jacinto De Thormes", "Manhã seguinte", "Aula de dança", "Na cama de Cizâniaa", "Locomotivas", "Pink, xadrez e shamú", "O velório de W. Morvhan" e "A nave de Caronte", o texto chega ao palco com direção de Hamilton, também responsável pela música.
Tendo assistido a 99% dos textos de Hamilton por ele encenados, este me parece ser o mais surpreendente, já que empreende uma espécie de radiografia de nossa sociedade ao longo do século XX, ao invés de investir "apenas" em temas intrinsicamente ligados às suas questões pessoais. Isto não significa, em absoluto, que até agora Hamilton tenha tido uma relação alienada com o mundo, priorizando somente suas aspirações, inquietações e perplexidades, ainda que as mesmas tenham sido compartilhadas por milhares de espectadores ao londo de quase quatro décadas de trabalho. Mas aqui torna-se evidente que o autor alargou seu universo temático, ao enveredar por um caminho mais politizado, mas sem renunciar ao humor crítico sempre presente em seus textos.
Contendo ótimos personagens, diálogos ferinos e uma trama repleta de surpresas, não raro desconcertantes, "Colapso" recebeu ótima versão cênica de Hamilton Vaz Pereira, o que não chega a causar nenhuma surpresa, pois estamos diante de um dos mais brilhantes encenadores nacionais. Valendo-se de marcas tão criativas quanto imprevistas, Hamilton exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco.
Na pele de Bonaldo, Osmar Prado consegue materializar, de forma irrepreensível, o que de mais abjeto pode haver em alguém que se julga superior a tudo que o cerca e, portanto, considera-se imune a qualquer tipo de punição por seus delitos. Possuidor de uma retórica falaciosa e de uma simpatia contagiante, trata-se de um tipo realmente muito perigoso. André Mattos exibe a mesma eficiência vivendo Wallace, outro ser abjeto, tão corrupto quanto seu sócio, e cujo cinismo e lubricidade só não nos provocam total repulsa graças à habilidade do ator em manipular tais predicados valendo-se de divertido cinismo. Eis outro tipo igualmente perigoso. Lena Brito constrói uma Tuta hilariante, aparentemente parva e subjugada pelos acontecimentos, quando no fundo tem uma visão bastante precisa da lama que a certa. De novo, um tipo muito perigoso. E a mesma periculosidade está presente nas personalidades de Cizâniaa e Tim, interpretados com vigor e sensibilidade por Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi.
Com relação à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a música de Hamilton, a iluminação de Jorginho de Carvalho, a cenografia de Fernando Mello da Costa, os figurinos de Inês Salgado e a trilha sonora criada por Mário Manga em parceria com o encenador, certamente determinantes para o êxito do presente espetáculo.
COLAPSO - Texto e direção de Hamilton Vaz Pereira. Com Osmar Prado, André Mattos, Lena Brito, Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
Ainda Oscar Wilde...
Lionel Fischer
Sou apaixonado por OscarWilde, ainda que eventualmente discordando de algumas de suas idéias - mas se concordasse com todas, tal admiração seria risível, posto que estaria colocando o genial artista (mestre dos aforismos e paradoxos) em um pedestal que ele seria o primeiro a renegar.
Seja como for, ontem coloquei aqui o admirável artigo de Harold Bloom sobre Wilde, apoiado em uma peça teatral ("A importância de ser prudente") e em dois ensaios: "A decadência da mentira" e "A alma do homem sob o socialismo". E é deste último que reproduzo alguns poucos fragmentos, cabendo registrar que a obra se encontra à venda em bancas de jornais por apenas R$ 8,50!!! Ou seja, o equivalente a uma coca e um sanduíche qualquer.
Portanto, recomendo que se privem por um único dia das referidas delícias e leiam o dito ensaio (Coleção L&PM POCKET), de apenas 68 páginas. Certamente ele haverá de iluminar suas almas, como ilumina a minha sempre que o releio.
Lionel Fischer
Sou apaixonado por OscarWilde, ainda que eventualmente discordando de algumas de suas idéias - mas se concordasse com todas, tal admiração seria risível, posto que estaria colocando o genial artista (mestre dos aforismos e paradoxos) em um pedestal que ele seria o primeiro a renegar.
Seja como for, ontem coloquei aqui o admirável artigo de Harold Bloom sobre Wilde, apoiado em uma peça teatral ("A importância de ser prudente") e em dois ensaios: "A decadência da mentira" e "A alma do homem sob o socialismo". E é deste último que reproduzo alguns poucos fragmentos, cabendo registrar que a obra se encontra à venda em bancas de jornais por apenas R$ 8,50!!! Ou seja, o equivalente a uma coca e um sanduíche qualquer.
Portanto, recomendo que se privem por um único dia das referidas delícias e leiam o dito ensaio (Coleção L&PM POCKET), de apenas 68 páginas. Certamente ele haverá de iluminar suas almas, como ilumina a minha sempre que o releio.
* * *
A alma do homem sob o socialismo
(Fragmentos)
EMOÇÕES - As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia.
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SENHORES - Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam.
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CARIDADE - A caridade cria uma legião de pecados.
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POBREZA - O homem pobre não tem em si mesmo nenhuma importância. É apenas o átomo infinitesimal de uma força que, longe de tê-lo em consideração, esmaga-o. Na verdade prefere-o esmagado, de vez que nesse caso ele é bem mais obediente.
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DESOBEDIÊNCIA - A desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso da História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião.
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PARCIMÔNIA - Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar a um homem que esteja passando fome que coma menos.
ESMOLAS - É mais seguro pedir do que tomar, mas é bem mais digno tomar do que pedir.
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PERFEIÇÃO - A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é. O que um homem realmente tem, é o que está nele. O que está fora dele deveria ser coisa sem importância.
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AUTORIDADE - Onde há um homem que exerça autoridade, há sempre um outro homem que combate a autoridade.
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SEGREDO - "Conhece-te a ti mesmo", estava escrito às portas do mundo antigo; "Sê tu mesmo", deverá estar escrito às portas do mundo novo. E a mensagem de Cristo ao homem era simplesmente "Sê tu mesmo". Eis o segredo de Cristo.
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DINHEIRO - Na sociedade, há apenas uma classe que pensa mais em dinheiro do que os ricos, e é a dos pobres. Estes não podem pensar em mais nada. Aí está o infortúnio de ser pobre.
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DIFERENÇA - O Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo.
TRABALHO - Varrer durante oito horas uma esquina lamacenta, num dia açoitado pelo vento, é uma ocupação desagradável. Varrê-la com dignidade mental, moral ou física, parece-me impossível. Varrê-la com satisfação é de estarrecer. O homem foi feito para algo melhor do que estar imerso na imundície. Todo trabalho desta sorte deveria ser feito por máquinas.
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INOVAÇÃO - A única coisa de que o público não gosta é inovação. É extremamente avesso a qualquer tentativa de se ampliar o universo temático na criação, quando, no entanto, dessa constante ampliação depende em larga medida a vitalidade e o progresso da Arte.
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ARTISTA - O verdadeiro artista é um homem que acredita absolutamente em si mesmo, porque é absolutamente ele mesmo.
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MORBIDEZ - Chamar um artista de mórbido porque trata do tema da morbidez é um disparate tão grande quanto chamar Shakespeare de louco porque escreveu Rei Lear.
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PROGRESSO - Antigamente, os homens tinham a roda de torturas. Hoje têm a Imprensa. Isto certamente é um progresso.
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CURIOSIDADE - O público tem uma curiosidade insaciável de conhecer tudo, exceto o que é digno de se conhecer. O Jornalismo, ciente disso, satisfaz suas exigências.
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AVALIAÇÃO - As idéias que uma pessoa culta tem da Arte são extraídas do que tem sido a Arte, ao passo que a obra de arte inovadora é bela por ser o que a Arte nunca foi; portanto, avaliá-la segundo critérios do passado é avaliá-la segundo critérios de cuja recusa depende sua verdadeira perfeição.
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NECESSIDADE - Não há necessidade alguma de separar o monarca da plebe: toda autoridade é igualmente má. Há três espécies de déspotas. Há o que tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo.
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TEMPOS - O passado é o que o homem não deveria ter sido. O presente é o que o homem não deve ser. O futuro é o que os artistas são.
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FRACASSO - Os sistemas que fracassam são aqueles que se fiam na continuidade invariada da natureza humana, e não em seu crescimento e aperfeiçoamento. O erro de Luís XIV foi ter julgado que ela seria sempre a mesma. A conseqüência de seu erro foi a Revolução Francesa. Foi uma conseqüência notável, como são notáveis todas as conseqüências dos erros governamentais.
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EGOÍSMO - Egoísmo não significa viver como se deseja, mas sim pedir aos outros que vivam como se deseja. Não é egoísmo pensar por si mesmo. Um homem que não pensa por si mesmo, simplesmente não pensa.
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SOLIDARIEDADE - Qualquer um pode se sentir solidário na dor sofrida por um amigo, mas é preciso uma natureza muito superior - a natureza de um verdadeiro Individualista - para se sentir solidário no êxito alcançado por um amigo.
* * *
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Prêmio APTR 2010
A 4ª edição do Prêmio APTR de Teatro acontece no dia 11 de maio, no Teatro Fashion Mall. A seguir, a relação completa dos indicados.
AUTOR
Cristiane Jatahy - "Corte seco"
Flávio Marinho - "Além do Arco-Íris"
Lícia Manzo - "História de nós 2"
Maitê Proença e Luis Carlos Góes - "As meninas"
Rodrigo Nogueira - "Play"
DIRETOR
Amir Haddad - "As meninas"
Charles Möeller - "O despertar da primavera"
Enrique Diaz - "In On It"
João das Neves - "A farsa da boa preguiça"
CENÓGRAFO
Bia Junqueira - "Na solidão dos campos de algodão"
Cristina Novaes - "As meninas"
Fernando Mello da Costa e Rostand de Albuquerque - "Moby Dick"
Rogério Falcão - "O despertar da primavera"
FIGURINOS
Beth Filipecki - "As meninas"
Kalma Murtinho - "Gloriosa"
Kika Lopes - "Moby Dick"
Marcelo Pies - "O despertar da primavera"
ILUMINAÇÃO
Paulo César Medeiros - "O despertar da primavera"
Paulo César Medeiros - "As meninas"
Maneco Quinderé - "Moby Dick"
Rodrigo Portella - "Na solidão dos campos de algodão"
ATOR PROTAGONISTA
André Diaz - "Avenida Q."
Armando Babaioff - "Na solidão dos campos de algodão"
Emílio de Melo - "In On It"
Fernando Eiras - "In On It"
Guilherme Leme - "O estrangeiro"
Roberto Bomtempo - Espia uma mulher que se mata"
ATRIZ PROTAGONISTA
Beth Goulart - "Simplesmente eu, Clarice"
Fernanda Montenegro - "Viver sem tempos mortos"
Marília Pêra - "Gloriosa"
Sabrina Korgut - "Avenida Q."
ATOR COADJUVANTE
Cristiano Gualda - "Ou, oui...a França é aqui"
Ernani Moraes - "A farsa da boa preguiça"
Rodrigo Pandolfo - "O despertar da primavera"
Telmo Fernandes - "Tom y Vinícius"
ATRIZ COADJUVANTE
Claudia Neto - "Avenida Q."
Patrícia Pinho - "As meninas"
Solange Badim - "Oui, oui...a França é aqui"
Suzana Ribeiro - "Estranho casal"
MELHOR ESPETÁCULO
"A farsa da boa preguiça"
"Avenida Q."
"In On It"
"O despertar da primavera"
CATEGORIA ESPECIAL
Beto Lemos - música de "Kabul"
Bia Radunski - programação do Espaço Sesc
Liliane Secco - direção musical de "Esta é a nossa canção"
Marcelo Claret - desenho de som de "O despertar da primavera"
A 4ª edição do Prêmio APTR de Teatro acontece no dia 11 de maio, no Teatro Fashion Mall. A seguir, a relação completa dos indicados.
AUTOR
Cristiane Jatahy - "Corte seco"
Flávio Marinho - "Além do Arco-Íris"
Lícia Manzo - "História de nós 2"
Maitê Proença e Luis Carlos Góes - "As meninas"
Rodrigo Nogueira - "Play"
DIRETOR
Amir Haddad - "As meninas"
Charles Möeller - "O despertar da primavera"
Enrique Diaz - "In On It"
João das Neves - "A farsa da boa preguiça"
CENÓGRAFO
Bia Junqueira - "Na solidão dos campos de algodão"
Cristina Novaes - "As meninas"
Fernando Mello da Costa e Rostand de Albuquerque - "Moby Dick"
Rogério Falcão - "O despertar da primavera"
FIGURINOS
Beth Filipecki - "As meninas"
Kalma Murtinho - "Gloriosa"
Kika Lopes - "Moby Dick"
Marcelo Pies - "O despertar da primavera"
ILUMINAÇÃO
Paulo César Medeiros - "O despertar da primavera"
Paulo César Medeiros - "As meninas"
Maneco Quinderé - "Moby Dick"
Rodrigo Portella - "Na solidão dos campos de algodão"
ATOR PROTAGONISTA
André Diaz - "Avenida Q."
Armando Babaioff - "Na solidão dos campos de algodão"
Emílio de Melo - "In On It"
Fernando Eiras - "In On It"
Guilherme Leme - "O estrangeiro"
Roberto Bomtempo - Espia uma mulher que se mata"
ATRIZ PROTAGONISTA
Beth Goulart - "Simplesmente eu, Clarice"
Fernanda Montenegro - "Viver sem tempos mortos"
Marília Pêra - "Gloriosa"
Sabrina Korgut - "Avenida Q."
ATOR COADJUVANTE
Cristiano Gualda - "Ou, oui...a França é aqui"
Ernani Moraes - "A farsa da boa preguiça"
Rodrigo Pandolfo - "O despertar da primavera"
Telmo Fernandes - "Tom y Vinícius"
ATRIZ COADJUVANTE
Claudia Neto - "Avenida Q."
Patrícia Pinho - "As meninas"
Solange Badim - "Oui, oui...a França é aqui"
Suzana Ribeiro - "Estranho casal"
MELHOR ESPETÁCULO
"A farsa da boa preguiça"
"Avenida Q."
"In On It"
"O despertar da primavera"
CATEGORIA ESPECIAL
Beto Lemos - música de "Kabul"
Bia Radunski - programação do Espaço Sesc
Liliane Secco - direção musical de "Esta é a nossa canção"
Marcelo Claret - desenho de som de "O despertar da primavera"
Oscar Wilde
(1854-1900)
Harold Bloom
Wilde fomentou uma considerável tradição oral, em parte, sem dúvida, apócrifa. Seu neto, Merlin Holland, relembra, de modo fascinante, que Oscar Wilde "confessava que vivia sob constante pavor de não ser mal compreendido". Quando, aos 28 anos, Oscar, o Esteta, apresentou-se à alfândega da cidade de Nova York, consta que tenha dito: "Nada tenho a declarar, exceto o meu belo gênio". Se não o disse, deveria tê-lo feito, assim como deveria ter expressado a sua decepção com o Oceano Atlântico: "Não chegou a rugir".
Para W. B. Yeats, Wilde estava sempre representando o papel de Wilde, mas o mesmo se aplica a Lorde Byron, Hemingway e (ouso dizê-lo) ao ilustre Goethe. Merlin Holland atribui ao avô o papel de Fausto, ainda que não fique claro se seria o Fausto de Marlowe, Goethe ou Mann. De vez que meu assunto é o gênio de Wilde, e o divino Oscar é, ao mesmo tempo, protéico e objeto de minha adoração literária ao longo da vida, não vou me restringir a uma única obra, ainda que isso contrarie os meus procedimentos neste livro. O gênio de Wilde aparece com mais força em "A importância de ser prudente" e dois ensaios magníficos - "A alma do homem sob o socialismo" e "A decadência da mentira". Passo a me referir a esses três trabalhos, aleatoriamente, e recorro a outras paragens de sua vida e obra.
O ponto fundamental a ser considerado em se tratando de Wilde foi definido por Jorge Luis Borges: o grande Esteta estava quase sempre certo. A minha profissão suicida, outrora o ensino da literatura ficcional no mundo anglófono, ainda estaria viva, se tivesse aprendido a lição de Wilde: "Toda poesia medíocre é sincera". Infelizmente, é tarde demais, e os melhores alunos, com toda razão, fogem dos docentes que ainda não morreram, a despeito de facções.
Precisamos de Wilde, mesmo nesse momento de fracasso; quem mais pode nos alegrar, em tempos tão sinistros? Descendo o poço de uma mina, em Leadville, Colorado, durante uma visita aos Estados Unidos, Oscar perfurou uma parede e, em seguida, voltou à superfície, acompanhando os mineiros e suas namoradas a um cassino: "Em um canto havia um pianista, sentado ao piano, acima do qual se via um cartaz: 'Favor não fuzilar o pianista; ele faz o que pode'. Fiquei chocado diante da constatação de que a arte medíocre merece pena de morte".
Arte medíocre hoje em dia é estudada em universidade, exaltada na mídia e, supostamente, faz bem à nossa consciência política. Wilde, exato em suas professias, um século após a sua morte, não tem rival, ao descrever a nossa condição literária: "Antigamente, livros eram escritos por homens de letras e lidos pelo público. Hoje em dia, livros são escritos pelo público e lidos por ninguém".
Wilde ilustra os dois principais sentidos da noção de gênio: uma força geradora inata, e um outro eu, que busca e encontra a destruição daquilo que é inato. Um século mais tarde, quando o homossexualismo já não provoca imolação social, Wilde seria obrigado a encontrar algum outro meio de sucumbir, algo além da imaginação. Byron encontrou a rebelião grega, Hemingway as diversas maneiras de "viver a vida até o último instante", até o suicídio; creio que Wilde teria encontrado algum meio ainda mais individualizado. A minha favorita, entre as "máximas para a instrução dos supercultos", é:
Jamais devemos ouvir; ouvir é um sinal de indiferença pelos nossos ouvintes.
Não fui agraciado com nenhum prêmio de magistério, em meio século de carreira, porque acredito na paixão e no raciocínio contidos nesse aforismo. Uma das afinidades mais autênticas de Wilde era com Emerson, de modo especial, o ensaio "Autoconfiança", que repercute tanto em "A decadência da mentira" quanto em "A alma do homem sob o socialismo". Emerson, em "Autoconfiança", afirma tantas idéias ao mesmo tempo, que torna dúbio qualquer comentário, mas, ao que parece, o trecho que mais comovia Wilde era o seguinte:
Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu gênio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: "Capricho". Espero que, em última instância, seja algo superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações.
Capricho é o meio mais seguro para se chegar a ser mal compreendido, mais um objetivo que Wilde herdou de Emerson. Suponho que duas passagens de "Autoconfiança" provocassem em Wilde o mesmo efeito que causam em muitos dos meus alunos:
Em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos descartados: voltam para nós com uma certa majestade alienada.
Assim como as preces dos homens são uma enfermidade da alma, suas crenças são uma enfermidade do intelecto.
No leito de morte, Wilde converteu-se ao catolicismo. As perspectivas sobre conversões efetuadas em leito de morte variam e, vale lembrar, Wilde, durante toda a vida, defendeu a idéia de que Jesus Cristo era, antes de tudo, um artista, e um gnóstico, e o escritor preferia o Evangelho de João, em bases extremamente hereges, como se vê neste trecho de "De profundis":
Ao ler os Evangelhos - especialmente, o de João, ou seja lá de qualquer gnóstico que tenha assumido o seu nome - vejo a constante assertiva da imaginação como a base de toda a vida espiritual e material, vejo também que, para Cristo, a imaginação era, simplesmente, uma forma de Amor, e o Amor era Senhor, no sentido mais pleno da frase.
Wilde lembra-se de ter comentado com Gide que tudo o que foi dito por Cristo podia ser transferido, de pronto, para a esfera da Arte, onde tais noções se concretizariam plenamente. "Uma verdade deixa de ser verdade quando mais de uma pessoa acredita nela" é um dos célebres aforismos wildianos, e não propicia muito espaço para conversões, exceto aquelas efetuadas no leito de morte. A discussão principal sobre Cristo ocorre no texto "A alma do homem sob o socialismo", e, a exemplo do ensaio em sua totalidade, constitui um hino à personalidade, ao autocrescimento. Eis Wilde, no que há de menos irônico e, talvez, menos compreendido:
E, portanto, quem mais vive de acordo com o modelo oferecido por Cristo é aquele que é perfeita e absolutamente autêntico. Pode tratar-se de um grande poeta; ou um grande cientista; ou um jovem universitário; ou um pastor de ovelhas, ou um dramaturgo, como Shakespeare; ou um pensador que reflete sobre Deus, como Spinoza; ou uma criança que brinca no jardim; ou um pescador que lança a rede ao mar. Não importa o que seja o homem, basta que leve a termo a perfeição da alma interior. Toda imitação, seja quanto à moralidade, seja quanto à vida, é falha. Pelas ruas de Jerusalém, hoje em dia, segue um lunático, carregando uma cruz de madeira às costas. Ele simboliza as vidas prejudicadas pela imitação. O padre Damien agiu de acordo com o modelo oferecido por Cristo, quando foi viver com leprosos, porque, ao prestar tal serviço, levou a termo, plenamente, o que de melhor havia em seu interior. Porém, não seguiu mais de perto o modelo de Cristo do que Wagner, quando alcançou a realização da própria alma na música, ou de Shelley, quando alcançou a realização da alma na canção. Não há apenas um tipo de homem. Há tantas perfeições quanto há homens imperfeitos. E, enquanto no que toca ao chamado da caridade o homem pode ceder e se tornar livre, ao chamado do conformismo não se pode, absolutamente, ceder e permanecer livre.
Embora empregue a palavra "socialismo", Wilde tem em mente algo bem mais próximo da visão dos anarquistas catalães que lutaram contra Franco e contra os comunistas, e que preservaram as tradições dos cátaros (gnósticos provençais). A crença mais profunda de Wilde parece ter sido a de que precisamos "viver a vida do próximo, e não a nossa", conceito irreconciliável com o culto à personalidade individualista, mas, tanto quanto Emerson, o autor de "A alma do homem sob o socialismo" deplorava qualquer "consciência tola".
Wilde tinha o gênio do paradoxo, e os momentos mais brilhantes dessa genialidade provocam o apagamento da linha que, supostamente, separa a crítica da criação literária. Eis Wilde, no que há de melhor em sua crítica, em um trecho do ensaio-diálogo "A decadência da mentira", falando atrávés de um personagem, Vivian:
Um grande artista jamais enxerga as coisas como elas, realmente, são. Se assim não fosse, deixaria de ser artista. Tomemos um exemplo atual; sei que gostas de objetos japoneses. Ora, achas que o povo japonês, conforme nos é apresentado na arte, de fato existe? Se pensas assim, é porque não entendes a arte japonesa. O povo japonês é criação deliberada, autoconsciente, de certos artistas. Se colocares um quadro de Hokusai, Hokkei, ou de qualquer um dos grandes pintores nativos, ao lado de uma dama ou de um cavalehiro japonês, em carne e osso, verás que entre eles não existe a menor semelhança. O povo que vive no Japão não difere da média do povo inglês; isto é, são pessoas comuns, que nada têm de especial ou extraordinário. Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo. Um dos nossos pintores mais charmosos esteve, recentemente, na Terra do Crisântemo, com a tola esperança de observar os japoneses. Tudo o que ele viu, tudo que lhe foi possível pintar, foram algumas poucas lanternas e alguns leques.
Ser, a um só tempo, tão sábio e tão espirituoso já é algo bastante raro, mas logo irrompe a verdadeira genialidade, expressa por meio de uma grande asserção: "Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo".
Trata-se de um daqueles trechos memoráveis de crítica que contribuem para preservá-la como gênero literário. Tenho a satisfação de me autoplagiar, observando que esse Japão é a mesma terra distante onde vivem os Jumblies, de Edward Lear, ao lado de Dong, com seu nariz luminoso, Poble, que não tem os dedos do pé, e o mais feliz dos casais: seu Coruja e dona Gatinha. Para lá segue Alice, seja por baixo da terra, seja através do espelho; é, precisamente, o país dos sanduíches de pepino, onde Lady Bracknell confronta Miss Prism. O nome do país encerra a crítica mais elevada:
Eis o que, deveras, constitui a crítica mais elevada: o registro da própria alma. É mais fascinante do que a História, pois diz respeito, simplesmente, à própria pessoa. É mais divertido do que a Filosofia, pois o objeto de estudo é concreto, e não abstrato; real, e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia, pois não lida com eventos, mas com pensamentos desenvolvidos durante a vida; não contempla os acidentes físicos da vida, seja quanto às circunstâncias, seja quanto à morte, mas as inclinações espirituais e a paixão da mente criativa.
Fui informado, há pouco tempo, que um ilustre estudioso do Novo Historicismo e da Poética Cultural, na introdução de um extenso trabalho sobre Shakespeare, registra que o livro por ele escrito é, de fato, sobre Shakespeare, ao contrário de uma obra recente, monstruosa, aparentemente sobre Shakespeare, mas que, na verdade, não passa de mais um capítulo da autobiografia continuada de um velho crítico. Radiante, faço minha a sabedoria de Wilde, ao mesmo tempo em que, espero, evito incorrer no maravilhoso solipsismo de Lady Bracknell, no meu trecho predileto de "A importância de ser prudente", e portanto, em toda a obra de Wilde:
LADY BRACKNELL (Puxa o relógio) - Vamos, querida. (Gwendolen levanta-se). Já perdemos cinco ou seis trens. Perder outros pode provocar comentários a nosso respeito aqui na plataforma.
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Artigo extraído do livro "Gênio". Editora Objetiva.
(1854-1900)
Harold Bloom
Wilde fomentou uma considerável tradição oral, em parte, sem dúvida, apócrifa. Seu neto, Merlin Holland, relembra, de modo fascinante, que Oscar Wilde "confessava que vivia sob constante pavor de não ser mal compreendido". Quando, aos 28 anos, Oscar, o Esteta, apresentou-se à alfândega da cidade de Nova York, consta que tenha dito: "Nada tenho a declarar, exceto o meu belo gênio". Se não o disse, deveria tê-lo feito, assim como deveria ter expressado a sua decepção com o Oceano Atlântico: "Não chegou a rugir".
Para W. B. Yeats, Wilde estava sempre representando o papel de Wilde, mas o mesmo se aplica a Lorde Byron, Hemingway e (ouso dizê-lo) ao ilustre Goethe. Merlin Holland atribui ao avô o papel de Fausto, ainda que não fique claro se seria o Fausto de Marlowe, Goethe ou Mann. De vez que meu assunto é o gênio de Wilde, e o divino Oscar é, ao mesmo tempo, protéico e objeto de minha adoração literária ao longo da vida, não vou me restringir a uma única obra, ainda que isso contrarie os meus procedimentos neste livro. O gênio de Wilde aparece com mais força em "A importância de ser prudente" e dois ensaios magníficos - "A alma do homem sob o socialismo" e "A decadência da mentira". Passo a me referir a esses três trabalhos, aleatoriamente, e recorro a outras paragens de sua vida e obra.
O ponto fundamental a ser considerado em se tratando de Wilde foi definido por Jorge Luis Borges: o grande Esteta estava quase sempre certo. A minha profissão suicida, outrora o ensino da literatura ficcional no mundo anglófono, ainda estaria viva, se tivesse aprendido a lição de Wilde: "Toda poesia medíocre é sincera". Infelizmente, é tarde demais, e os melhores alunos, com toda razão, fogem dos docentes que ainda não morreram, a despeito de facções.
Precisamos de Wilde, mesmo nesse momento de fracasso; quem mais pode nos alegrar, em tempos tão sinistros? Descendo o poço de uma mina, em Leadville, Colorado, durante uma visita aos Estados Unidos, Oscar perfurou uma parede e, em seguida, voltou à superfície, acompanhando os mineiros e suas namoradas a um cassino: "Em um canto havia um pianista, sentado ao piano, acima do qual se via um cartaz: 'Favor não fuzilar o pianista; ele faz o que pode'. Fiquei chocado diante da constatação de que a arte medíocre merece pena de morte".
Arte medíocre hoje em dia é estudada em universidade, exaltada na mídia e, supostamente, faz bem à nossa consciência política. Wilde, exato em suas professias, um século após a sua morte, não tem rival, ao descrever a nossa condição literária: "Antigamente, livros eram escritos por homens de letras e lidos pelo público. Hoje em dia, livros são escritos pelo público e lidos por ninguém".
Wilde ilustra os dois principais sentidos da noção de gênio: uma força geradora inata, e um outro eu, que busca e encontra a destruição daquilo que é inato. Um século mais tarde, quando o homossexualismo já não provoca imolação social, Wilde seria obrigado a encontrar algum outro meio de sucumbir, algo além da imaginação. Byron encontrou a rebelião grega, Hemingway as diversas maneiras de "viver a vida até o último instante", até o suicídio; creio que Wilde teria encontrado algum meio ainda mais individualizado. A minha favorita, entre as "máximas para a instrução dos supercultos", é:
Jamais devemos ouvir; ouvir é um sinal de indiferença pelos nossos ouvintes.
Não fui agraciado com nenhum prêmio de magistério, em meio século de carreira, porque acredito na paixão e no raciocínio contidos nesse aforismo. Uma das afinidades mais autênticas de Wilde era com Emerson, de modo especial, o ensaio "Autoconfiança", que repercute tanto em "A decadência da mentira" quanto em "A alma do homem sob o socialismo". Emerson, em "Autoconfiança", afirma tantas idéias ao mesmo tempo, que torna dúbio qualquer comentário, mas, ao que parece, o trecho que mais comovia Wilde era o seguinte:
Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu gênio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: "Capricho". Espero que, em última instância, seja algo superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações.
Capricho é o meio mais seguro para se chegar a ser mal compreendido, mais um objetivo que Wilde herdou de Emerson. Suponho que duas passagens de "Autoconfiança" provocassem em Wilde o mesmo efeito que causam em muitos dos meus alunos:
Em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos descartados: voltam para nós com uma certa majestade alienada.
Assim como as preces dos homens são uma enfermidade da alma, suas crenças são uma enfermidade do intelecto.
No leito de morte, Wilde converteu-se ao catolicismo. As perspectivas sobre conversões efetuadas em leito de morte variam e, vale lembrar, Wilde, durante toda a vida, defendeu a idéia de que Jesus Cristo era, antes de tudo, um artista, e um gnóstico, e o escritor preferia o Evangelho de João, em bases extremamente hereges, como se vê neste trecho de "De profundis":
Ao ler os Evangelhos - especialmente, o de João, ou seja lá de qualquer gnóstico que tenha assumido o seu nome - vejo a constante assertiva da imaginação como a base de toda a vida espiritual e material, vejo também que, para Cristo, a imaginação era, simplesmente, uma forma de Amor, e o Amor era Senhor, no sentido mais pleno da frase.
Wilde lembra-se de ter comentado com Gide que tudo o que foi dito por Cristo podia ser transferido, de pronto, para a esfera da Arte, onde tais noções se concretizariam plenamente. "Uma verdade deixa de ser verdade quando mais de uma pessoa acredita nela" é um dos célebres aforismos wildianos, e não propicia muito espaço para conversões, exceto aquelas efetuadas no leito de morte. A discussão principal sobre Cristo ocorre no texto "A alma do homem sob o socialismo", e, a exemplo do ensaio em sua totalidade, constitui um hino à personalidade, ao autocrescimento. Eis Wilde, no que há de menos irônico e, talvez, menos compreendido:
E, portanto, quem mais vive de acordo com o modelo oferecido por Cristo é aquele que é perfeita e absolutamente autêntico. Pode tratar-se de um grande poeta; ou um grande cientista; ou um jovem universitário; ou um pastor de ovelhas, ou um dramaturgo, como Shakespeare; ou um pensador que reflete sobre Deus, como Spinoza; ou uma criança que brinca no jardim; ou um pescador que lança a rede ao mar. Não importa o que seja o homem, basta que leve a termo a perfeição da alma interior. Toda imitação, seja quanto à moralidade, seja quanto à vida, é falha. Pelas ruas de Jerusalém, hoje em dia, segue um lunático, carregando uma cruz de madeira às costas. Ele simboliza as vidas prejudicadas pela imitação. O padre Damien agiu de acordo com o modelo oferecido por Cristo, quando foi viver com leprosos, porque, ao prestar tal serviço, levou a termo, plenamente, o que de melhor havia em seu interior. Porém, não seguiu mais de perto o modelo de Cristo do que Wagner, quando alcançou a realização da própria alma na música, ou de Shelley, quando alcançou a realização da alma na canção. Não há apenas um tipo de homem. Há tantas perfeições quanto há homens imperfeitos. E, enquanto no que toca ao chamado da caridade o homem pode ceder e se tornar livre, ao chamado do conformismo não se pode, absolutamente, ceder e permanecer livre.
Embora empregue a palavra "socialismo", Wilde tem em mente algo bem mais próximo da visão dos anarquistas catalães que lutaram contra Franco e contra os comunistas, e que preservaram as tradições dos cátaros (gnósticos provençais). A crença mais profunda de Wilde parece ter sido a de que precisamos "viver a vida do próximo, e não a nossa", conceito irreconciliável com o culto à personalidade individualista, mas, tanto quanto Emerson, o autor de "A alma do homem sob o socialismo" deplorava qualquer "consciência tola".
Wilde tinha o gênio do paradoxo, e os momentos mais brilhantes dessa genialidade provocam o apagamento da linha que, supostamente, separa a crítica da criação literária. Eis Wilde, no que há de melhor em sua crítica, em um trecho do ensaio-diálogo "A decadência da mentira", falando atrávés de um personagem, Vivian:
Um grande artista jamais enxerga as coisas como elas, realmente, são. Se assim não fosse, deixaria de ser artista. Tomemos um exemplo atual; sei que gostas de objetos japoneses. Ora, achas que o povo japonês, conforme nos é apresentado na arte, de fato existe? Se pensas assim, é porque não entendes a arte japonesa. O povo japonês é criação deliberada, autoconsciente, de certos artistas. Se colocares um quadro de Hokusai, Hokkei, ou de qualquer um dos grandes pintores nativos, ao lado de uma dama ou de um cavalehiro japonês, em carne e osso, verás que entre eles não existe a menor semelhança. O povo que vive no Japão não difere da média do povo inglês; isto é, são pessoas comuns, que nada têm de especial ou extraordinário. Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo. Um dos nossos pintores mais charmosos esteve, recentemente, na Terra do Crisântemo, com a tola esperança de observar os japoneses. Tudo o que ele viu, tudo que lhe foi possível pintar, foram algumas poucas lanternas e alguns leques.
Ser, a um só tempo, tão sábio e tão espirituoso já é algo bastante raro, mas logo irrompe a verdadeira genialidade, expressa por meio de uma grande asserção: "Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo".
Trata-se de um daqueles trechos memoráveis de crítica que contribuem para preservá-la como gênero literário. Tenho a satisfação de me autoplagiar, observando que esse Japão é a mesma terra distante onde vivem os Jumblies, de Edward Lear, ao lado de Dong, com seu nariz luminoso, Poble, que não tem os dedos do pé, e o mais feliz dos casais: seu Coruja e dona Gatinha. Para lá segue Alice, seja por baixo da terra, seja através do espelho; é, precisamente, o país dos sanduíches de pepino, onde Lady Bracknell confronta Miss Prism. O nome do país encerra a crítica mais elevada:
Eis o que, deveras, constitui a crítica mais elevada: o registro da própria alma. É mais fascinante do que a História, pois diz respeito, simplesmente, à própria pessoa. É mais divertido do que a Filosofia, pois o objeto de estudo é concreto, e não abstrato; real, e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia, pois não lida com eventos, mas com pensamentos desenvolvidos durante a vida; não contempla os acidentes físicos da vida, seja quanto às circunstâncias, seja quanto à morte, mas as inclinações espirituais e a paixão da mente criativa.
Fui informado, há pouco tempo, que um ilustre estudioso do Novo Historicismo e da Poética Cultural, na introdução de um extenso trabalho sobre Shakespeare, registra que o livro por ele escrito é, de fato, sobre Shakespeare, ao contrário de uma obra recente, monstruosa, aparentemente sobre Shakespeare, mas que, na verdade, não passa de mais um capítulo da autobiografia continuada de um velho crítico. Radiante, faço minha a sabedoria de Wilde, ao mesmo tempo em que, espero, evito incorrer no maravilhoso solipsismo de Lady Bracknell, no meu trecho predileto de "A importância de ser prudente", e portanto, em toda a obra de Wilde:
LADY BRACKNELL (Puxa o relógio) - Vamos, querida. (Gwendolen levanta-se). Já perdemos cinco ou seis trens. Perder outros pode provocar comentários a nosso respeito aqui na plataforma.
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Artigo extraído do livro "Gênio". Editora Objetiva.
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